Este foi o meu primeiro livro de Charles Dickens e eu pensei que ia ser a seca da minha vida. Não podia estar mais enganada. A julgar pelas adaptações cinematográficas, sempre imaginei que “Great Expectations” era um dramalhão à semelhança dos romances das irmãs Brontë, com infindas descrições de trinta páginas cada uma (como era comum na altura). Nada me faria adivinhar como a escrita de Dickens é divertida e nunca vi um filme que conseguisse transmitir o seu grande sentido de humor, especialmente no que toca a “Great Expectations”.
A história é uma das minhas favoritas de sempre e posso dizer sem exagerar que me marcou em tenra idade (à semelhança da maneira com que Miss Havisham marcou Pip, curiosamente), influenciando a minha maneira de pensar e até a minha personalidade, e isto sem sequer ter lido o livro. Era, pois, mais do que justo que finalmente o lesse, e embora tarde mais vale tarde do que nunca.
Pip, o protagonista, é um órfão de família humilde que vive com a sua terrível irmã mais velha e o cunhado ferreiro, Joe, marido dela, que funciona para ele como um padrasto bondoso. Aproveito para falar já da irmã de Pip, uma mulher horrorosa que se enfurecia sozinha com o seu complexo de mártir para ter desculpa para bater a Pip e ao marido, o que só sublinha a natureza benévola de Joe. Tendo em conta a situação de abusos psicológicos e tareias que sofre, e que só conhece os pais das campas no cemitério, Pip até me parece uma criança muito bem-disposta.
É precisamente no cemitério, num dia de Natal, que Pip tem o encontro fatídico que vai mudar a sua vida sem que este desconfie. Um foragido pede-lhe ajuda, fora as ameaças, e Pip concorda em ajudá-lo. O foragido acaba por ser preso e Pip nunca mais pensa sobre ele.
Entretanto, Miss Havisham e Estella entram na sua vida. Miss Havisham, abandonada pelo noivo no dia do casamento, vive na escuridão da sua sala decadente entre relógios parados, teias de aranha, o vestido de noiva em farrapos e o bolo de casamento a apodrecer há anos na mesa do banquete. Para se vingar dos homens, Miss Havisham adoptou Estella, nesta altura ainda uma rapariguinha, a quem treina para ser fria, distante e caprichosa. Pip é convidado a visitar a casa de Miss Havisham para brincar com Estella, e para Estella brincar com ele, como o gato brinca com o rato, sob o olhar perverso de Miss Havisham.
Aqui devo dizer que não achei a Miss Havisham do livro a mesma velha tétrica e fantasmagórica que é retratada nos filmes, por muito que Dickens se esforce para passar essa impressão. Ou, se calhar, os filmes superaram o original com a ajuda da imagem que vale mil palavras. A Miss Havisham do livro é igualmente trágica, sem dúvida, mas consegui reconhecer-lhe uma faceta mais humana, mais insegura, mais vulnerável, uma mulher de carne e osso que come, bebe e passa cheques. Os filmes, parece-me, sempre tentaram transformá-la numa assombração, como Dickens pretendia projectar mas, pelo menos a mim, não convenceu. (Também concedo que seja fácil dizer isto depois de ver os filmes e que a impressão podia ter sido completamente diferente se tivesse lido o livro primeiro.) O que Dickens conseguiu perfeitamente foi transmitir a pessoa perturbada e doentia em Miss Havisham, seja ela espectral ou de carne e osso, e a sua obsessão em exercer vingança através de Estella.
O plano resulta, e Pip apaixona-se perdidamente pela altiva Estella, nomeadamente à medida que ambos crescem e ela se torna uma mulher cada vez mais bela. O efeito mais iníquo desta maquinação de Miss Havisham, no entanto, como percebemos mais tarde, não é que Estella venha a partir o coração de Pip, mas que Pip comece a ter vergonha das suas origens, especialmente de Joe, o cunhado que foi para ele um pai e que Pip começa a olhar com crescente embaraço por não ter as maneiras, a educação e a linguagem a que Pip é exposto na casa rica de Miss Havisham.
Certo dia, Pip é informado de que um benfeitor anónimo lhe pretende deixar uma grande fortuna para que Pip se transforme num gentleman. Acreditando piamente que o benfeitor é Miss Havisham, Pip depreende também que isto significa que a velha senhora pretende que ele se case com Estella. Miss Havisham conhece este equívoco (e esta ilusão) mas nada faz para o esclarecer porque lhe convém que Pip continue o mais iludido possível.
Sempre gostei do sentido duplo do título. Os advogados chamam a Pip, referindo-se a esta fortuna prometida, “um jovem de grandes expectativas”, mas nós sabemos que são antes “grandes esperanças” e que estas esperanças são Estella, Estella, Estella. Mas eu não considero, de maneira alguma, que “Great Expectations” seja baseado numa história de amor. Não há aqui amor nenhum. Pip “ama” Estella porque é ela é bela, sofisticada, educada. Ele próprio admite que Estella não tem outras qualidades, nem é amável nem é agradável, e quando está com ela não podia ser “mais infeliz”. Isto não é amor mas obsessão, como se conquistá-la fosse a prova de que a merece, de que atingiu um estatuto, de que finalmente é alguém, um gentleman. Mesmo depois de saber que foi iludido e manipulado, Pip não consegue livrar-se desta relação tóxica que só existe na sua cabeça desde infância.
Estella não tem melhor sorte. Igualmente sujeita a uma lavagem cerebral desde criança, acredita no que lhe foi ensinado e segue em frente até destruir a sua vida. Confesso que esperava conhecer mais sobre esta personagem fascinante no livro, mas Estella é sempre vista pela perspectiva de Pip, uma perspectiva completamente distorcida e perplexa, quando não cega de todo.
O que mais gostei nesta história, desde sempre, foi como Dickens descreveu os mecanismos psicológicos que podem manipular e arruinar uma criança para sempre, especialmente quando não existe contraponto às influências nocivas que recebe, a ponto de a manipulação perdurar e continuar a fazer estragos bem para lá da idade adulta. Pip acaba por perder tudo, mas sobretudo compreende que a coisa mais valiosa que perdeu, por sua culpa, foi a amizade pura e desinteressada de Joe, que dinheiro nenhum poderia pagar.
Dickens é muito elogiado pelas suas personagens inesquecíveis (sem dúvida) ao mesmo tempo que é criticado por estas serem algo caricaturais (não nego), o que as torna ao mesmo tempo divertidas. Prefiro ver estas “caricaturas” como humor (ou ironia, ou sarcasmo) e como crítica social. A verdade é que “Great Expectations” ainda se lê muito bem nos dias de hoje e recomendo a toda a gente que gostou dos filmes.
domingo, 19 de janeiro de 2025
Great Expectations, de Charles Dickens
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