sábado, 22 de setembro de 2018
Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche
Eu sou Zaratustra, o Sem-Deus. Pois não sabeis que Deus está morto?
Afirmações destas devem ter sido muito chocantes em 1883, ano em que “Assim Falou Zaratustra” começou a ser publicado. (Apesar de não parecer, o livro está incompleto. Nietzsche tencionava publicar a conclusão.)
A filosofia de Friedrich Nietzsche influenciou todo o pensamento moderno. Mas será que ainda faz sentido ler “Zaratustra”, hoje em dia que somos tão pós-tudo que “Deus está morto” só nos induz um encolher de ombros?
Um livro para todos e para ninguém
Por paradoxal que pareça, “Assim Falou Zaratustra” é uma leitura tão acessível como difícil. A obra é apresentada como um romance fictício da vida de Zaratrusta (Zoroastro). Li algures que Nietzsche escolheu este profeta por achá-lo o primeiro a apontar que todo o conflito ético se baseia numa luta entre o Bem e o Mal. Não devia ser isto exactamente que pregava o Zoroastro original, mas serviu muito bem como modelo. Em “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche utiliza-o como uma quase-farsa, uma sátira ao Velho e ao Novo Testamento, às vezes fábula assumida (quando Zaratustra fala com os seus animais, a águia e a serpente, personagens importantíssimos que também falam). Que Nietzsche tem um ódio especial à religião, e ao cristianismo em particular, reflecte-se logo na afirmação chocante “Deus está morto”.
Chega a ser irritante de tanto que nos martela com isto. Na altura fazia sentido, mas penso que actualmente estamos tão além do pensamento religioso e tacanho em que Nietzsche batia que se torna um bocadinho demais.
Mas que Nietzsche e filósofos semelhantes tiveram influência nota-se ainda: nas pessoas que persistem, e que conheço pessoalmente, em passar um atestado de estupidez a toda a gente que tem tomates de admitir que acredita em algo de divino ou sobrenatural. Aguentem-se, filhos, eu também tive um grande choque quando percebi que inteligência não é sinónimo de sensibilidade. (Até me parece que são características tendencialmente opostas, o que me choca ainda mais.) Da mesma forma, queridos intelectos iluminados, nem só de Razão vive o homem. Mas se no tempo de Nietzsche fazia sentido “abrir os olhos”, hoje em dia já não há desculpa nenhuma e já não tenho paciência para estas manias de superioridade.
O que me leva ao grande tema do livro, o Super-Homem. Zaratustra prega o Homem-que-se-supera, e como o homem se supera constantemente, o Homem-que-se-supera é sempre o homem de amanhã. Por causa deste conceito de super-homem, o livro (e o pensamento de Nietzsche em geral) têm sido acusados de ter contribuído para a doutrina nazi. Admito que também li por causa disso, na curiosidade de saber de onde vêm as coisas. Agora que li, acho esta acusação injusta. É claro que percebo como é que o conceito pode ter sido interpretado assim, mas o livro é tão subjectivo que a interpretação também acaba por ser. Talvez fosse mesmo esse o objectivo. Por alguma razão o subtítulo de “Assim Falou Zaratustra” é “Um livro para todos e para ninguém”.
Afinal, a Fé não está morta
Eu confesso-me o “ninguém” do subtítulo. Muitas vezes não consegui compreender o contexto e a mensagem de algumas passagens. Faltam-me referências filosóficas, nomeadamente as mais próximas do tempo de Nietzsche e em que este batia com ardor. (A tradução que li, anotada, foi muito útil neste sentido.) Noutras passagens, Nietzsche fala de personagens-tipo da sua época que pura e simplesmente já não existem. Actualmente já nem nas igrejas há “adoradores da morte” cujo grande “objectivo” é morrer e ir para o Céu. Talvez apenas existam em seitas de pouca expressão numérica. As grandes instituições religiosas têm e querem ter um papel activo “neste mundo”. (Se deviam ter ou não, não é para aqui chamado agora.) Assim, admito que não apanhei muitas das indirectas, certamente deliciosas à época. Curiosamente apanhei outras, ainda mais obscuras, como aquele curto parágrafo em que Zaratustra faz uma piada ao Espiritismo. Até pensei que tinha percebido mal, mas a anotação confirmou. O que nos diz que nós compreendemos muito bem o que conhecemos e nos interessa. Mas muito do que Nietzsche fala neste livro já não é reconhecível para mim.
A somar a isto, o estilo satírico também me deixou na dúvida muitas vezes. A maior perplexidade surgiu-me na passagem sobre o eterno retorno. Não percebi mesmo se Zaratustra/Nietzsche estava a expor o conceito ou a gozar com ele. Nunca me preparo de antemão para ler um livro (nem mesmo para um livro de temas filosóficos complexos, como este é, porque gosto de pensar pela minha própria cabeça primeiro e só depois consultar as convenções) mas o conceito não me é desconhecido. Na verdade, cheguei a ele pela via espiritualista de inspiração oriental. Será que dizer isto faz com que Nietzsche (o anti-religião) ande às voltas na cova, ou o contrário? Não tenho resposta. O próprio posfácio do livro menciona o orientalismo no pensamento de Nietzsche como algo de incomum nos filósofos ocidentais da época.
Mas o conceito de eterno retorno é velho, muito velho. Veio do Oriente para os Gregos clássicos e chegou desta maneira ao pensamento filosófico ocidental, aparentemente “depurado” de espiritualices. Na minha opinião, só aparentemente. Dêem-se-lhe as voltas que dêem, o conceito nunca deixa de me parecer místico. Para um pensador aparentemente tão devoto à Razão que diz que Deus está morto, é uma tese paradoxal. Afinal, Zaratustra/Nietzsche passa o livro a criticar aqueles para quem “tudo está perdido, a vida não interessa, nada é novo” e aponta-lhes o homem-que-se-supera como objectivo último e grande esperança da humanidade. Mas se tudo se repete vez após vez, a Humanidade está destinada a correr sempre atrás do futuro sem nunca o atingir. Assim sendo, não têm razão aqueles para quem “tudo está perdido” e nada vale a pena, ou, pelo contrário, é a eterna busca que vale a pena? Mas acreditar que vale a pena é um acto de Fé, não de Razão. É acreditar que a Humanidade está destinada a evoluir e (também) que a Humanidade não regride mais do que já evoluiu.
Talvez a última parte da pregação de Zaratustra (incompleta) esclarecesse estes pontos sem sombra de dúvidas. Se é que precisam de ser esclarecidos. Para mim bastaram e achei “Assim Falou Zaratustra” uma leitura muito válida e provocadora ainda nos dias de hoje. Com algumas ideias concordei veementemente, de outras discordei furiosamente. Aqui e ali fez-me rir. E sobretudo fez-me pensar. Não sei se pensei o que Nietzsche queria que pensasse mas este também já não é o tempo de Nietzsche. Às vezes perguntei-me se ele não estava a dizer algumas das coisas que disse só para provocar. Porque são estes os nossos tempos. Os tempos dos “grandes desprezadores”. Como grande desprezadora que sou, talvez eu e Zaratustra pudéssemos ter sido bons amigos. Daqueles que andam sempre às turras. Eu também teria uma coisinha ou duas para lhe martelar aos ouvidos.
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