Há uma coisa que preciso de contar. Algo que preciso de contar para todo o mundo ouvir. Não vai ser fácil mas resta-me a esperança de encontrar algum alívio se a verdade sair de dentro de mim. Não espero piedade e não acredito em ajuda. Sei que há quem compreenda porque vive no mesmo inferno, e para esses envio a minha solidariedade, tal como sei que tenho a deles. Há certas coisas que só se compreendem passando por elas, e esta é talvez de todas o melhor exemplo.
Há 37 anos que vivo com um vampiro, e finalmente a energia esgotou-se-me. Não tenho mais. Resta-me render-me, esconder-me, fugir sempre que possível. Não sou apenas uma prisioneira, sou uma vítima dentro da minha própria casa, desde que me conheço. Desde que nasci? Não me lembro. Talvez até desde essa altura porque o meu pai não queria que nascesse e não gostou muito da surpresa... que pôs de parte.
O abuso não era apenas físico como psicológico. Não posso dizer que houvesse razões para a minha mãe me espancar até perder o fôlego. Se calhar porque chovia ou porque fazia sol. Era pior quando alguma coisa a irritava e descarregava na vítima conveniente... que era eu. Sempre pensei em morrer. Não duvido que tenha sido esta a principal razão, porque não é normal desejar a morte aos 3 anos, idade em que primeiro me apercebi claramente da atracção dessa fuga.
As tareias nunca pararam. Ainda hoje me pergunto o que poderia ter feito de errado. É típico das vítimas atribuírem-se culpa pelo sofrimento que lhes causaram. Muito, muito típico. Pergunta-se, qualquer vítima, "se em vez de ter escolhido aquele caminho...", "se em vez de sair sozinha...". Porque o fazem? Numa tentativa de voltarem a ganhar controlo sobre as suas vidas. "A culpa foi minha" permite esse irracional sentimento de segurança, permite o conforto de acreditar ser possível evitar a próxima vez.
Mas depressa percebi que não havia nada que satisfizesse aquela mulher. O objectivo do abuso físico e psicológico era o de esmagar completamente a minha personalidade até a tornar em papa. Uma vez bateu-me porque era domingo, e porque não íamos sair, e eu não via razão para tirar o pijama. Ainda hoje não o faço, ao andar por casa. E como eu muita gente, e isso não é razão para bater a uma criança. Mas ali tudo o era. Geralmente ela começava por implicar com uma coisinha (bastava-me deixar cair um livro, um copo, uma peça de roupa, para os berros começarem), e à terceira ou quarta coisa que eu fazia "mal" atirava-se a mim como um bisonte. Havia dias em que eu sabia de antemão que ia levar tareia. Esses dias eram a véspera de Natal e a véspera de Ano Novo. Uma vez até teve o desplante de me dizer, na véspera do fim de ano, "No Natal não levaste, já não levas há muito tempo, estás para levar agora". E, sim, mais tarde arranjou pretexto.
Eu sei que naquela altura os olhos me tremiam, à aproximação dela, como os de um cão habituado a pontapés. Sempre que tinha de pegar num prato fazia-o com muito cuidado e a tremer, porque se o partisse estava a dar-lhe um pretexto, e eu tinha bem consciência disso. Ainda hoje, que é hoje, ao lavar a loiça, estremeço sempre que um prato me escapa das mãos e o consigo apanhar a tempo de não se partir. Ainda hoje, que é hoje, não posso estar sentada com alguém em pé atrás de mim, porque conservo o medo irracional que a pessoa me bata na cabeça. Era o que ela fazia. Por isso, quando estou sentada e alguém se aproxima por trás, levanto-me imediatamente, para mostrar que já sou grande. Isto é tão triste! Ficaram mais fobias, mas não vou entrar agora por elas adentro.
Vivia no terror. Um terror indescritível, tanto quanto é indescritível uma criança temer a própria mãe que a devia proteger. Naquela altura eu não sabia proteger-me. Era demasiado pequena. Logo, ninguém me protegia. Era-me permitido um único consolo. Como aqueles meninos perdidos da civilização, como uma feral child, encontrava nos animais os únicos amigos, a única família, e agarrava-me a eles, a chorar, sem saber expressar de outra maneira o horror que era a minha vida. Ainda hoje tenho vergonha de contar estas coisas, aqui, pelo que peço que não façam comentários.
À medida que ia crescendo, e me foi permitido brincar na rua com os outros meninos, comecei a ausentar-me de casa por períodos cada vez mais prolongados, por vezes para lá das 22h. Isso também me valia tareias, mas compreendam: se ficasse em casa levava enquanto lá estivesse; chegando tarde, o mais tarde possível, só levava uma vez. Estratégias que o terror ensina.
Este inferno de espancamentos físicos foi continuando, embora atenuado, porque eu cresci. É mais fácil espancar um corpinho pequeno. Os abusos psicológicos, contudo, mantiveram-se, continuaram, e agravaram-se. O intuito era chamar-me inútil, acusando-me de não fazer nada em casa e de não saber fazer nada. Aliás, isto continua até ao dia de hoje. Acreditando nas palavras da minha mãe, eu não sei limpar o rabo sozinha. Por esta altura eu já era a melhor aluna da turma, mas isso não era motivo de orgulho, isso "é a tua obrigação".
Aos 14 anos, com 1,65m e 60kgs, finalmente virei-me a ela quando me vinha bater. Porque não o fiz antes? Não sei. Se calhar nunca tinha percebido que já era crescida e estava demasiado habituada à porrada. Ela era uma mulher forte (e ainda é), gorda, nos seus quarenta e tal anos, não era nenhum peso pluma. E havia consequências, que não tardei a sentir. Chamou a polícia, fez-se de vítima, os polícias levaram-me num carro de polícia ao Hospital Miguel Bombarda para a urgência psiquiátrica onde o médico de serviço me mandou imediatamente para casa. Muito ela estrebuchou. Queria internar-me. Fora dali, tirando a máscara de boa mãe, chamou nomes ao médico e acusou-me de o enganar. Tal como vos engano aqui, neste blog, certamente, porque se lhe perguntarem nunca me bateu, e se o fez era porque eu era má. Devia ser mesmo muito má para levar tanta porrada...
A partir daí, habituei-a a levar de volta, até que, também pelo avanço dos anos, desistiu do abuso físico e se concentrou no psicológico. Ainda hoje, todavia, não estou livre de dizer algo que não devo e me arriscar a uma bofetada que me obrigue a defender-me fisicamente. Tento ouvir em silêncio e não dizer nada. Estou envenenada até à ponta dos cabelos. Envenenada, em silêncio. Às vezes, como um ser atormentado pelo demónio, rezo a Deus, quando ela começa, para que a cale. Às vezes sou ouvida.
Ultimamente tem andado pior. Deve ser porque vai fazer anos em breve. É Gémeos, e é a razão de eu não suportar ninguém desse signo por injusto que isso pareça. Como Gémeos, tem duas caras. Quando eu levava amigos a casa, na adolescência, das poucas vezes que o fiz, mostrava-se querida e simpática, mas assim que saíam porta fora começavam os insultos. Estes foram alguns dos que ouvi, caros amigos, e alguns referem-se a vós: "Come que nem uma besta", "tem cara de drogado", "é mais velho do que diz ser, é mentiroso", "é atrasada mental", "só tens amigos de merda". Tudo isto ouvi e não contei, porque me magoava e não vos queria magoar. Ouvi, em silêncio, durante anos e anos. Agora já não levo ninguém a casa, nem quero que ninguém me telefone, e agora ouço: "Não tens amigos", "ninguém te atura". Em suma, sou uma merda. Sou uma inútil, uma merda, uma falhada. Mas isso sempre fui desde que nasci, tás a ver?
Já aqui disse muitas vezes que não conseguiria continuar muito mais tempo a lutar em duas frentes. O mundo é agressivo. É difícil triunfar fora se quando se chega a casa para outra guerra. Tem sido muito duro. Muitos anos, muito duro. Anos a mais.
Durante muito tempo, tive uma esperança, um sonho. Encontrar alguém, um amor, com quem começar uma família a sério, longe disto tudo. Com os anos, esqueci a ideia. Também depressa percebi que não podia, precipitadamente, lançar-me da frigideira para o fogo. Monstro por monstro, já tenho um em casa. E no entanto... Talvez tivesse mais direitos como esposa maltratada. Olha, uma coisa a pensar. Afinal, porrada por porrada, ao menos que esta garanta um subsídio.
(Estava a brincar.)
Os anos passaram e também o tempo das ilusões. Concentrei todos os meus esforços numa carreira, num emprego bem pago que me permitisse sair de casa. Compreendem agora porque era fulcral?... Não devido a culpa minha, porque há milhentos na minha situação, não o consegui, e é por isso que continuo no inferno.
Muita gente já me disse, e com razão, para sair de casa, nem que seja para um quarto alugado. O que não sabem é o terror que a ideia de viver com estranhos me inspira. Que ideia pode fazer de estranhos quem é maltratado pelo seu próprio sangue? Temo, muito, encontrar outros monstros, igualmente sádicos, ou piores até. Devo dizer que já encontrei vários em casas alheias. É também por isso, caros amigos, que me furto a visitar os vossos lares, onde pode também haver um monstro "debaixo da cama". Ainda se perguntam porque gosto tanto de filmes de terror? Está explicado, não está? Sim, eu vivo num filme de terror, com monstros e tudo. (Houve mais monstros, mas desses não sei se alguma vez falarei.)
Nos últimos tempos, porém, comecei a sentir-me cada vez mais cansada. São 37 anos. Os joelhos doem-me. O meu síndrome de atraso de fase agravou-se muito nos anos recentes (dormir de dia é uma maneira de evitá-la, e os seus escárnios, e as suas provocações cujo intuito é levar-me a fazer algo de violento que a vitimize: em vão). Estratégias que o terror ensina. Perdi a esperança de um trabalho melhor. Perdi a esperança de salvação. Na última quinta feira, então, atingi um novo patamar. Não estava a dormir mas meti-me na cama desde as 20h até depois da meia noite, e fiquei deitada na escuridão, escondida, para a evitar durante as horas em que, como um cão raivoso, tem mais tendência a atacar. Dantes, quando era mais nova, era capaz de ir dar uma volta, mas, como eu disse, agora estou cansada e doem-me os joelhos e só quero descansar e ficar em paz.
Como também disse, tem andado pior nas últimas semanas. Acho que quer mais dinheiro. Continuou sempre, sempre, a tentar esmagar a minha personalidade. Um exemplo de um dos seus últimos discursos: "Estou aqui a passar a ferro a tua roupa, a tua roupa feia, que tu não passas. Não passas porque não sabes passar a ferro. Diz lá 'eu não sei passar a ferro'. O que vai ser de ti quando eu morrer, que não sabes fazer nada?". Não respondi. Aprendi a ouvir os insultos em silêncio. Aprendi a ser uma vítima. Sim, sei passar a ferro, mas, acreditem, o simples facto de tirar do sítio a tábua de engomar (e voltar a pô-la lá, evidentemete), é razão para me atingir: "Desarrumaste tudo o que tinha aqui, não sabes fazer nada, só fazes merda". Obviamente, é mentira. Ela não quer que eu faça nada para me poder chamar inútil, que foi sempre o que me chamou desde que eu me lembro. Faz parte do esmagamento da personalidade. Como alguém se pode entregar a este passatempo, contra a própria filha, durante 37 anos, é coisa que não me entra na cabeça. Sei que a mãe dela também a tratou mal, mas isso não é desculpa para fazer o mesmo. Pelo contrário. Muito antes pelo contrário.
Mas isso já não importa, sabem? Habituei-me a ouvir em silêncio. Não digo que entre por um ouvido e saia pelo outro. Estas coisas não entram e saem. Estas coisas envenenam. 37 anos envenenam muito.
Compreendi que ela era um vampiro das primeiras vezes que me ausentei, por mais de uma semana, e me senti imediatamente cheia de uma energia que nunca experimentei em casa. Fora deste ambiente, cheguei a ter momentos de alegria, quase de felicidade. Momentos de optimismo. Tudo isso é sugado, destruído, esmagado, sempre que entro em casa. Estou a escrever estas linhas no emprego. Sei que quando chegar a casa vou ouvir mais. Não sei sobre o que vou ouvir. Uma porcaria qualquer. E se o dia lhe correu mal, ainda vou ouvir pior. Como também disse, parece-me que ela quer mais dinheiro. Desde que lhe dou uma mesada do meu trabalho, já há muitos anos, o dinheiro tem acalmado a fera. Mas julgo que quer mais. Não o vai ter. Não vou trabalhar mais horas como uma escrava para pôr mais 50 euros na mão deste monstro.
Acontece que eu sei que já não há solução. O tempo passou, eu fiz tudo o que podia, mas o tempo passou e eu não tenho mais energia. Esgotou-se-me. Tinha de acontecer mais tarde ou mais cedo, certo? Aprendi estratégias. Evito, fujo, escondo-me.
Esta semana, no entanto, comecei a virar-me para Deus em busca de uma resposta. "Senhor, salva o teu servo", não é? Continuo a acreditar que fiz coisas terríveis numa vida passada, a única explicação para que seja justo que eu tenha de passar por este inferno desde nascença. Mas estou esgotada, e neste estado já não consigo fazer mais nada por mim, muito menos pelos outros. Preciso de ajuda, de grande ajuda, duvido mesmo que possa vir ajuda que não seja de Mão Divina, ou não me resta senão deixar-me definhar. Será esse o meu karma? Definhar como uma mosca numa teia de aranha, até ao fim, demasiado esgotada para tentar romper os fios, sugada de toda a energia, desprovida de toda a esperança? Pergunto-me de que vale um destino assim. Para mim, nada. Para os outros? Não sei. Talvez estas linhas sirvam para os outros. Não sei como. Nem a mim me adianta. Há coisas assim, no entanto. Já não me ponho a adivinhar. Resignei-me. Sei que não vai durar para sempre. Porque uma de nós não vai durar para sempre e a velhice também a há-de vencer. [O que é curioso é que ela é muito mais enérgica do que eu e me pergunto de onde lhe vem tanta energia à medida que eu definho...]
Isto é triste. É muito triste que assim seja.
Agora que estou esgotada, e que a a guerra acabou por capitulação da minha parte, já foi possível contar a história. Talvez agora muitas coisas que aqui disse antes façam mais sentido.
Post Scriptum: Acho que amanhã, depois de ir votar, volto para casa e adopto a mesma estratégia. Ir para a cama e fingir que durmo. É que, sabem, ela não pode saber que estou acordada.