quinta-feira, 24 de abril de 2008

Palhaçada

Nick Cave, Coliseu de Lisboa, 21.4.2008




Algo me dizia que este seria o meu primeiro e último concerto de Nick Cave. Muito provavelmente sê-lo-à de facto, mas não pelas razões que tanto temia. Afinal havia piores motivos para ter medo.
Este não é o meu Nick Cave. Este não é o Nick Cave que conheço há 20 anos das k7s, dos discos, dos CDs, do mp3. Ao ouvir neste preciso momento "I Let Love In" (tema tocado no concerto) chego a duvidar ter estado na presença da mesma banda.
Passo a explicar. Começo por falar no concerto em si. Como já é tradição com eventos que começam às 21h, não vi a primeira banda (uns tais Dave Graney & The Lurid Yellow Mist) e ia perdendo tudo da primeira canção. Caramba, há muito tempo que não via o Coliseu de Lisboa tão apinhado! O que me leva à constatação de que com os anos a sala parece ter encolhido, o palco parece ter descido ou as pessoas parecem maiores. Algo se passa porque da plateia mal se vê a careca de quem está a tocar. A única solução é chegar cedo e arranjar lugar nas bancadas laterais mais próximas que sempre foi de onde ainda guardo as melhores memórias das cuecas da Björk lá para os tempos dos Sugarcubes.
Depois, o que raio era aquela luz toda a iluminar a plateia? Ainda se o público tivesse estilo, mas palavras de honra, para banda alternativa, onde estava o alternativo do público? Sim, eu sei que era segunda-feira e a malta veio do trabalho, mas sejamos francos, e é provável que esta piada só seja percebida pelas pessoas de Lisboa, mas deixá-lo, parecia uma festa daquelas temáticas no Santiago Alquimista onde se acaba sempre a ouvir o mesmo.
Por falar em festa, Nick Clown & the Ball Seeds lá a fizeram em grande! Até houve "sing along"! O pior não foi o "sing along" e os pseudo insultos à plateia. O pior é que de 20 anos de canções não percebo como é que nunca tinha ouvido aquela (nada de jeito, por sinal) e o facto de os insultos serem pseudo -- como tudo o resto foi pseudo. E que tal se o "sing along" tivesse sido em "Deanna"? Ou Nick Cave teria muito medo que não conhecessem? Pelo sim pelo não, é mais seguro apostar em "Right Red Hand" porque toda a gente já ouviu, nos Ficheiros Secretos ou noutro lado qualquer. "Mercy Seat"? É melhor não, é muito pesado, apesar de ter sido uma das canções mais gritadas. Havia mais por onde escolher, desde os Birthday Party, mas também não quero ser fundamentalista.
O que raio foi aquilo?! Não, não estou a implicar com o bigode e a careca. Ironia é beleza. O que me está de facto a incomodar é que Nick Cave não é daqueles autores que já não têm um álbum novo há vinte anos e vão enchendo chouriços com versões de Primal Scream. (Se não foi Primal Scream não sei o que foi, mas Nick Cave também não sabia por isso estamos iguais, e se pelos Bad Seeds a canção também não é nada de jeito -- mais uma para a lista! -- o original não pode ser melhor.) O que me incomoda é que Nick Cave acaba de lançar dois álbuns novos, um com os Bad Seeds outro com o projecto Grinderman, qual deles o melhor porque são mais duas obras primas a juntar às outras, e de entre um menu novo e antigo tão recheado preferiu tocar o mais pop.
Mas também não é por isso que saí deste concerto desconsolada. Não sei se foi sempre assim ou é uma fase (diga quem o viu ao vivo antes), o que de facto me desapontou foi a falta de vontade de interpretar correctamente o seu próprio repertório. "What do you want to hear?", perguntava, e ouvia-se "O'Malley", "Lovely Creature", os resultados sangrentos de "Murder Ballads". Lá saiu "Stagger Lee", mas com tão pouca convicção que preferi ter levado o álbum e uns headphones. Exactamente. Melhor no álbum. Já que estamos em ano de olímpicos, diria mesmo que a nota técnica é 10 (excelente voz, excelentes músicos, excelente espectáculo) mas a nota artística fica pelas ruas da amargura.

Porque quando se canta

Well I've been bound and gagged and I've been terrorized
And I've been castrated and I've been lobotomized


é preciso uma certa solenidade. Talvez seja defeito meu, sei lá, mas pareceu-me que Nick Cave tem tanto medo de ser teatral que acaba por cair na palhaçada.
Nem "Tupelo" saiu como deve ser. E transformar "Tupelo" numa coisinha sem sal não é trabalho fácil. Parabéns Nick. Nenhuma banda de covers deste mundo o faria tão genialmente.

[intimismo]
O que é que eu queria ouvir Nick? A tua alma. E parece que a tua alma fica no estúdio onde está protegida bem longe dos olhares e se enrosca segura entre as capas dos CDs. Compreendo. Não gosto mas compreendo.
[/intimismo]


A única coisa de jeito que Nick Cave disse foi afinal sobre uma das melhores canções do último álbum "Dig Lazarus Dig", "We Call Upon The Author", algo como "todas as respostas às vossas dúvidas existenciais estão aqui". Sempre na brincadeira. Não havia necessidade de gozar tanto consigo próprio. Digo eu. Mais uma vez, pode ser defeito no receptor.
Chegando aos encores, já não sabia se queria que Nick Cave se fosse embora ou se voltasse de novo e salvasse a noite com um bocadinho de alma. Só um bocadinho. Um niquinho de alma.
Não vi nada.

[intimismo]
Contudo, este concerto não foi uma completa perda de tempo. Pelo contrário, sempre me questionei, abismada, onde se inspiraria Nick Cave para escrever o que escreve. Depois de quase duas horas de observação e intuição feminina, se a vida afectiva do homem é tão desastrada como a interpretação dos seus próprios poemas... mais um mistério desvendado. E sobre isto não digo mais nada. (E não lhe digam que fui eu que disse porque nego tudo!)
[/intimismo]


Adeus Nick. Foi um prazer ver-te. Maior prazer é ouvir-te e é o que farei daqui em diante.




Ficam algumas fotografias tiradas com a minha máquina de fazer telefonemas, já com prévias desculpas pela má qualidade mas até agora não tive tempo de comprar melhor por isso vamos atribuir a imagem desfocada a... erm... opções artísticas...
(Também há uns vídeos mas ainda não consegui vê-los no computador. Aceita-se ajuda.)














7 comentários:

Fata Morgana disse...

Eu nunca tive grande vontade de ir... porque suspeitava dos "piores motivos para ter medo."

Não gosto dos videos dele, recentes, que vi no YouTube... suspeito de uma crise de meia-idade :)))

Mas adoro o Nick Cave e tenho a certeza de que isto lhe vai passar.

Beijo!

fataemorganae disse...

Lamentavelmente não consegui bilhete...
Mas também já ouvi dizer maravilhas e "desmaravilhas"
E ainda por cima sei que não tocou as minhas favoritas...

Espero que te tenhas divertido muito apesar de tudo :)

the dreamer disse...

acho que houve alguns momentos com alma. mas é verdade que foram poucos.



yuna

Silvia disse...

também estive para ir ver, mas o dinheiro faltou. a confiar em ti (o que é qualquer coisa), não perdi assim tanto.

LadySelene disse...

Boa noite em primeiro lugar.

Há já cerca de dois anos que vou sendo uma leitora regular deste blog, perfeitamente identificada com os prenúncios de ruína que só agora se tornaram evidentes a todos.

Gostaria de te dar os parabéns, pois és de facto Mestra, na percepção e na arte da escrita. Temo que tal como a mim em alguns aspectos, a maldição de Cassandra te acompanhe... fortes são os gritos mas muitos são os moucos...

Se tiveres que partir desejo que voltes em breve...

E de uma forma mais prosaica, se quiseres ajuda com os vídeos do concerto, diz-me a marca e o modelo da "máquina fotográfica telefonante" que usas... talvez consiga ajudar...

Melhores cumprimentos

Fernando disse...

Desde que o gajo passou a trabalhar das 9 às 5 que não se pode esperar milagres...

mehrlicht disse...

eu vi-o em 94 (já arrenpendido de não o ter visto mais cedo) mas gostei muito. Pouco depois senti logo que ainda bem que tinha visto daquela vez - que teria sido a última altura possível para experienciar um Nick Cave (e compinchas) a sério.