sábado, 24 de março de 2007

Morte em sequência

Tenho uma vizinha que durante anos e anos sempre teve um cãozinho de companhia. Quando o último morreu, a minha mãe era da opinião que por ser de avançada idade a senhora não devia arranjar outro. Uma decisão racional porque pessoas de avançada idade podem morrer antes do animal. Mas a verdade é esta. Esta vizinha minha, se lhe olharem para a cara, não sabem que idade tem. Há trinta anos que a conheço igual. Tem uma daquelas caras, esculpidas em pedra, como John Wayne. Quando eu era bebé tinha medo dela, daquela cara, e daquela voz que parece sair das profundezas de uma gruta. A mulher já enterrou o marido, uma série de cães, e não passou mais de poucos meses até arranjar outro pequeno companheiro. Acho até que tirar o seu cãozinho à senhora é o mesmo que condená-la à morte.
Tem-me feito pensar naqueles casos em que, morrendo o marido, morre logo de seguida a mulher. Pode até parecer em perfeita saúde, mas perdendo esse seu elo à vida começa a definhar, como se quisesse morrer também, e como se morresse por vontade própria.
O que os mata é a falta de motivo para viver. Tira-se o motivo, mata-se a pessoa. Interessante, não é?


Em tribos primitivas, bastava ao shaman, ou feiticeiro da tribo, apontar um osso à vítima, entoando cânticos de morte, e esta morria em poucos dias. Não que exista realmente uma "morte por vudu", mas porque a vítima, por sugestão, se convencia de que estava destinada a morrer. Sendo assim, deixava de comer e beber, sentava-se a um canto e morria mesmo.

Sim, é possível morrer porque se quer. Morrer por vontade. Haverá antidepressivo contra o osso do feiticeiro? É o mesmo que perguntar se há comprimido que cure a fé. Mas essa é outra história.

5 comentários:

Klatuu o embuçado disse...

Acho que essa senhora ainda vai enterrar muitos canitos... ;)

Dark kiss.

Vladimir disse...

o melhor anti depressivo é a vontade de viver.

Musgo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Musgo disse...

Mas por trás da vontade de morrer estará sempre uma vontade (não satisfeita) qualquer. Racionalmente, pelo menos.

linfoma_a-escrota disse...

os elefantes morrem de tristeza, o meu bisavô murreu dois dias depois da minha bisavó falecer, estava em boas condições de saude, simplesmente adormeceu, na india os velhos deitam-se no ganges à espera de morrer, pois, para eles, se morreres nu seu rio sagrado vais direitinhu para o paraiso

A CAMINHADA

Que são palavras sem dor?
A limitada emoção de ver teu novo cognome no ecrã
não se compara
ao ritmo bulímico da aceitação
deste corpo,
frágil e refeito em momentos
resistente mas cicatrizado de simbolismos,
tão perdido a tentar libertar um desejo
que possa ser seu, um objectivo
assumido.

Foram olhares que não conseguiu retribuir,
os únicos
que poderiam deslizar pela lama das formas
enregeladas mas moldáveis,
prevalecendo uno com som puro e afinado
como pardais ao amanhecer,
jovens de braços soltos
do ninho para as crostas até ao desalento.
Somos meras amoras
de tristeza banal fraca demais
para se suster sozinha
na mentira que é a nossa vida.

Sim minha senhora
quero e uso a educação para criar contraste,
num fugaz relato de veias com sangue
sem perseverança para colar as asas e voltar a contestar
a ferida, nas canadianas de angústia
é este o destino
e todos fingem amar e não sabê-lo.
As flores apontam o dedo ao fumo das secreções
pois sabe bem ser falso optimista e
rotular a morte que todos alimentamos.

É vício, ilusão inebriante atropelada de
glamour amolgado nas lajes do tempo,
todos te conhecem e se perdem em ti
ou ficam ociosas crianças no hábito de
corda ao pescoço e telecomando à mão,
afogados nos lençóis escorregadios da espera
de ver, um dia, a face idílica da epidemia
sussurando o bilhete da passagem proscrita.
Sei da condição, sinto-a a provocar-me
para a partir em pedacitos miseráveis quando assim fôr
a última forma de expressão
possível.

in fotosintese 2003

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