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domingo, 16 de março de 2008

Mais outra polémica

Casal gótico foi impedido de entrar num autocarro porque namorado passeava namorada com coleira e trela. Acusam o motorista de discriminação devido à maneira como estavam vestidos.
A história original aqui.



Já tinha visto esta notícia num fórum mas não foi suficiente para me causar reacção alguma excepto um ligeiro "isto há doidos para tudo". Agora que me foi enviada por email pelo Goldmundo, que ainda não tinha visto, sinto-me desafiada a comentar. Pois cá vai de minha (in)justiça o que penso disto.
Para ficar logo um ponto muito bem assente quanto à minha não parcialidade quanto ao tema, não gosto do conceito de bondage.
Como dizia o patrocínio de um jornal nos anos noventa aos lobos do Jardim Zoólógico de Lisboa (salvo erro, o "Independente"): "os lobos não usam coleira". Gosto de gente que não gosta de trela, nem para si nem para os outros. Gosto de gente como os gatos, que nos olha nos olhos à mesma altura sem se amedrontar com a diferença de tamanho. Isso sim, acho interessante. E os gatos também não suportam coleira.
Do bondage, e perdoem-me os bondagers pela franqueza, acho que são pessoas a precisar de muitas horas de terapia. Mas não tenho nada com isso. É que não tenho mesmo nada a ver com isso. Nem quero ter.
(Garanto desde já aos meus leitores que a minha agressividade aqui tantas vezes manifesta tem tanto de sexual como atirar um ferro de engomar à televisão durante o Prós & Contras. Nem sequer é agressividade. Isto já é fúria digna do Divino Iaveh quando enviou o Dilúvio à Terra. Mas hoje não quero divagar por aí portanto voltemos depressa ao casal de West Yorks.)
Chamar a isto discriminação por usar roupa gótica é tapar o sol com a peneira. Comparo a polémica (resguardadas as devidas distâncias) ao caso infeliz daqueles putos que se vestiam de preto e ouviam Marilyn Manson e decidiram limpar o sebo aos colegas do liceu de Columbine.
Taras e seus praticantes existem em todo o lado. É natural que os de aspecto mais estranho assustem mais as pessoas, que todavia ignoram completamente que o vizinho do lado, esse que usa camisa aos quadradinhos e meia branca, sim, esse, que tem quase 50 anos, filho extremoso que vive com a mãe e só sai de casa para trabalhar, santo homem que nunca casou nem anda atrás de mulheres, é um candidato mais provável a levar a roupinha num saquinho insuspeito, vestir-se de cabedal à entrada do clube ou no hall de entrada da casa da dominatrix, e gostar de umas valentes chicotadas no rabinho (a lembrar a infância), para logo depois voltar para a normalidade da mãezinha e dos autocarros da Carris.
Não ignoro que existam verdadeiros bondagers entre os góticos. Aqui aplica-se a célebre frase: "há góticos pagãos, há góticos cristãos, há góticos que não acreditam em nada". Não é a religião nem a atitude sexual que define o gótico.
O gótico nem é para aqui chamado. O direito dos bondagers de expressarem a sua bondagerie (não sei se a palavra existe mas é bonita e soa bem em francês), em público, é uma "luta" dos bondagers. Não só dos bondagers góticos como dos bondagers em geral.
Porque vamos lá ser sinceros. Não foi a roupa preta que aterrorizou o motorista (e provavelmente todos os passageiros do autocarro). Foi a trela. Roupa negra e maquilhagem de cadáver já é corriqueiro no Reino Unido, berço do próprio movimento gótico como o conhecemos hoje. Mas a trela levanta feridas de que a humanidade ainda há pouco se curou, como a servidão, a escravidão, a submissão feminina. Inconscientemente, até a mim, que gosto de parecer tolerante e sofisticada, me apetecia dar um par de estalos à miúda por se deixar mostrar assim. Mas não dou. Primeiro, porque ela era capaz de gostar. Segundo, porque cada um é livre de viver como escolheu.
A luta pelo direito de mostrar essa forma de vida em público, nomeadamente no que toca à sexualidade, é tão velha como aquela pelo direito de beijar na rua, de passear de mão dada com uma pessoa do mesmo sexo, ou de exibir a namorada por uma coleira. Mas essa luta não é dos góticos e sim das sociedades em geral. Ainda hoje dois homens não podem passear de mãos dadas no nosso país, góticos ou não.

Ainda sobre taras, que é um assunto que me interessa sobremaneira, no outro dia, entre as 21 e as 22h, passou na RTP2 um documentário do National Geographic sobre vampirismo, muito bem feito, por acaso, em que um casal de vampiros modernos mostrou a intimidade às câmaras. Ele era o vampiro, ela a dadora voluntária. Pela pinta até pareciam góticos mas não nos esqueçamos que do gosto estético de onde eles bebem também os góticos se servem (salvo seja): século XIX, romances de Stoker e Mary Shelley, filmes de Drácula. Na volta vestem-se de veludo púrpura e depois ouvem Shakira, que eu já sou demasiado velha para me deixar levar pelas aparências. Mas vamos ao que realmente interessa: o método consistia em fazer um corte na veia e verter o sangue para um copo (um copo pequeno, tipo cálice) que o rapaz se apressava a beber. Tendo em conta que ainda eram horas de jantar, muita gente deve ter mudado o canal. A mim, que papo vampiros ao pequeno almoço e não consigo dedicar-me ao prazer da comida sem a acompanhar de uma boa história, até abriu o apetite.
O vampirismo moderno é como o bondage, e não é para toda a gente mas só para quem quer. Confesso que me chocou menos do que passear alguém pela trela, se bem que os mesmos conceitos de "senhor" e "escravo" (vindos do bondage) estejam implícitas. Só ela dava, só ele recebia. Não havia reciprocidade.
Põe-se a questão às sociedades, até às mentes mais abertas, que se punha há séculos atrás: o que é permitido fazer em privado e em público. Até que ponto a liberdade individual pode ser limitada pelas regras socialmente estabelecidas? Podíamos ficar aqui séculos a discutir o assunto... e de facto ficaremos.
Quanto ao vampiro da reportagem (que por acaso --ou não-- era tão bom que até se comia sem fome) submeteu-se voluntariamente a testes clínicos que tentassem explicar porque se sente "fraco" e "sem energia" se não beber sangue. Do ponto de vista físico, nada o explicava. Não sofria de nenhum desequilíbrio ou carência de sais minerais (razões pseudo-científicas avançadas por algumas comunidades de vampiros modernos para explicar o fetiche). Nada de nada. Era tudo psicológico.
Imagino o senhor motorista se aquele casal (em vez do outro) se tivesse dado a corte de pulsos e a bebedeiras de sangue no banco do autocarro... E mais uma vez, o que isso tem a ver o gótico? Nada de nada.


Excepto, claro está, a realidade dos números. O que me leva a outro dos meus temas preferidos. Já o disse aqui uma vez, a propósito desta outra fotografia polémica, que somos saloios e provincianos, e penso que muitos me levaram a mal, se bem que injustamente, por isso.

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Mas somos de facto saloios, provincianos e periféricos. O país tem apenas 10 milhões de habitantes. Na Grande Lisboa estão uns 2 milhões. Neste universo, devem existir apenas uma centena de góticos que se assumem como tal e umas duas ou três centenas de simpatizantes que, não se assumindo góticos, apreciam isto ou aquilo no movimento e frequentam os bares e as festas. Não conheço muito do Porto mas do que sei a situação é idêntica. No interior então (aqui vai um grande abraço para o gótico do Portugal profundo) nem se fala. Basta pensar na Espanha aqui ao lado, com quarenta e tal milhões de espanhóis e movimento gótico a condizer. É tudo uma questão aritmética. Se o universo é pequeno, tão pequeno que se não fossem os metaleiros frequentarem os bares góticos estes não tinham viabilidade, basta um corpete mais ousado para fazer um brilharete. Ao contrário de outros países da Europa e dos Estados Unidos, não temos números para fazer uma sub-cena vampírica, e uma sub-cena bondage, e uma sub-cena industrial... Enfim, acho que estão a ver a coisa. Mas os grandes países têm os números, e fazem-nas! E há rivalidades e pessoas que associam todo o conceito à sua sub-cultura, afunilando-o.
No nosso país, e não faço mais do que expressar o facto, não há espaço para isso. Bondagers, lolitas, electros, old school, góticos gay, é tudo à molhada e fé em Deus que o bar não feche e as festas continuem. Por mim, desde que não me mordam o pescoço ou me tentem atrelar, pretos e brancos, novos e velhos, metaleiros e electrónicos, venha também quem vier por bem. A intolerância é como o instinto de caçador. Todos temos mas não é por isso que não nos esforçamos por transcender a Natureza e sermos mais do que Humanos. Pelo menos alguns tentam. Muitos até conseguem. E isto, meus amigos, tem tanto a ver com o gótico como simples facto de que, embora às vezes nos esqueçamos, no fundo até somos todos pessoas.