in "O Cocheiro da Morte", de Selma Lagerlöf
"Já viram com certeza gravuras representando a Morte, e viram-na sempre a andar a pé. Razão porque o cocheiro de que vos falo não é a Morte em pessoa, mas apenas o seu criado. Compreendem que um personagem tão importante só se digna recolher a fina flor da colheita, e é ao seu cocheiro que confia a tarefa de juntar as pobres ervinhas que crescem à borda dos fossos."
(...)
"Mas compreendem agora do que é que o meu camarada tinha medo. Era de morrer precisamente à meia noite, na véspera do Ano Novo, e de se tornar o cocheiro da Morte. Suponho que imaginava ouvir durante todo o dia o coche funerário a chiar e a baloiçar sobre as estradas. E, imaginem, parece que morreu no ano passado, precisamente na noite de S. Silvestre.
- E mesmo à meia-noite?
- Sei, apenas que morreu à noite, mas ignoro a hora. Poderia, aliás, ter-lhe predito que havia de morrer nesse dia, tal era o medo que tinha. Se uma ideia parecida se apoderasse de vocês, eram capazes de ir também."
Li pela primeira vez esta história numa época mental muito susceptível, devia ter menos de 17 anos, e em mim estas palavras suscitaram não o horror mas um enriquecimento mitológica que antes não tinha (a lenda é escandinava) e nunca mais me abandonou. Com o passar dos anos -- e à medida que os anos passam é forçoso que o ser humano se questione o que fará depois da morte, se alguma coisa... -- surgiu em mim a fantasia do cocheiro do Morte, vinda directamente deste livro. Fantasia? Não. Projecto. Se me fosse dado a escolher, tornar-me-ia o cocheiro da Morte dos animais: recolhendo todos os despojos dos matadouros, todos os pequenos corpinhos destroçados à beira de estradas do ser humano egoísta, todos os animais de estimação perdidos no vazio. Seria a cocheira da Morte dos meus melhores amigos.
"Se uma ideia parecida se apoderasse de vocês, eram capazes de ir também"?...
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