domingo, 31 de dezembro de 2023

Charlie Says / O Culto de Manson (2018)

Gosto muito de filmes que retratam cultos, não apenas o de Charles Manson, mas também. É um erro pensarmos que não nos pode acontecer a nós. Conhecermos os meandros do fenómeno é a única maneira de nos protegermos de uma lavagem cerebral aos primeiros indícios de alarme, porque eles existem.
Não acontece do dia para a noite. “Charlie Says” conta a história pela perspectiva das três mulheres “Mansonitas” que cometeram homicídios a mando de Manson, quando estas já estão na prisão. Passados meses, anos, ainda acreditam em tudo o que Manson “profetizou”, como se este fosse um messias. Na verdade, Manson chegou a arrogar-se ser a segunda vinda de Cristo.
Mas nem tudo eram rosas no rancho onde a comunidade de Mason (a Família) se estabeleceu, longe disso. A princípio Manson é um homem carismático, acolhedor, bem-humorado, com ideias que agradam aos jovens hippies da altura. LSD e orgias são a norma. Todos os membros são incentivados a sentirem--se perfeitos, belos, e a deixarem para trás o “ego”. Quando as raparigas aliciadas já pertencem à comunidade, tudo muda. As mulheres não são autorizadas a ter dinheiro nem a ler nada senão a Bíblia. Outra coisa que eu não sabia: as mulheres só podiam começar a comer depois dos homens. (Ainda outro dado importante que não aparece muito salientado neste filme: as crianças eram retiradas às mães e criadas num infantário colectivo sob a supervisão das Mansonitas mais fanáticas para melhor controlar as mulheres que pensassem em desertar.) Manson chega a ser violento para com uma das discípulas como qualquer marido abusador, mas tudo isto é atribuído ao “amor”. Não era só uma forma de controlo, mas várias, o que lentamente ia formatando os indivíduos ao culto a ponto de acreditarem em tudo o que Manson dizia. E o que ele dizia era verdadeiramente absurdo: ia haver uma guerra racial, o Helter Skelter (segundo a canção dos Beatles). Usando ideias bíblicas, no Apocalipse cinco gafanhotos seriam mandados como praga para a humanidade. Quatro eram os Beatles, Manson era o quinto. Completamente delirante. Manson manda os discípulos cometerem crimes e darem a entender que foram os negros, para começar a guerra. A Família de Manson ia então refugiar-se nas profundezas do abismo de que fala o Apocalipse e só emergiria quando a guerra terminasse. Há mais, mas fiquemos por aqui.
Fascinante! Mais fascinante ainda é como é que jovens normais (se bem que inseguros e à margem da sociedade) acreditaram nisto tudo. Nunca é demais estudar estes fenómenos.
Como bom sociopata que era, Manson teria razões muito próprias e vingativas para ordenar os primeiros homicídios. Conhecido de Dennis Wilson, dos Beach Boys, Manson tinha ambições de se tornar uma estrela rock. Através deste conheceu o produtor Terry Melcher, que ouviu a música de Manson e não o contratou. Furioso, Manson manda os discípulos a casa de Melcher para o massacre. Só que entretanto Melcher tinha-se mudado e a casa estava alugada pela família de Roman Polanski (ausente nessa noite). O homicídio brutal da modelo Sharon Tate, esposa de Polanski e grávida de 8 meses, foi o crime hediondo que deu cara às vítimas. Segundo várias fontes, nos seus últimos momentos Tate ofereceu-se como refém para que a levassem e não a matassem até o bebé nascer. Não valeu de nada.
Este filme e outras séries/documentários contam a história, acrescentando mais pormenores. É cómodo preferir não conhecer os detalhes porque são demasiado chocantes. Mas nos dias da internet é ainda mais fácil estabelecer um culto, religioso ou outro. Toda a vigilância é pouca e começa nas nossas cabeças. Se cheira a culto, se tem contornos de culto, se a palavra do “líder” não pode ser questionada, então é um culto.
Filmes como este são mais documentários romanceados do que cinema propriamente dito, mas são obrigatórios.

13 em 20


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Another Earth / Outra Terra (2011)

[contém spoilers]

Ao ler a sinopse este filme pode parecer ficção científica mas na verdade é um grande dramalhão para chorar do princípio ao fim.
Rhoda Williams é uma jovem que acaba de entrar no MIT com apenas 17 anos. Toda a vida à sua frente e um futuro muito promissor. Depois da festa de celebração, em que houve bebida e possivelmente drogas à mistura, Rhoda conduz de regresso a casa.
Nesse preciso dia foi descoberto um planeta que parece um duplo da Terra, visível a olho nu no céu nocturno. Rhoda distrai-se a olhar para o planeta e choca frontalmente com um carro de uma família parado nos semáforos, matando imediatamente a mãe grávida e uma criança pequena.
Condenada por homicídio involuntário, Rhoda é libertada quatro anos depois por ser menor à altura, mas todo o seu futuro desapareceu. Vive atormentada pela culpa, aceita um emprego em limpezas para se castigar e tenta suicidar-se por hipotermia. Não conseguindo matar-se, decide ir a casa do sobrevivente do choque frontal, o compositor e professor de música John Burroughs (William Mapother, que para mim será sempre o Ethan de “Lost”). O que Rhoda encontra é desolador. O homem desistiu de viver, passa os dias a tomar medicação e a beber, a sua casa parece uma pocilga. Rhoda perde a coragem de pedir desculpa e apresenta-se como funcionária de uma empresa de limpezas a oferecer uma primeira experiência grátis. Burroughs hesita mas acaba por aceitar e “contratar” o serviço uma vez por semana.
Durante meses, Rhoda limpa-lhe a casa e de vez em quando conversam sobre a Terra 2, designação que foi dada ao novo planeta que agora está tão perto da Terra que parece maior do que a Lua. Descobre-se também que a “nova Terra” é um “duplicado” da Terra, em que existem precisamente as mesmas pessoas que existem na Terra e que têm nomes e percursos de vida iguais. É como se Deus tivesse tirado uma fotocópia da Terra.
Ora, é aqui que a ficção científica é mais absurda do que a hipótese da intervenção divina. Um planeta da dimensão da Terra, a orbitar o Sol, nunca passaria despercebido aos astrónomos. E este planeta não poderia ter outra órbita ou imediatamente se tornaria frio como Marte ou quente como Vénus. Nem podia ser como os cometas, a vogar pelo universo gelado para só aparecer uma vez em centenas de anos. Logo, é melhor esquecer qualquer plausibilidade científica e encarar este planeta como hipótese, um “e se houvesse um espelho da Terra algures”?
Uma empresa está a organizar um concurso para uma viagem espacial de visita à Terra 2, e Rhoda candidata-se sem acreditar que pode ser escolhida. Entretanto, a relação com Burroughs torna-se cada vez mais íntima e até romântica. A presença dela reavivou-lhe o interesse pela vida. Mas quando Rhoda lhe conta quem é, inevitavelmente, Burroughs expulsa-a da sua frente. No entanto, Rhoda ganha um lugar na viagem para a nova Terra e coloca-se a questão: talvez os percursos de vida nesse planeta tenham sido iguais até ambos se interceptarem. Nesse caso, a família de Burroughs ainda pode estar viva. Num último acto de redenção, Rhoda oferece-lhe o bilhete e ele aceita ir em vez dela.
Gostei muito do filme, não pelo aspecto da nova Terra, que não passa de um cenário hipotético, mas pelo drama realista na vida destas pessoas. O fim veio estragar o que estava a correr tão bem. Mesmo que a família de Burroughs ainda estivesse viva, não estaria ele lá também, e, logo, não haveria lugar para ele na vida deles? Não era melhor deixá-los em paz? E o que significa o encontro de Rhoda com a sua “dupla” do novo planeta? Desagradou-me que “Another Earth” tivesse deixado estas respostas em aberto e sem sentido. Todo o tema central do filme é a possibilidade de redenção e novas oportunidades. Não percebo como é que o fim se encaixa no tema.

16 em 20
 

domingo, 24 de dezembro de 2023

SurrealEstate (2021 - ?)

A fórmula de “Sobrenatural” deve ter feito escola porque “SurrealEstate” segue exactamente na mesma linha. A premissa é interessante: Luke Roman é o dono de uma agência imobiliária especializada em vender casas assombradas. Tirando este “pormenor”, a agência utiliza todas as práticas de vendas e eufemismos típicos do negócio. Por exemplo, a uma casa assombrada chamam antes “metafisicamente estigmatizada”. Roman tem uma equipa de peritos que tratam de “limpar” a casa de assombrações ou possessões antes de a venderem a um novo dono, o que permite uma assombração-da-semana como em “Sobrenatural”. O próprio Roman tem o dom, desde infância, de ouvir o mundo do Além.
Tal como em “Sobrenatural”, a par com os casos da semana a temporada tem uma história principal. Roman está obcecado com uma casa em especial, onde a mãe dele, que vivia na casa ao lado, entrou para se queixar das ervas daninhas no jardim e simplesmente desapareceu. Uma das cenas mais interessantes homenageia uma passagem do “Exorcista”, em que Roman é visto a observar a mansão como o padre Karras a chegar a casa de Regan.
Porque é que eu digo que a fórmula é a mesma de “Sobrenatural”? Porque o género é evidentemente Sobrenatural, mas o enredo principal + monstro-da-semana permite que a série explore tudo o que lhe apetecer: o cómico, o dramático, o romântico, e, obviamente, o terror, sem que o terror alguma vez chegue a meter medo. Aqui é tudo sobre as personagens, cativantes e tridimensionais. Eu, pelo menos, consegui sentir empatia por alguns deles.
Penso que, tal como “Sobrenatural”, esta série poderá vir a ter muito para dar se, para além do entretenimento das casas assombradas, as personagens continuarem a ser bem desenvolvidas. Uma boa alternativa para quem tem saudades de “Sobrenatural”.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: “Sobrenatural”, exorcistas, casas assombradas 


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Life / Vida Inteligente (2017)

Citando o outro, há que dizê-lo com frontalidade: quando vemos um filme qualquer no canal SyFy esperamos uma chachada para entreter e esquecer. Não é o caso de “Life”, uma boa surpresa.
Os astronautas da Estação Internacional recebem uma amostra de solo vindo de Marte com um presente envenenado: uma bactéria dormente, prova de que existiu vida no planeta vermelho. Em condições controladas, os cientistas tentam “despertá-la” com várias experiências. Até que conseguem. E a bactéria começa a crescer, a crescer… Desde pequenina, do tamanho de uma folha de chá, já se notava que queria abocanhar o dedo do cientista. Foi mais fácil crescer o suficiente para devorar o ratinho do laboratório. Imediatamente os astronautas tentam matar o organismo, mas este é inteligente e esconde-se na nave, tentando assimilar os recursos disponíveis: a água, o oxigénio… e a carne. Os astronautas percebem que não podem deixar o organismo chegar à Terra, mas o organismo também percebe que a Estação Internacional não lhe chega. Começa uma batalha desesperada pela sobrevivência. Uma das espécies não vai sair bem disto.
É claro que “Life” é quase uma imitação de “Alien” (embora o organismo me pareça antes o monstro de “Stranger Things”) mas não lhe faltam méritos próprios e uma maior simplicidade. Eu roí as unhas do princípio ao fim. Não estava nada à espera de um filme tão bom. A crítica tem sido feroz (porque, lá está, é quase o “Alien”) mas eu gostei e recomendo aos apreciadores de ficção científica de terror. Até recomendo mais aos apreciadores de terror do que aos de ficção científica, porque terror não falta.

15 em 20

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Nadie Quiere La Noche / Nobody Wants the Night / Ninguém Quer a Noite (2015)

Poucos filmes têm um título tão desastrado. Resultado de uma produção espanhola, belga e búlgara, o título original é “Nadie Quiere La Noche”, mas já vi traduzido para “Nobody Wants The Night” e até “Endless Night”. O título português segue o original: “Ninguém Quer a Noite”.
Isto é o perfeito exemplo de um título mal pensado, até porque não nos diz nada da história. Parece mais um filme sobre prostitutas e é o suficiente para afastar potenciais interessados. Mesmo no contexto do filme, em que a frase é efectivamente proferida, é um diálogo forçado e bizarro, algo que ninguém diria naquela situação. Começa mal.
Mas o filme é melhor do que o título e merece atenção. Esta é a história de duas mulheres sozinhas nos rigores do Árctico, a lembrar a série “The Terror”.
Josephine Peary, mulher do explorador americano Robert Peary, que alegou ter sido o primeiro a alcançar o Pólo Norte em termos geográficos, é também uma aventureira e acompanhou o marido em diversas expedições ao Árctico. Em 1908 não o acompanhou desde o início, facto que nunca é explicado. Josephine diz apenas que o seu casamento de vinte anos se baseia na busca pelo Pólo Norte (inclusivamente, ela deu à luz durante uma dessas expedições) e que, desta vez, porque tem a certeza de que ele vai conseguir o objectivo, tem de estar lá com ele.
Para tal, Josephine paga uma mini-expedição que a leve a um posto seguro muito longe da civilização, uma cabana de madeira, quando já é Julho (quase inverno em termos polares). Tal como em “The Terror”, Josephine manifesta toda a arrogância da classe alta da altura. Começa logo por matar a tiro um urso polar, com todo o orgulho e petulância, como se estivesse numa caçada na terra dela. Não quer ouvir os conselhos de que já é tarde para partir. Faz-se acompanhar de baús com roupas caras, talheres, pratos de porcelana e copos de vidro. Igualmente como em “The Terror”, o racismo e o antropocentrismo impregnam as mentalidades da época. A morte de um esquimó durante uma expedição era considerada irrelevante. Os cães não eram permitidos dentro de tendas ou cabanas, o que é um erro colossal porque os animais contribuem para o calor. Por outro lado, compreende-se esta última questão, uma vez que os cães eram vistos como fornecedores de outras comodidades…
Josephine, segundo o espírito dos tempos, força tudo e todos a atravessar um estreito de gelo movediço (onde perde o melhor guia que tem) até encontrar a pequena cabana. O seu objectivo é esperar pelo marido antes do inverno polar. Mas é demasiado tarde, como todos lhe disseram, e ele não vem. A única Inuíte que não a abandona é uma rapariga chamada Allaka, que, Josephine vem a descobrir depois, espera um filho precisamente do marido de Josephine.
Na falsa segurança da sua cabana de verão de paredes finas e janelas de vidro, embora os recursos estejam a escassear e já não haja caça, Josephine dá-se ao luxo de recusar a carne de morsa crua oferecida por Allaka. Faz mal, porque assim que chega o inverno polar, a tal noite sem fim, Josephine começa a sofrer de escorbuto. Uma tempestade de neve com fortes rajadas de vento destrói completamente a cabana e Josephine não tem outro remédio senão abrigar-se dentro do iglu de Allaka, a única estrutura que resiste.
A comida acabou-se e receei que se seguisse o canibalismo. Tal não chegou a acontecer, mas por muito pouco.
Esta é a história da amizade improvável entre duas mulheres em condições extremas, onde apenas importa a sobrevivência por todos os meios. Duas mulheres que se colocaram propositadamente naquela situação: uma por arrogância, outra por fatalismo. O Árctico não respeita motivações, nem berço ou dinheiro, nem os nativos da terra, nem sequer os animais. Como se diria em “O Terror”: este sítio quer ver-nos mortos.
Aconselho este filme a toda a gente, apesar de poder e dever ser chocante.

15 em 20

 

domingo, 10 de dezembro de 2023

The Haunting of Hill House (2018)


“The Haunting of Hill House” é uma série baseada no romance homónimo de Shirley Jackson de 1959. Seria difícil não gostar da série porque “The Haunting” é um dos meus filmes de terror preferidos de todos os tempos (o de 1963, não o de 1999 que não interessa nada). Não li o livro e não consigo avaliar qual é a melhor adaptação, mas deduzo que a narrativa televisiva não possa ser igual à cinematográfica.
Na verdade a série devia antes chamar-se “The Hauting of the Family Crain” porque a assombração persegue esta família durante décadas. Um dos personagens até diz que “a casa considera a família uma refeição inacabada” (ipsis verbis).
A acção passa-se no início dos anos 90, mas todo o ambiente foi pensado para dar uma ideia de intemporaralidade: podia ser nos anos 60, 70 ou 80. A família Crain compra a Mansão de Hill House, na sequência da morte da última herdeira dos Hill, no intuito de a reabilitar e voltar a vender o mais depressa possível para poderem então construir a casa dos seus sonhos. Nunca é dito mas está implícito que Olivia Crain, a mãe, é arquitecta (foi ela quem desenhou esta casa de sonho) e que Hugh, o pai, é o mestre-de-obras. Os Crain têm cinco filhos: Steve, Shirley, Theodora, e os gémeos Nell e Luke. (Só isto é um terror: cinco filhos!) A casa tem uns 100 anos e foi construída à vontade dos Hill a imitar um edifício vitoriano, algo entre um castelo e uma abadia, um verdadeiro horror estético de estilos e gostos duvidosos por dentro e por fora. Mas a casa é grande, espaçosa, ideal para uma família abastada com apetência por residências retro e uma grande sala de bailes, por isso os Crain pretendem passar lá apenas uns dois meses para a remodelar e pôr no mercado. Estes planos vão por água abaixo quando Hugh descobre um problema de bolor negro desde o terceiro andar até à cave (bem-vindos ao meu inferno, família Crain).
Hugh não desiste (até porque empatou todo o dinheiro na casa), mesmo quando coisas suspeitas começam a acontecer. Nell e Luke queixam-se de ser assombrados durante a noite mas ninguém os leva a sério. Mais grave ainda, Olivia começa a agir de forma estranha e a ter enxaquecas e sonhos muito vívidos em que fala com antigos habitantes da casa.
Quem se lembra de “The Haunting” de 1963 vai reconhecer alguns elementos que fizeram deste um grande filme de terror e que têm sido inclusivamente utilizados em filmes posteriores:
O casal Dudley, os caseiros que vivem na extremidade da propriedade e se recusam terminantemente a permanecer na casa de noite. É Clara Dudley quem diz, e repete, o aviso que ninguém ali deve ficar “in the night, in the dark” que nos arrepiou em “The Haunting”.
Os cães a ladrar que os miúdos ouvem à noite mas nunca se vêem.
A escadaria de ferro forjado em espiral na biblioteca.
As pancadas nas paredes e nas portas.
A cena em que alguém aperta a mão de uma das irmãs adormecida, que esta julga ser a irmã mais nova, mas não está ninguém na cama.
O berçário, chamado em “The Haunting” “o coração da casa” e aqui apelidado antes de “estômago” – bem apanhado!
A intenção, desta vez expressa pelo pai, de queimar a casa e salgar o terreno.

Todas estas passagens se encontram em “The Haunting”, mas “The Haunting of Hill House” não é apenas uma série de terror com assombrações e sustos e quem esperar isso vai ficar desapontado. Pelo contrário, existe uma componente dramática muito forte que me recorda outra grande série, “Six Feet Under” (se não viram deviam ver urgentemente!), sobre os problemas de uma família dona de uma agência funerária (uma das irmãs, Shirley, também é agente mortuária). E se há drama nesta família! Olivia, a mãe, suicidou-se em Hill House, atirando-se do patamar superior das icónicas escadas de ferro. O pai, Hugh, nunca quis explicar exactamente o sucedido, embora tenha perdido a custódia das crianças que cresceram com a tia materna. Steve julga que a mãe enlouqueceu e que o pai é culpado de não lhe ter prestado os cuidados devidos. Shirley tornou-se uma controladora ao extremo. Theodora tem o dom de captar vibrações sobrenaturais com o toque e anda sempre de luvas para o evitar. Luke tornou-se toxicodependente. Nell também tem problemas psicológicos, terrores nocturnos e provavelmente stress pós-traumático. Tudo remete para a casa embora ninguém lá more há mais de 20 anos. Hill House continua a assombrar os Crain, apesar das vidas normais que eles tentam levar. Como disse o pai, “uma refeição inacabada”.
A primeira a sucumbir ao apelo da casa é Nell, que se “suicida” nas escadas de ferro da mansão abandonada e vazia. (Peço desculpa pelo spoiler, mas é o que provoca todo o desenlace; ademais, acontece logo nos primeiros episódios e não é exactamente um suicídio…) Gosto tanto do drama desta série que um dos meus episódios preferidos é quando toda a família se junta para o velório e tem uma discussão “das antigas”, com toda a gente a apontar as culpas uns dos outros, a falar nas costas uns dos outros, a atirar à cara quanto dinheiro uns devem aos outros, etc, tudo sem qualquer necessidade de assombrações. É delicioso.
Mas isto é “The Haunting of Hill House” e não fica por aqui, evidentemente. O terror está apenas a começar.
A série tem as incontornáveis influências de clássicos como “Amityville” (o original) e “The Shining”, embora neste último caso seja mais ao contrário (Stephen King chegou a escrever sobre o livro de Shirley Jackson).
Não posso revelar qual é a verdadeira assombração da casa, mas começa tudo com um quarto fechado que ninguém consegue abrir. É de arrepiar os ossinhos. Adorei o puxador em forma de leão e o efeito especial dos créditos de abertura.
Curiosamente, tal como em “American Horror Story: Hotel”, quem morre na casa fica lá para sempre como fantasma. Algumas pessoas, por vários motivos, decidem morrer na casa de propósito por essa razão. Pergunto-me se a ideia também está no livro original? Tenciono ler o mais depressa possível. “The Haunting of Hill House” é uma série a não perder pelos amantes de terror.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes

PARA QUEM GOSTA DE: Six Feet Under, Amityville, The Shining, casas assombradas

 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

The Dead Don't Die / Os Mortos Não Morrem (2019)


Comecei a ver “The Dead Don't Die” no canal SyFy à espera de uma comédia com zombies que não me fizesse pensar, e muito menos escrever uma crítica porque já tenho muitas para publicar e dão trabalho. Saiu-me um filme satírico de Jim Jarmusch, o mesmo realizador do excelente “Only Lovers Left Alive”, com cameos de Tom Waits e Iggy Pop e um enredo a puxar para o surrealista. Não é todos os dias que isto acontece!
Na pacata cidade de Centerville, “a real nice place” como diz o cartaz de boas-vindas, coisas estranhas começam a acontecer. Devido ao fracturamento hidráulico nas regiões polares em busca de gás natural, também conhecido por fracking, as notícias informam que a Terra saiu do seu eixo. Os dias estão mais longos, as noites caem subitamente. Todos os animais domésticos desapareceram dos donos. Até os animais de quinta, como galinhas e vacas, fugiram para a floresta.
A terrinha tem três polícias, e o mais novo observa os acontecimentos e diz umas três vezes “isto não vai acabar bem”.
De facto, os mortos começam a levantar-se do cemitério, mas não querem apenas comer os vivos. Continuam a desejar aquilo que mais ambicionavam em vida: os miúdos que morreram há mais tempo querem doces e brinquedos, alguns zombies do sexo masculino cercam a loja de ferragens, uma rapariga zombie quer ser modelo, alguns zombies mais jovens andam com um telemóvel na mão a murmurar “wi-fi, wi-fi”. O que não quer dizer que não comam os vivos quando os apanham; é que têm outras prioridades. Lembram-me os zombies músicos do coreto de “Land of the Dead”, que apesar de zombies continuavam a tentar tocar os instrumentos (muito mal, mas tentavam). Este sim, “Land of the Dead”, tem aspectos muito cómicos e satíricos. Já não foi isso que senti com “The Dead Don't Die”, apesar de o filme se assemelhar em temáticas e inclusivamente quebrar a quarta parede (termo usado no teatro quando os actores se dirigem directamente ao público) na minha opinião sem necessidade e sem o pretendido efeito cómico, o que ainda é pior.
Além desta homenagem a George Romero, noto aqui também vibrações de “Fargo” (os polícias da cidade em que nada acontece que se deparam com um apocalipse zombie que não têm capacidade de enfrentar). Mais do que apenas “vibrações, na verdade, já que o actor de “Fargo” Steve Buscemi (o da trituradora, lembram-se?) entra neste filme. Já a cangalheira-samurai Zelda (Tilda Swinton, a vampira de “Only Lovers Left Alive”) foi muito desaproveitada e sinceramente não percebi o que é que o realizador quis dizer com aquilo.
Já que é um filme sério, vamos falar a sério. O problema foi mesmo esse. Não percebi porque é que Jim Jarmusch, em 2019, achou relevante fazer um filme de zombies como metáfora da sociedade consumista, algo que Romero e os outros todos andam a fazer desde os anos 70 ou 60 (se contarmos o primeiro “Night of the Living Dead”, embora eu não o considere exactamente sobre consumismo). Jarmusch vai ao ponto de pôr Tom Waits a verbalizar “eles já estavam todos mortos”, como se a gente ainda não tivesse percebido. Não encontrei aqui um rasgo de originalidade que pudesse granjear pontinhos ao realizador, por muito que o procurasse. Nem consegui achar piada, o que é mais grave numa comédia. Penso que Jarmusch queria realmente fazer algo único que nunca saiu do papel. Mesmo assim, recomendo a todos os amantes de zombies.

14 em 20

domingo, 3 de dezembro de 2023

Regression / Regressão (2015)

O Mal existe e o Diabo tem as costas largas.
Uma rapariga de 17 anos acusa o pai de abuso sexual, no que parece um caso vulgaríssimo. O pai assume a culpa, garantindo que a filha Angela “nunca mente”, mas ao mesmo tempo diz não se lembrar de nada. É chamado um psicólogo que tenta entrevistá-lo através de um método chamado regressão. Subitamente, tanto o pai, como o irmão da rapariga, que há muito saiu de casa, começam a recordar pormenores de rituais satânicos que incluem missas negras, mutilação, ameaças de morte, sacrifício de animais e bebés e até canibalismo.
O caso chega aos media e o pânico instala-se na sociedade. Pior que isso, o medo alastra também aos polícias encarregues do caso. O próprio detective principal, Bruce Kenner, começa a ter pesadelos vívidos com missas negras e rituais e decide usar sempre uma cruz e rezar, apesar do seu agnosticismo. Ao mesmo tempo, também ele começa a sentir-se vigiado por cidadãos sinistros que o olham fixamente em todo o lado, e recebe chamadas a meio da noite em que ninguém fala. Tudo isto o convence de que está realmente perante uma rede de cultos satânicos e que tanto ele como Angela correm risco de vida. A avó de Angela, por exemplo, que também não se lembra de ter participado em qualquer ritual, acaba por ficar tão convencida de ter sacrificado um bebé (como Angela diz que ela fez) que se atira da janela de casa.
O que me custa a acreditar é que este filme tenha sido realizado por Alejandro Amenábar, o mesmo realizador de “The Others”, um dos melhores filmes que já vi na vida. Se não tivesse lido, não acreditava. “The Others” é tenso e arrepiante do princípio ao fim, e mantém-nos no mistério até o decidir revelar. Nicole Kidman faz um dos melhores papéis da sua carreira, mas não vou culpar os actores pelo desastre que é “Regression”. Não, vou culpar mesmo a realização. Lamento, mas descobri tudo a meio do filme, numa cena que não vou mencionar para não cometer spoilers. A partir daí, seguiu-se apenas a confirmação das minhas suspeitas, ainda o detective andava a caçar diabos. O que me espanta mais é que é um filme de 2015, em que os espectadores (principalmente os espectadores deste género thriller / suspense) já não vão em qualquer cantiga ou sugestão.
Decepcionante é dizer pouco.

13 em 20


domingo, 26 de novembro de 2023

“Seer of Sevenwaters”, de Juliet Marillier


De todos os livros que já li de Juliet Marillier este é o que entra mais no género Fantástico. Claro, a Fantasia faz parte do Fantástico em sentido lato, mas a Fantasia de Marillier é sempre muito humanizada. Há os Fair Folk e os Good Folk, raças de fadas, mas também estes têm personalidades e motivações muito humanas, um mundo paralelo com reis e rainhas e súbditos como os humanos, e muitas vezes tentam mesmo manipular o mundo humano para os seus propósitos. Em “Seer of Sevenwaters” temos uma serpente marinha gigante e mágica!
Desde “Daughter of the Forest” que Marillier conta histórias de selkies, sempre como se fossem folclore e mito. Uma selkie é uma criatura marinha que pode largar a sua pele verdadeira e assumir forma humana, mas quem estiver na posse da sua pele tem controlo sobre a selkie. Desta vez temos mesmo uma personagem selkie, o que me surpreendeu bastante. Não me faz gostar menos ou mais, apenas me diz que Marillier se quis lançar em domínios mais aventurosos (e arriscados) do que os dramas românticos que até aqui a caracterizam.
“Seer of Sevenwaters” é a história de Sibeal, a quinta filha de Sean e Aisling e neta de Sorcha e Red, que desde pequena tem dons de vidência e sonha tornar-se druida. Por esta altura Sibeal já passou muito tempo com os seus tios Conor e Ciarán no treino druíco e está prestes a dedicar-se inteiramente, o que significa uma vida de celibato, contemplação e ritual. Antes de fazer aquilo que numa monja chamaríamos “tomar o véu”, no entanto, é mandada para a ilha de Inis Eala, onde passa o verão com o primo Johnny e duas das suas irmãs. Quando Sibeal lá está, uma violenta tempestade faz naufragar um barco nórdico contra os penhascos de Inis Eala. Há poucos sobreviventes, mas Sibeal consegue descobrir um último, de quem vimos a saber chamar-se Felix, ainda agarrado aos rochedos. Felix está amnésico, mas mesmo assim é ameaçado em segredo por Knut, outro sobrevivente, para não revelar nada do que viu no barco.
Enquanto cuida de Felix na enfermaria de Inis Eala, Sibeal percebe que se apaixonou por ele e que é correspondida, o que lhe põe o maior dilema da sua vida: desistir do druidismo, casar com Felix e eventualmente ser mãe, ou virar as costas ao amor para sempre? Haverá uma terceira opção?
Muito do livro é a paixão entre Sibeal e Felix (até um pouco demais, na minha opinião) antes de percebermos que a grande aventura vai centrar-se em Svala, outra sobrevivente, e a serpente marinha gigante comedora de homens. Disto não vou dizer nada por causa dos spoilers.
“Seer of Sevenwaters” não é, na minha opinião, o melhor de Juliet Marillier, mas não lhe falta a qualidade que já lhe conhecemos. Infelizmente, desta vez, não aconteceu nada de perturbador como estou habituada nos livros de Marillier, o que me decepcionou um pouco.
(Não, uma serpente marinha que come pessoas não é perturbador, é apenas Natureza. Podia ter sido um urso, um leão, outro animal feroz qualquer. É um acontecimento infeliz, sem dúvida, mas para mim são necessários elementos mais estranhos para ser considerado perturbador.)


terça-feira, 21 de novembro de 2023

The Lost City of Z / A Cidade Perdida De Z (2016)


Todos gostamos de filmes de exploradores, mas eu prefiro os antigos, aqueles que se faziam à aventura sem GPS, sem helicópteros de resgate, sem qualquer contacto com a civilização, muitas vezes sem saberem para que lado era o Norte (em “The Terror”, por exemplo, as bússolas enlouquecem no campo magnético do Árctico).
Esta é uma história real. Em 1905, Percival Fawcett, major do exército britânico, não tem muito para mostrar em termos de carreira quando é enviado pela Royal Geographical Society para cartografar a fronteira entre o Brasil e a Bolívia, importante para a exploração de borracha em plena selva amazónica. Durante a expedição, Fawcett descobre artefactos e esculturas antigas que o convencem da existência de uma cidade escondida na selva.
De regresso a Inglaterra, Fawcett é ridicularizado por considerar que haveria uma civilização amazónica mais antiga do que a ocidental (embora os seus pares conhecessem os Incas, os Astecas e os Maias desde o tempo dos conquistadores, pelo que esta questão não colhe grande argumento) mas consegue financiamento para uma segunda expedição.
Percival é casado com Nina e tem um filho que mal conhece devido à longa ausência. Nina insiste em acompanhá-lo desta vez, mas Percival recusa. Na minha opinião, com toda a razão. A viagem é extremamente perigosa, os exploradores correm risco de vida, e um dos elementos do casal tem de ficar a tomar conta das crianças já que não parece haver outra família que os substitua. Na altura, não havia destino mais infernal do que ser órfão. (Não existe destino mais infernal do que ser órfão.)
A expedição é um fracasso e Fawcett tem de regressar. Entretanto começa a 1ª Guerra Mundial e é mobilizado para a frente, onde é promovido.
Ainda obcecado com a cidade perdida de Z, Fawcett regressa ao Amazonas graças ao financiamento de vários jornais da especialidade (segundo o filme). Desta vez leva consigo o filho Jack, que passou tão pouco tempo com o pai que agora só quer acompanhá-lo para todo o lado. Ninguém sabe como terminou esta última expedição. Ambos desapareceram sem deixar rasto.
O filme dá-nos várias hipóteses, nenhuma delas definitiva. Mesmo conhecendo o fim da história, recomendo “The Lost City of Z” a todos os amantes de exploradores pioneiros, mesmo aqueles que nunca regressaram.

14 em 20

domingo, 19 de novembro de 2023

Pride and Prejudice and Zombies / Orgulho e Preconceito e Guerra (2016)


Alguém deve ter achado muita graça a fazer isto. Alguém que provavelmente foi obrigado a ler “Pride and Prejudice” na escola. Da mesma forma que nós acharíamos piada a um título como “A Tragédia da Rua dos Zombies”, “Os Zombíadas” ou “Frei Zombie de Sousa”. Mas a questão é: será mesmo engraçado?
Este filme, por exemplo, não tem graça nenhuma. Nem como comédia, nem como sátira, nem como adaptação. Para piorar um pouco, nunca fui muito à bola com Jane Austen, se calhar porque a sátira dela é tão inglesa como a de Eça de Queirós é portuguesa. Compreendo Jane Austen mas não me diz nada particularmente, já para não recordar o facto de serem histórias muito datadas de uma sociedade desaparecida.
O início do filme segue o enredo de “Orgulho e Preconceito”. O casal Bennet tem quatro filhas e precisa de as casar bem porque estas não têm direito à herança de família. A mãe, principalmente, vive a vida em torno deste intuito. Só que nesta versão há zombies, e as raparigas, para além de serem bem-educadas, prendadas e tudo isso, também foram instruídas em artes marciais. Passei a primeira metade do filme com o dedo no botão “delete”, a decidir se devia apagar ou não. Esperava no mínimo uma comédia e não estava a achar nada divertido ou sequer interessante.
De certa forma, ainda bem que não apaguei, porque o melhor (se é que se pode falar de “melhor” nesta calamidade de filme) vem depois. Existe um grupo de zombies ainda não completamente transformados, organizados numa igreja adequadamente chamada São Lázaro, que comem miolos de porco para não terem a tentação de comer cérebros humanos. (Na tradição da mitologia de Drácula, em que uma vítima de vampiro, depois de mordida, não se transforma em vampiro até beber ela própria sangue humano.) Foi inteligente. Os zombies estavam a fazer o possível e o imaginário para se manterem humanos. E o que é que acontece? Aquele energúmeno, Mr. Darcy, dá-lhes cérebros humanos para os transformar completamente. Foi a tal coisa do preconceito: meio-zombie não tem direito a existir e é tão mau como um zombie total. Isto também tem a ver com o ódio que ele tem a Mr. Wickham, mas vá lá! Foi demais! Na verdade, eu também nunca fui à bola com Mr. Darcy e não me entra na cabeça porque é que aquela criatura arrogante, armada em boa, tão “superior” que acha que as suas palavras são demasiado boas para desperdiçar, alguma vez foi considerado um galã romântico. Aqui não o é de certeza. Agora vou odiá-lo ainda mais. Mas vou odiá-lo mesmo, não como a heroína que desdenha e quer comprar.
Que filme tão mau! Que péssima ideia!
Ah, já me esquecia. Pelo menos não vivem felizes para sempre, o que já redime um bocadinho esta palhaçada.

11 em 20 (pelo fim, que, espero bem, não seja a promessa de uma sequela, Blogger nos livre!)

domingo, 12 de novembro de 2023

The Wire (2002 - 2008)

Vi esta série policial por uma questão de arqueologia televisiva. Volta e meia, ao ler críticas a “The Shield”, a “Breaking Bad” e “Better Call Saul”, lá me aparecia uma menção a “The Wire”: “The Wire” isto e “The Wire” aquilo. Acabei por ver por curiosidade. Três episódios depois ponderei seriamente desistir. É sobre uma equipa de polícias a tentar apanhar uma rede de traficantes de droga de rua que usam pagers (pagers!) e cabines telefónicas (cabines telefónicas!) para contactarem uns com os outros. A série começa por volta de 2002 ou 2003, após o 11 de Setembro, e a maioria dos recursos foram deslocados para o contraterrorismo. Os polícias vêem-se gregos e têm de preencher catadupas de papelada para requisitar uma escuta telefónica (the wire) e descobrir o código que os traficantes utilizam. O humor (?) é questionável e impregnado do que hoje chamamos “masculinidade tóxica”. A série é tão datada que parece algo dos anos 80 ou 90. Mesmo assim, porque sou paciente, continuei a ver para perceber de onde vinham tantos elogios. “The Wire” tem cinco temporadas, cada uma com um enredo mais ou menos independente, e a história só começa a “aquecer” lá pelo meio de cada uma delas. Cada uma das temporadas traz consigo uma catrefada de personagens novos e eu também me vi grega para os distinguir e entrar na nova história.
Aqui vou parar para fazer a minha distinção no que toca a séries policiais: as de entretenimento e as dramáticas. Chamo entretenimento a séries em que os polícias bons apanham um criminoso por episódio, e é só isso. Uma série policial dramática, por outro lado, segue os polícias “para casa”, mostra-nos os seus problemas e a sua intimidade, torna-os tridimensionais em vez de máquinas de apanhar meliantes. (“Mentes Criminosas” começou assim mas as últimas temporadas descambaram na fórmula psicopata-da-semana, e isto só para falar de uma série que eu via porque geralmente não vejo séries sem uma grande componente dramática).
Da minha experiência como espectadora, a avozinha das séries policiais dramáticas foi “Hill Street Blues” (“A Balada de Hill Street”, 1981 - 1987). Aqui os polícias eram mesmo de carne e osso, tinham amantes e problemas de alcoolismo, e os meliantes não eram necessariamente vilões.
“The Wire” segue esta nobre tradição, o que só lhe fica bem, mas na minha opinião perde-se demais a tentar contar histórias tão díspares como as dos traficantes e dos toxicodependentes, as dos estivadores do cais que estão a ficar sem empregos, as dos putos dos bairros pobres que se vêem sem alternativa senão ir vender droga para a esquina, a do declínio da imprensa escrita e, por último, um enredo sobre ambições políticas e corrupção que nunca me conseguiu interessar. Tudo muito dramático e realista, sem dúvida, mas demasiado fracturado para ser coeso.
Fiquei completamente chocada quando consultei as datas de “The Shield”, que eu julgava uns dez anos posterior, e percebi que “The Wire” e “The Shield” são contemporâneos (2002 - 2008). “The “Wire” é uma série de qualidade, não há dúvida, mas não chega aos calcanhares de “The Shield”, uma história mais chocante, mais escorreita, com princípio meio e fim (coisa que “The Wire” ameaçava nunca vir a ter). Vic Mackey não punha escutas. Vic Mackey entrava por ali dentro e partia cabeças roubava a droga e o dinheiro, e ainda arranjava maneira de prender os traficantes à mesma. Vic Mackey e a sua Strike Team já não eram só polícias: eram os vilões. (Um deles matou o companheiro com uma granada!)
Daqui a “Breaking Bad” (2008 - 2013) foi um passo. Em “Breaking Bad” já não acompanhamos a acção pela perspectiva dos polícias: passámos completamente para o outro lado e torcemos pelos “maus da fita” (se é que o são, porque é debatível).
Tudo isto para dizer que penso que os elogios a “The Wire” se devem mais aos temas abordados, principalmente os temas políticos fracturantes na sociedade americana, do que propriamente à narrativa, enredo e personagens (se bem que alguns personagens tenham conseguido espaço “para respirar” e crescer, como Stringer Bell, o traficante de rua que acabou a gerir o negócio como se fosse o CEO de uma multinacional: isto sim, é um vilão de carne e osso!).
Vale a pena ver “The Wire” para compreender o panorama que nos trouxe a “Breaking Bad” e ao que está para vir, mas aviso já que é preciso alguma paciência para chegar à parte boa da história. Por exemplo, quando um detective decide “inventar” um serial killer para arrancar recursos da Câmara Municipal para apanhar uma rede de traficantes. Grande trapalhada quando mete os jornais também, e um jornalista tão inescrupuloso como o detective decide inventar notícias sobre o mesmo serial killer (inexistente). Mas para chegar aqui, ó Céus, foi preciso paciência!

Uma última curiosidade: em "The Wire" temos a oportunidade de ver um jovem Seth Gilliam a contracenar com Chad Coleman (respectivamente Padre Gabriel e Tyreese Williams em "The Walking Dead"). Aqui Seth Gilliam faz o papel de Sargento Carver, um durão que lhe assentava como uma luva. Talvez isto explique porque é que "The Walking Dead" foi buscar o Sargento Carver quando já ninguém suportava o Padre Gabriel?... Sinceramente, não me recordo de os dois personagens se encontrarem em "The Walking Dead" mas parece que também contracenaram juntos.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: Hill Street Blues (A Balada de Hill Street), The Shield, Breaking Bad, Better Call Saul, dramas policiais


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Godzilla: King of the Monsters / Godzilla II: Rei dos Monstros (2019)

O título em português confundiu-me. Se este é o 2º qual é o 1º? Já são tantas Godzillas!
Pelo contexto, uma vez que esta Godzilla começa exactamente onde o filme de 2014 acaba, com Godzilla a abandonar Los Angeles, depreendi que o 1º devia ser esse. Mas é mais complicado. Neste “Godzilla: King of the Monsters” aparecem imagens de King Kong, que eu só percebi depois serem de “Kong: Skull Island” (2017), e mesmo assim não tenho a certeza porque não vi, e as coisas complicam-se ainda mais. Não sei se gosto do rumo que este “aglomerar” de monstros icónicos está a levar. Está a lembrar-me muito os produtos de super-heróis (Super-Homem, Batman, Homem Aranha, e até já estou a ficar enjoada).
Por enquanto, “Godzilla: King of the Monsters” ainda não enveredou por esse caminho, embora apareçam muitos monstros novos. Tantos que não consegui dar conta deles todos. Mas já lá vamos.
O filme começa com duas forças da natureza:
1ª força da natureza: Godzilla, a abandonar Los Angeles.
2ª força da natureza, Vera Farmiga, no papel de Emma Russell.
Para minha agradável surpresa, o filme conta ainda com outra jovem força da natureza: Millie Bobby Brown (a Eleven de “Stranger Things”) no papel de Madison Russell.
A história continua onde o filme de 2014 a deixou. Godzilla conseguiu salvar o mundo dos monstros MUTOs (nunca cheguei a perceber o que raio eles eram), mas deixou destruição para trás. Uma das vítimas foi precisamente o filho da cientista Emma Russell, que decide fazer algo pelo planeta. Mas não a coisa mais acertada. Junta-se à causa do ecoterrorista Alan Jonah (Charles Dance), um fundamentalista que decide acordar todos os Titãs.
Para quem não viu o filme, vou explicar com calma. Godzilla não é o único monstro (ou Titã, como lhe chama a fundação Monarch, que já os investiga em segredo há décadas). Há muitos mais, e a Monarch monitoriza-os atentamente. A cientista Emma Russell trabalhava com a Monarch e sabe exactamente onde eles estão todos, em hibernação. O primeiro monstro que Russell e Jonah decidem acordar é precisamente o arqui-inimigo de Godzilla, o monstro de três cabeças Ghidorah. Mas, como adjuvante, Godzilla tem Mothra, uma traça gigantesca. A fundação Monarch quer salvar os Titãs e o exército quer destruí-los (não sem razão).
Isto já começa a ficar complicado e a parecer parvo, contado assim. Mas Emma Russel e Alan Jonah acreditam que os Titãs vão repor a ordem natural antes que o Homem consiga destruir completamente o planeta, não importa a que custo humano. Madison Russel, filha de Emma, é enganada quanto a isto, julgando que o acordar dos Titãs não vai causar a destruição que já se adivinha enquanto os monstros lutam entre si, e revolta-se contra a mãe.
Não há mais enredo do que isto, na verdade, e a partir daqui assistimos a um desfilar de monstros que nunca chegamos a conhecer muito bem (mal os vimos!) que surgem de todos os pontos do planeta e causam destruição a mando de Ghidorah. Porque é que Ghidorah os comanda? Não posso revelar, nem é muito claro qual deles existia na Terra há mais tempo, Godzilla ou Ghidorah, mas o certo é que agora ambos se vão ter de bater pelo estatuto de rei dos Titãs.
Desta vez as lutas entre monstros estão muito mais bem concebidas do que no filme de 2014. Ainda há falhas e CGI demasiado rápido para o apreendermos, mas fazendo rewind conseguimos perceber quem matou quem e como. Lamento não termos conhecido melhor Mothra, que ainda me pareceu a monstra mais fofinha e inofensiva, surgindo apenas para auxiliar Godzilla.
E neste filme, finalmente, ficamos a saber onde mora Godzilla! Mas ninguém me tira da cabeça que Godzilla é uma fêmea que surge das profundezas para proteger o território que também é o seu lar. Um macho já tinha destruído o planeta todo. Godzilla, rainha dos monstros!
Gostei muito mais deste filme do que o de 2014. Até as personagens humanas, apesar de bidimensionais à mesma, têm alguma profundidade que faltava às do filme anterior. Vera Farmiga faz o papel de vilã, tal como Charles Dance, mas são vilões com boas intenções, com uma agenda fundamentada. Mesmo que os fins justifiquem os meios.
Em suma, um enredo e personagens muito mais sólidos e cenas de acção mais perceptíveis. Uma Godzilla muito melhor.

SPOILER
Já depois dos primeiros créditos, temos mais segmento de filme com notícias de todo o mundo a informar que os monstros despertados de hibernação começaram a restaurar o planeta: a floresta tropical aumentou, áreas arborizadas apareceram no deserto do Sara, os oceanos ficaram menos poluídos. Confesso que me vieram lágrimas aos olhos. Se estamos à espera de uma Godzilla que nos salve, estamos bem lixados.

13 em 20


domingo, 5 de novembro de 2023

Day of the Dead: Bloodline (2017)

Não se deixem enganar pelo título “Day of the Dead”. Este filme é tão mau que só estou a falar dele por motivos humanitários. Aviso: não percam tempo com isto.
Mas já que vi, vamos lá rir-nos um bocadinho com a história.
O filme começa com o início do apocalipse zombie, que eu gosto sempre de ver. (Sem ironia.) Desta vez é uma variante da gripe H1N1 que está a tornar os mortos em zombies. (Pergunto-me, quando é que vamos ter a variante COVID que faz o mesmo, no cinema? Se bem que o COVID já conseguiu zombificar o mundo durante dois anos na vida real.)
Zoe é uma estudante de medicina, mais especialmente epidemiologia, que trata precisamente destes fenómenos. Um dos seus pacientes, Max, tem um número de anti-corpos elevadíssimo e anormal, o que faz dele um bom sujeito de estudo. Max colabora, indo todas as semanas ao hospital onde Zoe estuda para doar sangue. Mas a verdadeira razão de Max é que este tem uma obsessão patológica por Zoe. Tão patológica que, durante uma festa de estudantes, Max faz uma emboscada a Zoe na morgue e tenta violá-la. Felizmente, é mesmo no momento em que o primeiro zombie se levanta e ataca Max. Max é mordido e Zoe foge. Isto pode parecer gratuito e escusado, mas não é.
Zoe consegue escapar da festa, perseguida por aquele tipo de zombies que eu não acho que sejam verdadeiros zombies: os que correm e sobem escadas e têm mais força do que os vivos.
Cinco anos depois do fim do mundo, Zoe trabalha numa base militar/centro de pesquisa, junto com alguns refugiados que conseguiram chegar lá e o destacamento militar mais incompetente que eu já vi num filme de zombies.
Uma miudinha fica doente e os antibióticos disponíveis não conseguem debelar a infecção. Zoe sugere que façam uma expedição ao hospital onde ela estudava, onde vão encontrar o que precisam. Mas, chegando ao hospital, imaginem quem ainda lá está? Max!
E aqui temos um momento de perplexidade, porque este Max, aparentemente um zombie como os outros, faz uma à Exterminador Implacável e segue Zoe até à base militar, debaixo de um jipe, agarrado ao carro apenas com a sua força braçal. Chegado lá, começa a perseguir Zoe no intuito de… De quê?
Finalmente é capturado e Zoe explica que ele não é totalmente zombie nem está totalmente morto. Está apenas meio-morto ou meio-zombie. Alguns órgãos funcionam, outros não. Tendo em conta a maneira como ele ainda deseja Zoe, já sabemos o que não lhe apodreceu…
Zoe deduz que ele é meio-imune ao vírus zombie (devido aos seus elevadíssimos anti-corpos, lembram-se?) e que pode ser utilizado para fazer uma vacina. Para isso, pede aos militares que lhe arranjem dois ou três exemplares zombies para fazer testes. A equipa militar só tinha de abrir a vedação e deixar os zombies entrar um a um. Mas, com uma incompetência de bradar aos céus e uma vedação fraquíssima, deixam entrar os zombies todos! Acho que até a pequena Judith de “The Walking Dead” estaria a abanar a cabeça neste momento.
Mas há pior.
O comandante do acampamento consegue convencer o irmão, namorado de Zoe e também militar, de que Zoe não quer deixar que matem o tal meio-zombie porque eles tinham uma relação. Isto porque Max gravou o nome dela no braço. O parvo do namorado acredita no irmão e temos aqui um triângulo amoroso. Zoe tem de provar ao namorado que não sente nada pelo meio-zombie e…
E já chega, não acham? Porque tudo isto é tão mau, tão mau. Até parece cómico, mas, pelo contrário, às vezes consegue ser de um tédio de morte.
Contudo, viva a ciência! Zoe arranja maneira de fazer uma vacina em doses maciças a partir do dedal de sangue que conseguiu tirar ao meio-zombie, e vivem todos felizes para sempre.
A quem não tem mesmo nada melhor que fazer, aconselho a ver antes a primeira temporada de “The Walking Dead”.

9 em 20


terça-feira, 31 de outubro de 2023

The Sisters of Mercy – Lisboa ao Vivo – 26.Outubro.2023 - Lisboa – crítica ao concerto / The Sisters of Mercy – Lisboa ao Vivo – October 26th 2023 – Lisbon – a review

Originalmente no Pórtico

Os Sisters of Mercy são a minha banda preferida. Depois de muitos anos sem poder vê-los devido a motivos profissionais, aproveitei a oportunidade do passado dia 26 no Lisboa Ao Vivo.
Às 21h já a sala estava cheia. Encontrei-me com o DJ Asura Sunil, que conheci no Twitch (procurem-no!) e que se tornaria no meu parceiro de infortúnio dessa noite. Pontualmente, a banda de abertura Virgin Marys começou a tocar. Os Virgin Marys definem-se como uma amálgama de punk/grunge/rock, o que eu considero uma excelente definição. Infelizmente não é o meu tipo de som (nem a sonoridade que me levou ao concerto) e não consegui gostar.
Os Virgin Marys tocaram cerca de 45 minutos. Depois seguiu-se uma longa espera.
Entretanto, foi a minha primeira vez no Lisboa ao Vivo, que mudou de local para a zona de Cabo Ruivo. A sala é interessante para bandas de pequena dimensão, o que não era o caso dos Sisters of Mercy (que costumavam encher Coliseus) mas parece que agora é.
Não posso avaliar muito bem a acústica do espaço porque não conheço os Virgin Marys. O som pareceu-me um bocadinho alto demais (e eu estava bem atrás) mas pode ser da sonoridade da banda.
No que reparei é que não há lugares para sentar em lado nenhum. Ao fim de uma hora de pé a ciática já estava a matar-me e tive de me sentar num dos degraus das escadas para a mezzanine, o que não se deve fazer. Portanto, este vai ser o meu primeiro e último concerto no Lisboa ao Vivo e daqui para a frente vou-me restringir ao Coliseu.
Por volta das 22h30 os Sisters of Mercy ainda não tinham começado. A minha percepção extra-sensorial já me estava a sussurrar ao ouvido que não ia haver concerto, mas não quis acreditar nela. Dez minutos antes das 23h alguém da organização veio ao palco e anunciou que o concerto estava cancelado. Os presentes começaram a sair. Um deles expressou a impressão geral: “Que banhada!”
Mais tarde viemos a saber que Andrew Eldritch saiu do local de ambulância, mas que os Sisters of Mercy tocaram no Porto na noite seguinte.
Não estou zangada, simplesmente desapontada. Esta seria a minha última oportunidade de ver a minha banda preferida. Terei de me contentar com as memórias de tempos mais felizes.

***

The Sisters of Mercy are my favourite band. I haven’t been able to see them for many years due to professional reasons, so I took this opportunity to see them last October 26th at Lisboa ao Vivo.
By 9pm the venue was already full. I joined DJ Asura Sunil who I met on Twitch (look him up!) and who would become my partner of misfortune for the night. Right on time, the opening band Virgin Marys started playing. The Virgin Marys define themselves as an amalgamate of punk /grunge/rock, which I consider an excellent definition. Unfortunately it’s not my type of music (nor the type of sound that took me to this concert) and I was not able to enjoy.
The Virgin Marys played for around 45 minutes. Then a long waiting ensued.
Meanwhile, this was my first time at Lisboa ao Vivo, which changed its location to the Cabo Ruivo area. It’s an interesting venue for small bands, which wasn’t the case of the Sisters of Mercy (who used to sell out Coliseus) mas it seems it is now.
I cannot accurately evaluate the space acoustics since I don’t know the Virgin Marys. The sound seemed a bit too loud to me (and I was away at the back) but that can be the band itself.
What I did notice is that there aren’t any seating places anywhere. After an hour standing up my sciatica was already killing me and I had to seat on the steps leading to the mezzanine, which shouldn’t be done. So, this will be my first and last concert at Lisboa ao Vivo and from now on I’ll stick to Coliseum.
Around 10:30pm the Sisters of Mercy hadn’t yet started. My ESP was already whispering in my ear that there would be no concert, but I didn’t want to believe it. Ten minutes before 11pm someone from the organisers came to the stage and announced that the concert was cancelled. The attendants started to leave. One of them expressed the general feeling: “We were stood up!”.
Later we came to learn that Andrew Eldritch had left the venue on an ambulance but that The Sisters of Mercy played in Porto the following night.
I’m not angry, merely disappointed. This would be my last opportunity to see my favourite band. I’ll have to hold on to the memories of happier days.

domingo, 29 de outubro de 2023

Das Boot / O Submarino [terceira temporada]

Fiquei felicíssima quando vi recentemente a terceira temporada de “Das Boot” (na AMC). Não estava mesmo a contar com ela. Na verdade, estava completamente convencida de que a série tinha acabado, para meu desgosto porque há muito tempo não via uma série dramática, não-sobrenatural e europeia com tanta qualidade. Eu até nem aprecio Dramas de Guerra, mas “Das Boot” é muito mais do que isso.
“Das Boot” foi uma das muitas séries prejudicadas pela pandemia. Convencida como estava de que tinha acabado, até porque o final foi bastante coeso, confesso que esqueci tudo e nunca mais pensei na história. Por exemplo, já não me lembrava mesmo se o comandante Klaus Hoffmann tinha morrido ou não depois de ser baleado nos Estados Unidos (onde ele foi parar na sequência de um motim a bordo). Para ser franca, julguei que tinham morrido todos excepto o agente da Gestapo Hagen Forster. Esse, devido à sua vilania, é difícil de esquecer.
Acabámos a segunda temporada exactamente com Hagen Forster a ter de tomar uma decisão. Devido aos seus serviços exemplares ao Partido Nazi foi-lhe oferecido um posto de direcção num campo de concentração na Polónia, uma daquelas ofertas que “não se podem recusar”. No início da terceira temporada Hagen Forster chega precisamente a Lisboa para investigar o caso de um colega da Gestapo que apareceu morto. Infelizmente, só sabemos o que aconteceu a Forster entre temporadas no último episódio e é bastante importante, portanto não posso revelar o spoiler.
Mas vamos lá ao que nos interessa mais nesta temporada. Acreditem ou não, o submarino vem a Portugal! Mas não sem antes passar por muitas aventuras.
Na Alemanha, dois rapazes menores, um deles órfão de guerra, andam a roubar carteiras. Apanhados, são obrigados a inscrever-se como “voluntários” para os submarinos (a Alemanha já não tinha homens suficientes no exército) para não irem presos (ou pior).
Entretanto, um personagem sobreviveu, afinal, das temporadas anteriores: o engenheiro naval Robert Ehrenberg, que também participou no motim que expulsou Klaus do submarino para o lançar à deriva no oceano. Tudo isto foi muito bem falsificado no diário de bordo, mas o pai de Klaus, o comandante veterano Wilhelm Hoffmann, altamente respeitado como herói de guerra, percebe que o diário de bordo é uma falsificação e exige saber o que aconteceu ao filho.
O que aconteceu ao filho é que foi parar aos Estados Unidos, onde divulga segredos técnicos sobre os submarinos em troca de exílio. Uma vez que foi descoberto, a família Hoffmann está a passar um mau bocado na Alemanha, mas tudo tem sido escondido do comandante reformado (devido, lá está, à sua condição venerada). Todos lhe dizem que o filho morreu no mar, ninguém se atreve a dizer-lhe que o filho é um traidor à pátria.
Ora, daquilo que percebi, são exactamente estes segredos técnicos que estão a inverter a batalha naval no Atlântico. Os U-Boots eram o terror dos mares, mas actualmente os aliados desenvolveram uma tecnologia que os detecta a grande profundidade e os submarinos do Reich têm sido sistematicamente dizimados pela Armada inglesa. É aqui que entra o comandante Jack Swinburne (um dos últimos papéis do falecido Ray Stevenson), um verdadeiro assassino de submarinos, que está a usar a guerra para se vingar da morte do filho, não importa os meios para atingir os fins. O seu filho, empregado na marinha mercante, pertencia a uma frota de navios que deviam ser escoltados por vasos de guerra, mas assim que chegaram os submarinos alemães os navios tiveram ordens para retirar e abandonar os barcos de mercadorias à sua sorte porque os britânicos não podiam dar-se ao luxo de perder mais navios. (Segundo as críticas que li, algo parecido com este episódio aconteceu mesmo na vida real.) Com a nova tecnologia, a dinâmica da batalha naval do Atlântico muda e agora são os navios ingleses que andam à caça de submarinos, o que Swinburne vai aproveitar por falta de outra missão na vida.
Na Alemanha, o engenheiro Robert Ehrenberg, devido às falcatruas com que pactuou no diário de bordo de Klaus, escapou a outro destacamento, mas apercebe-se de que o novo Comandante do submarino U-949 é um jovem imberbe acabado de sair da escola naval que não tem competência para comandar. Ehrenberg também sofreu uma tragédia pessoal: a sua casa foi bombardeada e a mulher e o filho morreram. Agora vive no seu próprio barco, atracado no cais. Uma coisa leva à outra e Ehrenberg voluntaria-se para um novo destacamento no U-949, onde acaba por ser ele a comandar uma tripulação inexperiente e mal preparada. Devido à incompetência do novo comandante, o submarino parte para o mar depois de sofrer um acidente indesculpável que não o deixa nas melhores condições. O leme não funciona muito bem e o U-949 tem tendência a ziguezaguear. É nestas circunstâncias que o U-949 se cruza no oceano com o implacável Swinburne que acaba de afundar uma frota de U-Boots, mas com a sua grande experiência Ehrenberg escapa-lhe por um triz. Swinburne consegue identificar o submarino fugitivo e chama-lhe jocosamente Herr ZigZag, empreendendo de seguida uma perseguição que recorda o capitão Ahab atrás da Moby Dick, o que não passa despercebido ao imediato do navio que o recorda precisamente de Moby Dick e que tenta devolver a razão ao comandante cego de vingança. Aliás, os confrontos entre o submarino U-949 e o navio de Swimburne (vai haver mais) estão muito bem filmados e dão-nos uma perspectiva muito nítida do que está a acontecer. Eu nunca mais olharei para um simples jogo de Batalha Naval da mesma maneira! Aproveito para realçar como “Das Boot”, não se focando em nazis mas nos soldados alemães recrutados para a guerra, nos consegue fazer torcer por ambos os lados. Estes marinheiros não são nazis, a maioria nem queria lá estar, e são igualmente vítimas da guerra, carne para canhão.
Entretanto, em Portugal. Lisboa, com a sua neutralidade, é um antro de espiões e o destino de toda a gente que quer fugir da guerra e obter um visto para a América. Forster chega a Lisboa para investigar um caso aparentemente simples quando descobre uma conspiração para roubar ouro alemão que vem do Japão para Portugal para comprar volfrâmio. Forster é traído e incriminado, e acaba por ter a ajuda da última pessoa no mundo que se esperava que aparecesse em Lisboa, mas não posso mesmo contar mais nada.
Aqui vou fazer outro aparte. Toda a vida ouvi falar com desdém das “fortunas à custa do volfrâmio” que se fizeram em Portugal na altura sem chegar a perceber muito bem a questão, aliás, uma questão de que se fala muito baixinho. Portugal só era neutro porque lhe dava jeito e, sim, colaborou com o regime nazi ao vender volfrâmio necessário à construção dos submarinos. Ah! Então era essa a razão da corrida ao volfrâmio. Sempre se aprende alguma coisa na televisão, até nas séries de ficção.
A série está tão bem feita que quase me enganavam, a uma alfacinha de gema, mas “Lisboa” foi filmada em Malta. A parte que quase me enganou foram umas arcadas que parecem mesmo a Praça do Comércio, mas se repararmos bem as paredes são amareladas e Lisboa resplandece de brancura (embora às vezes não pareça). O que contribui muito para esta “ilusão” de que estamos mesmo em Portugal é a presença de actores portugueses a sério, e não daqueles que aprendem umas linhas em português à pressa antes das filmagens. Aliás, um dos trunfos de “Das Boot” é que a série é falada na língua das personagens: alemão, francês, inglês e, agora, português nativo de Portugal. Gostei, gostei mesmo!
Lamento não poder explicar melhor porque é que esta série merece ser vista mas tudo o resto que podia acrescentar são spoilers. Direi apenas que não acredito no final de Forster, um final à fado, afinal, coincidente com os humores de Lisboa. Mas não penso que Forster fosse do tipo de agir assim. Por falar nisso, também não acredito que o Reich admitisse de volta um traidor, fosse por que motivo fosse. Mas se ajuda a história da próxima temporada...
Outra coisa que me incomodou as “memórias” foi a maneira como as pessoas do povo andavam vestidas em Lisboa em plenos anos 40. Isto é, andavam demasiado bem vestidas. As crianças tinham agasalhos e sapatos e tudo. Não falo dos ricos que frequentavam o casino (cônsules, embaixadores, diplomatas, espiões, empresários, amigos de Salazar, reis de Espanha no exílio…), falo da malta que se via na rua, do “povo que lava no rio”. Ora, a minha memória mais antiga é dos anos 70 e nem nessa altura o povinho andava tão bem vestido. Mas onde a minha memória não chega tenho as fotografias de família. Acho que “Das Boot” subestimou muito a miséria flagrante que se passava em Portugal (até em Lisboa), mas são realizadores alemães, que se pode esperar? Varinas a vender peixe na rua de pés descalços não lhes entra na cabeça, e isto foi 30 anos mais tarde. Mas, enfim, assim a série ficou mais bonitinha.
Piquinhices à parte, obviamente que adoro esta série. Não faço ideia se a história continua ou acaba aqui, mas com esta qualidade que venham mais temporadas.

Parece ou não parece a Praça do Comércio, assim de repente?


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes

PARA QUEM GOSTA DE: Das Boot, dramas de guerra, dramas históricos, espionagem, II Guerra Mundial

terça-feira, 24 de outubro de 2023

The Book of Eli / O Livro de Eli (2010)

Contém MUITOS spoilers. Quem gosta de filmes pós-apocalípticos e ainda não viu este deve parar de ler imediatamente e voltar depois. O aviso está feito.

O filme até começa bem. No género “pós-apocalíptico”, um viajante solitário é obrigado a sobreviver como puder. Trinta anos depois de uma guerra nuclear que destruiu o planeta (a palavra “nuclear” nunca é dita mas aquelas crateras e os fumos radioactivos não terão outra explicação…?) a água potável é rara e valiosa e já se acabaram os produtos de higiene como champô e sabonete. A cinematografia é espantosa e coloca-nos imediatamente neste mundo devastado, o que teria muito mais impacto se o género “pós-apocalíptico” não se tivesse tornado uma moda que vimos todos os dias…
Logo nos primeiros minutos do filme percebemos que este Eli é um durão. (Na verdade não temos a certeza se ele se chama Eli, apenas que tem um crachá na mochila a dizer “Olá, eu sou o Eli”, por isso vamos chamar-lhe assim.) Neste mundo há canibais e salteadores, e Eli é atacado por um gangue de 5 ou 6 que o querem roubar e possivelmente comer. Eli, armado apenas com uma catana, dá cabo deles todos, mesmo tendo um deles uma serra eléctrica a funcionar! (Vai ser importante mais à frente.)
Como acontece neste tipo de história, Eli sobrevive do que caça e do que encontra em locais abandonados. À noite, depois de procurar abrigo, gosta de ler um livro “misterioso” e de ouvir música num dispositivo electrónico. É este último “vício”, quando a bateria descarrega, que leva o solitário Eli a procurar uma povoação do tipo faroeste onde a recarregar. (Nota curiosa: o dono da loja de engenhocas é Tom Waits, o músico!)
É aqui também que aparece o vilão, o chefão lá do sítio, que tem todos os capangas à procura de um livro “misterioso”. Obviamente, este é o livro raro que Eli traz na mochila.

Último aviso: SPOILERS!!!
O chefão diz que este não é apenas um livro mas uma arma. Que com as palavras deste livro, que ele recorda de antes do apocalipse mas não lembra de cor, vai conseguir controlar toda a gente desesperada que ainda resta no mundo.
É aqui que está o “spoiler”. O filme quer fazer disto uma grande revelação. Que livro “misterioso” é este? Vou dar umas pistas. Logo nos primeiros minutos do filme, Eli faz citações bíblicas. O livro é grosso. Tem uma capa preta. Na capa tem uma cruz dourada. Qual livro será, qual será? Eu, sinceramente, tive esperança de que fosse o Necromicon de H. P. Lovecraft ou algo ainda mais obscuro. Mas não, é apenas a Bíblia. Acontece que após a guerra apocalíptica os sobreviventes queimaram todas as Bíblias por acharem que esta tinha contribuído para a guerra, ou que tinha sido mesmo a sua causa (e não podemos dizer que estivessem muito enganados…). As poucas Bíblias que escaparam são raras, e Eli tem uma. Assim que se apercebe disto, o chefão decide fazer tudo para lhe deitar as mãos, a bem ou a mal.
Cá está a metáfora, senhores e senhoras: a Bíblia é uma arma porque a religião é uma arma. Nem sequer é uma metáfora implícita porque o chefão verbaliza estas palavras aos capangas: este livro não é só um livro; é uma arma.
Aqui, comecei a ficar apreensiva. Estávamos num filme apocalíptico que de repente começa a virar no sentido evangélico. Mas vamos lá ver no que vai dar.
Bem, vai de mal a pior. Eli recusa entregar o livro, e diz mesmo a uma aliada que faz pelo caminho que ouviu “uma voz”, uma voz que o mandou ir para Oeste e proteger o livro até encontrar um lugar onde o possa deixar em segurança. Voz de Deus, alucinação? Preferi acreditar na alucinação porque já não estava a gostar nada da direcção em que o filme teimava em ir.
Perseguido pelo chefão e os capangas, mas auxiliado pela nova aliada, Eli continua a dirigir-se para Oeste. Entretanto temos umas cenas de porrada e tiroteio na estrada, à Mad Max, e Eli acaba por perder o livro. Mas, aleluia!, o final é tipo “Farenheit 451” e Eli, afinal, não precisava da Bíblia porque a tinha decorado toda! Assim, quando encontra novamente a civilização, exactamente onde a Voz lhe disse para ir, consegue recitar todas as palavras, versículo a versículo, qual Moisés apocalíptico.
Sim, leram bem, o objectivo deste filme é salvar a Bíblia, dê por onde der.
Mas há pior!



O pior
Ainda bem que não me apercebi disto. Quando li as críticas até me caiu o queixo. Então não é que Eli é supostamente cego? E não é que eu não dei por nada? E não dei por nada porque o filme quer fazer disto uma outra “revelação” chocante, e tenta por todos os meios enganar-nos para não o percebermos até à “grande revelação” de que a Bíblia de Eli sobreviveu à queima porque… está em Braille! Logo, Eli é cego.
Este é o gajo que dá conta de 5 ou 6 marmanjos, um deles com uma serra eléctrica. Este é o gajo que anda a direito numa estrada sem precisar de bengala. (Como é que ele sabe se não há um buraco no asfalto?) Sim, reparei que Eli dá muita importância à audição e ao cheiro, mas também o fazem todas as personagens de “The Walking Dead”. Certas vezes Eli segue algo com o olhar, e até espreita por uma janela, algo que nenhum cego precisa de fazer. E quanto à Bíblia em Braille, há pessoas não cegas que sabem ler Braille. Por exemplo, professores ou pessoas que têm invisuais na família. A Bíblia em Braille não quer dizer nada.
Até encontrei comentários sobre isto mais papistas do que o Papa (indo para além do filme), especulando que Deus teria dado visão a Eli enquanto este cumpria a sua missão e retirando-lha quando já não era necessária. Tudo isto para explicar porque é que Eli, sendo cego, era tão durão e eficiente. Sim, bem seria preciso intervenção divina porque não há maneira nenhuma de que alguém cego conseguisse fazer o que Eli faz. Ainda bem que não percebi que o homem era supostamente invisual (o filme não me convenceu da cegueira) ou teria achado isto tudo uma palhaçada descomunal.
Só faltou pregarem o Evangelho abertamente, mas implicitamente até o fazem à mesma. Eu pensava que estava a ver uma história sobre um sobrevivente pós-apocalíptico e saiu-me um super-Moisés da ala Republicana americana e religiosa, um filme cheio de armas e Bíblia como eles gostam. Oh, que desperdício de efeitos especiais e cinematografia! Que desperdício de actores! Que desperdício de ideias e cenários pós-apocalípticos!
Volta Mad Max, estás perdoado!
(Mas pelo menos percebi onde foram buscar a ideia do super-Morgan e das bombas nucleares em “Fear the Walking Dead”. Ah! Aquilo sempre me pareceu que caiu do céu aos trambolhões. Agora já sei.)

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domingo, 22 de outubro de 2023

The Circle / O Círculo (2017)

[Facto irrelevante: esta foi a primeira vez que vi a Hermione (Emma Watson) depois de crescida.]

Mae é uma jovem com um curso de História que trabalha no atendimento ao cliente da Companhia da Água lá do sítio, um emprego ingrato e sem perspectivas. Quando uma amiga lhe arranja uma entrevista na empresa The Circle, Mae fica super entusiasmada e consegue o emprego, a princípio no Apoio ao Cliente também, mas que diferença! The Circle é uma empresa do tipo Facebook/Google/Apple com tiques de culto (se não mesmo um culto), com toda uma liturgia empresarial, palavreado e frases próprias. Os empregados são constrangidos a passarem lá o dia de trabalho, as horas de lazer e os fins-de-semana.
Vou fazer um parêntesis para explicar como é que estas monstruosidades surgiram, e aproveito para contar uma das minhas histórias de terror. Começou tudo com um inocente convívio empresarial para “reforçar os laços entre equipas”. Eu trabalhei numa produtora de televisão, nos anos 90, que pura e simplesmente não percebia que as pessoas tinham vidas para além do trabalho. Como estagiários sem grande escolha, éramos insidiosamente obrigados a ficar lá depois do trabalho (porque nos pagavam o jantar, porque nos pagavam o táxi se fosse preciso e fora de horas), a “conviver” com colegas e patrões por quem não tínhamos a mínima simpatia, quando a gente só queria ir para casa como pessoas normais. Entrávamos lá às 10h da manhã e podíamos sair depois da meia-noite, conforme os jantares de convívio se prolongassem e os patrões decidissem contar histórias e abrir mais uma garrafa. Todos nós, estagiários, tínhamos de os aturar de sorriso amarelo para conseguirmos o emprego. Só os mais velhos na empresa se podiam dar ao luxo de ir para casa a horas decentes. Era tortura. Penso mesmo que aquilo tudo era uma rampa de lançamento para o assédio sexual futuro: Agora ficam os estagiários todos, mais tarde ficamos só “tu e eu”. Obviamente, aquilo tudo me cheirava mal. O objectivo era que fôssemos uma “família”. Família o caraças. Na primeira semana de trabalho tive o azar de precisar de ir ao dentista de urgência para uma desvitalização e de ficar o dia em casa para recuperar (porque dói como o caraças e exige medicação que nos impede de funcionar). Mandaram-me embora por causa disso apesar de eu ter conseguido compensar o meu trabalho todo. Filhos da mãe! Só lhes desejo as dores que eu tive e que a produtora vá à falência (se calhar até já foi). Ainda por cima não me pagavam mais do que o ordenado mínimo, e a recibos verdes.
Mas este não é o caso de Mae, regressando ao filme, que recebe um ordenado chorudo bem como um plano de saúde. O pai de Mae sofre de esclerose múltipla e não tem meios para pagar a assistência de que necessita. A empresa é tão boazinha que inclui os pais de Mae no plano de saúde dela, o que a princípio os pais consideram um milagre. Mas, para ter direito ao plano de saúde, Mae tem de engolir um chip que, durante algumas horas, faz com que se consiga monitorizar tudo o que faz e por onde anda.
Mas isto não é nada. A empresa tem uma rede social, TruYou, que permite fazer movimentos bancários, compras e autenticações noutras plataformas que não têm nada a ver com redes sociais. Imaginem, por exemplo, que se podiam autenticar no vosso banco, fazer compras online, marcar consultas, matricular-se na escola, tudo com a conta do Facebook. (Que o Costa não leia isto, Céuzinhos, porque aquela da app COVID andou bem perto!)
Isto já é suficientemente arrepiante, mas há pior. The Circle já tinha desenvolvido um chip com geolocalização para ser implantado nos ossos das crianças dos empregados de modo a mantê-las “sempre controladas e seguras”.
De seguida, The Circle inventa uma mini-câmara esférica, pouco maior do que um berlinde dos grandes, que se pode colar onde se quiser. No “new speak” da empresa chamam-lhe SeeChange, uma maneira de manter uma vigilância permanente sobre os cidadãos sem que estes saibam que estão a ser vigiados, a princípio com a desculpa de detectar “criminosos e terroristas”. Mais uma vez a desculpa da segurança a sonegar liberdades e garantias. Eu chamo-lhe BIG BROTHER IS WATCHING YOU. A empresa diz que pode colocar as câmaras onde quiser, sem licença. (Não sei como é nos Estados Unidos, mas aqui não pode não senhor. Só as forças de segurança podem colocar câmaras de vigilância em lugares públicos. Os particulares só as podem colocar na sua própria propriedade. Ainda não chegámos à China.)
Parece que nenhum daqueles millenials que trabalha no The Circle, inclusive a licenciada em História, alguma vez leu “1984”, porque acharam uma excelente ideia. Ou, se não acharam, calaram-se. Afinal, é um bom emprego e um bom ordenado. É preciso não esquecer isso também.
The Circle faz-se paladino de causas nobres como a “transparência”, e convence Mae a dar o exemplo (a mesma Mae que precisa do plano de saúde para o pai). Mae vai passar a andar 24 horas com uma câmara SeeChange, e qualquer pessoa da rede social TruYou, em todo o mundo, a pode seguir/ver/comentar durante essas mesmas 24 horas, até a lavar os dentes.
Isto já me parece um filme de terror, especialmente porque é sub-repticiamente imposto aos empregados com uma lavagem cerebral progressiva, ao contrário dos concorrentes do “Big Brother” que estão lá porque querem. (Mas a gente devia pensar a sério no que anda a fazer com estes precedentes apresentados como diversão.)
Um dos followers de Mae faz um comentário engraçado: “Isto é o princípio de um filme-catástrofe?” Bem, que é o princípio de um filme de terror, é, e nem sequer original.
The Circle não fica por aqui. Com uma lógica retorcida, salienta que 80% dos americanos têm conta no TruYou, o que é muito menos do que os americanos que votam. E se, pelo bem da democracia, bastasse a conta TruYou para votar? E se, indo ainda mais longe, toda a gente fosse obrigada a ter uma conta TruYou e a votar? O processo de votação ficaria a cargo de The Circle, é claro, porque seria muito caro de implementar para o governo. Mas The Circle já tem a tecnologia, é só fazer com que o governo dê o aval.
E aqui temos, filme de terror completo. Imaginem votar pelo Facebook. Imaginem o Facebook a gerir as eleições de todos os países do mundo. Imaginem-nos a eleger quem eles quiserem. É aterrador.
Aconselho este filme a toda a gente que pensa que entregar a tecnologia das eleições a privados podia ser uma boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que abdicar da privacidade em prol da segurança (ou seja do que for) é boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que não tem nada a esconder e pode (e deve) mostrar tudo, seja qual for a razão que o move. Aconselho a toda a gente que apoiou a app COVID. Aconselho a quem não leu “1984”. Aconselho a quem não leu “1984” que faça um favor a si próprio e vá já correr a ler.
Voltemos novamente a “The Circle”. Havia aqui muitas consequências catastróficas a explorar, mas o filme não cumpriu a promessa. Sim, vemos uma das consequências, mas os resultados podiam ser (e seriam) muito piores. No fim, parece que o filme nos quer dizer “a tecnologia veio para ficar, não há volta a dar, mas os passos têm de ser bem medidos”. Lamento que “The Circle” não tenha sido mais ambicioso. Tinha tudo para o ser.

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domingo, 15 de outubro de 2023

Chucky [série TV] (2021 - ?)


Admito que não me lembro de ver Chucky (“Child's Play”) o filme e as suas muitas sequelas. Sei que vi alguma coisa, não me lembro de quanto ou quando. Já foi na outra encarnação. Também confesso que achei que uma série de TV sobre Chucky ia ser um completo desastre. E enganei-me. Talvez o realizador tenha pensado, devido ao sucesso de “Annabelle” que já vai na segunda sequela, que era altura de ressuscitar o Boneco Assassino mais assassino de todos, até porque Chucky não gosta de ficar para trás em coisa nenhuma.
Vou ser muito franca. Só há duas maneiras de ver isto: a sério ou às gargalhadas. Eu pertenço ao segundo campo. A certa altura Chucky entrevista (não perguntem!) uma boneca chamada Belle que fica ali muda e estúpida. Se isto não é uma farpa não sei o que será. Aliás, principalmente na segunda temporada, temos homenagens/paródias a “Halloween”, “Apocalipse Now”, “A Laranja Mecânica”, “O Silêncio dos Inocentes”. “O Exorcista” e “Texas Chainsaw Massacre”.
Mas já me estou a adiantar. A série começa quando o adolescente Jake Wheeler compra um boneco Good Guy (Chucky) numa venda de garagem no intuito de o desmantelar para uma exposição de arte. O pai de Jake não aprova as actividades artísticas do filho, e chega mesmo a destruir a peça em que Jake andava a trabalhar, porque são pobres e a arte não paga a universidade. O pai dele tem razão, devo dizê-lo, mas nota-se nele muita raiva e amargura, agravada pelo facto de que o seu irmão gémeo está muito bem na vida.
Chucky apercebe-se disto tudo, “apresenta-se” a Jake como o seu “melhor amigo até ao fim” e começa a tentar convencê-lo a matar o pai. Quando não consegue, Chucky trata do assunto ele próprio. Quanto ao gato de Jake, teve de morrer porque era um “parvalhão”. É assim que Jake e Chucky se mudam para a casa do tio de Jake, onde não há problemas de dinheiro.
Os outros protagonistas são Lexy, uma rapariga mazinha que está prestes a ter uma grande lição, e o namorado de Jake, Devon. Os três descobrem a personalidade assassina de Chucky mas têm medo de contar a alguém “porque não quero ser internada”, como diz Lexy. Em poucas semanas, Chucky destrói a vida aos três.
Devo dizer que fico embasbacada com aquilo que a saga Chucky consegue fazer:
1) consegue convencer-nos de que ele existe
2) consegue convencer-nos de que ele é perigoso!
Já as piadas de Chucky podem não ser para todos. Por exemplo, “vou matar a tua irmã, queres vir?”.
Qualquer pessoa consegue acompanhar esta série mas não tenho dúvidas de que “Chucky” será muito mais satisfatório para quem viu as sequelas. Por exemplo, a certa altura temos flashbacks dos anos 80 (quando Chucky ainda era o serial killer Charles Lee Ray, antes de este, através de vudu, ter espalhado a sua alma/essência (?) pelos bonecos Good Guy e por algumas pessoas também...!!!) que me deixaram completamente perdida. Quem era aquela gente?! Quem é Nica, quem é Tiffany?
Mas se calhar o melhor de “Chucky” é que o enredo é de loucos e não interessa muito perceber. Por exemplo, Chucky tem um filho que também era um boneco, mas agora é uma pessoa de carne e osso não-binária e tão não-binária que são duas pessoas! Falta-me aqui um filme qualquer para perceber isto. Convenhamos, é de loucos!
Mas voltando aos miúdos, os três apercebem-se de que Chucky os está a tentar convencer a matar alguém, o que é estranho porque Chucky não precisa de ajuda. Que plano maquiavélico anda ele a engendrar que precisa de sujar as mãos de inocentes?
Volto a dizer que “Chucky” não é para se ver “a sério”, mas os fãs do Boneco Assassino não vão sair daqui insatisfeitos. Annabelle, põe-te a pau porque Chucky regressou e não gosta de concorrência.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: Chucky, bonecos assassinos, humor negro, sangue que se farta