segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Victor Frankenstein (2015)

 

Como adorei o livro original “Frankenstein” de Mary Shelly (o que me surpreendeu tendo em conta o que conhecia da história através das versões de Hollywood), raramente deixo passar uma adaptação.
Esta é mais uma, e aposta na espectacularidade gótica e vitoriana dos cenários e guarda-roupa. A personagem principal não é Victor Frankenstein mas sim o seu assistente, Igor (não é o seu nome verdadeiro mas não vou dizer como é que ele adoptou esse nome), um palhaço corcunda com amor pela medicina que Victor resgata de um circo onde este é maltratado. Ora acontece que este desgraçado é corcunda porque tem um abcesso nas costas e Victor consegue tratá-lo e oferecer-lhe uma vida normal. Mais tarde, Victor dirá que Igor foi a sua melhor criação. Considerando o enredo do filme, até tem razão.
Para quem leu o livro, a breve aparição e destino da criatura criada por Frankenstein é insultuosa. Este filme nunca foi sobre a criatura mas sobre a relação de amizade de Victor e Igor, e mesmo assim é um filme vazio, fútil, muito espectáculo e pouco conteúdo. As próprias personagens raramente se conseguem mostrar tridimensionais. Victor é o génio louco. Igor é o assistente agradecido. Lorelei é a cara bonita que é necessária num filme onde todos os personagens são homens. O monstro/criatura é o colosso abrutalhado e quase invulnerável que volta à vida com uma tendência para atacar toda a gente que vê à frente.
Qualquer semelhança com o livro original é quase coincidência. Este é um filme para ver quando não se tem mais que fazer, e vê-se muito depressa porque não há nada aqui para pensar. Recomendo antes a leitura do livro original de Mary Shelly, esse sim, genial.

13 em 20 (pelos cenários e efeitos especiais)


segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro

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Para quem está a ler a antologia “Dentro da Noute”, chegar a este conto (que encerra a colectânea de contos portugueses) é chegar à modernidade.
“É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido."
Tirando algumas expressões muito datadas, especialmente de inspiração francesa, “Lúcio” continua a fazer sentido hoje (ou, neste caso, a não fazer sentido). Na primeira pessoa, o personagem Lúcio confessa, ou melhor, não confessa, um crime que não cometeu mas que o manteve na prisão durante dez anos. Uma verdade inverosímil, como o próprio diz, uma sequência de acontecimentos impossíveis, inacreditáveis.
A história passa-se mesmo no final do século XIX, início do XX, numa alta sociedade de artistas portugueses apaixonados por Paris, a cidade venerada de todo o vanguardismo à época. Lúcio, dramaturgo, convive com outros artistas e escritores, todos eles atingidos dessa doença dos ricos chamada “ennui” que se contrai por não se fazer nada na vida senão passear pelos boulevards, viver em hotéis e jantar em restaurantes chiques. Lúcio conhece o poeta Ricardo de Loureiro, com quem estabelece uma íntima amizade. Muitas coisas são ditas entre os dois (o poeta tem ideias muito “estrambóticas”, como diz o conto), mas talvez a mais importante seja a maneira como o poeta declara só ser capaz de amar se “possuir”, logo, como é que pode amar um amigo se não consegue possuir alguém do mesmo sexo? Isto vai causar uma materialização da alma de Ricardo numa figura feminina que se torna amante de Lúcio. Ou seja, pelo menos é esta a “verdade” de que o narrador nos tenta convencer, sabendo ao mesmo tempo que qualquer plausibilidade é impossível.
“Mas ponhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E para a clareza, vou-me lançando em mau caminho — parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: Durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer duma grande soma de factos. E são apenas factos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não me importa que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é inverosímil.”
O próprio narrador nos avisa, pelo excesso, de que não é de confiança. Até que ponto é que o autor não nos quer revelar o tema que o conto trata (a homossexualidade), ou até que ponto o autor não admite que trata este tema, deixo a outro tipo de análise. Um século depois, esta temática “chocante” perdeu-se e o leitor moderno sente-se atraído pelo mistério que Lúcio nos vai relatando, duvidando aqui e ali dos tais pormenores que o narrador prometeu descrever fielmente, questionando a sua sanidade mental (tal como ele nos advertiu), questionando a relevância deste ou daquele acontecimento no total da narrativa. Tive muitas vezes a sensação (e a desconfiança) de estar a ler o relato de um sonho. O que de certa forma me recorda de Kafka, pese embora a diferença de temáticas. Se tantas vezes as histórias pecam por incoerência e falta de sentido, quando é bem feito e apoiado num todo surrealista resulta muito bem. Este é um desses casos e uma leitura que recomendo a toda a gente que ama a literatura.




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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Sede de Sangue, de Manuel Teixeira Gomes

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Este conto devia ser daqueles que mais me empolgam. Um vampiro. Um vampiro a sério! Mas infelizmente o conto não me cumpriu as expectativas.
Esta é mais a história de um mirone, o narrador, que do seu escritório, onde escreve para um jornal da terra, tem uma vista privilegiada para a “taberna” de um Sr. Trovas e sua esposa Balbina Catada, “antiga marafona que ele desposara em Lisboa”. Sim, a “taberna” é um bordel, e “marafona”, presumo, era sinónimo de prostituta. (Actualmente, “marafona” significa “mulher feia”. É curioso como as palavras evoluem.)
O narrador passa a maior parte do conto a descrever as “marafonas” (nos dois significados) que trabalham na taberna, até que lá aparece uma bela mulher de raça cigana: “Era uma rapariga de aparência franzina que, airosa, de perna cruzada, arcando divinamente o braço nu, fumava cigarros e falava espanhol. Ao expelir o fumo do cigarro em ténues baforadas toda se encostava para trás e o seio entumecia-se-lhe prodigiosamente debaixo do leve casabeque solto; de entre as fartíssimas madeixas do cabelo, que lhe caía sobre os ombros em lustrosas ondas negras, o rosto emergia oval, puro, mate, iluminado por dois olhos babilónicos, imensos olhos ardentes que fascinavam…”
Ora, esta nova trabalhadora da taberna começa a dizer, repetidamente: “a minha vida está por um fio: não tarda muito que não venha alguém beber-me o sangue”. Por estranho que pareça, ninguém lhe pergunta o que é que ela quer dizer com isto. Não é uma coisa normal de se dizer. Mas um dia, de facto, o nosso narrador/mirone observa a chegada de um estranho homem: “No momento em que o tive quase ao meu lado examinei-o bem: era enorme; era monstruoso! O arcabouço mociço, redondo, com proporções de mó de moinho; os braços grossíssimos, como troncos d’árvore articulados, encurvavam-se a miúdo e ligavam as mãos com um jeito de formidável turquês que se fecha para esmagar qualquer coisa; e as esgalgadas pernas de uma tão maravilhosa elasticidade que só as feras assim as têm. Mas o rosto, então, apavorava: lívido, golpeado pelo farto bigode preto, que lhe caía em compridas, agudas pontas dos dois lados do queixo, e sob as hirsutas sobrancelhas, na profundeza das órbitas cavernosas, ardiam-lhe os olhos desvairadamente…”
O narrador espreita como a cigana e este “gigante” se encontram, como se afastam até uma praia, e como ele efectivamente lhe bebe o sangue. E depois o conto acaba, sem qualquer explicação. “Os médicos que lhe fizeram autópsia, ao dia seguinte, não lhe encontraram pinga de sangue nas veias, mas ninguém suspeitou que um vampiro lho houvesse sugado, pois durante a noite a maré lavajara por muitas horas o cadáver e o sítio onde ele ficara, presumindo-se que assim desaparecera o sangue derramado.”
Há casos em que a falta de explicação valoriza a história, mas este não é desses casos. Afinal, o que foi aquilo tudo? Este homem “monstruoso” era mesmo um vampiro (sobrenatural) ou um assassino qualquer? E se a vítima tinha conhecimento do vampiro (sobrenatural ou não) porque é que aceitava tão placidamente que este lhe viesse beber o sangue? Não saber as respostas a estas perguntas deixou-me frustrada e sem perceber o que é que o conto queria, de facto, contar. A mim parece-me que o autor estava mais interessado em falar das marafonas e da Balbina Catada. Como grande fã de literatura de vampiros, não gostei.




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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

O Cadáver, de Beldemónio

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Este é um conto cómico que conseguiu fazer-me rir. Trata da história de um homem que vinha de um baile, “Fernando de Morais, um valsista infatigável de todos os bailes do campo”, pelas bandas do Campo Grande, que nessa altura era mesmo campo e arredores de Lisboa. (Primeira gargalhada.) “De repente, distraído, tropeçando em qualquer coisa de mole, caiu de bruços para a frente, com as mãos estendidas. As suas mãos bateram numa superfície fria e molhada; e quando ele rapidamente se quis firmar para se pôr em pé, encontrou cabelos; o seu olhar já habituado ao escuro reconheceu um cadáver ali estatelado, de ventre para o ar, com a cabeça um pouco de lado, lívida e horrorosa sob o luar alvacento.” Era um homem que tinha sido assassinado. Mas este Fernando, e justificadamente, tem medo de ser acusado do crime se for encontrado junto ao cadáver e desata a fugir espavorido. É muito interessante como ele toma medidas forenses para eliminar todos os vestígios do cadáver, queimando a roupa manchada de sangue, fingindo um semblante calmo e sereno enquanto, intimamente, a paranóia de ser acusado do crime vai aumentando a níveis insuportáveis. Bem diz o conto:
«Se se lembrarem de propalar que furtei sub-repticiamente o zimbório da Estrela, a primeira coisa que tenho a fazer é fugir para o estrangeiro, e justificar-me de lá...»
Segunda gargalhada. E não é que ainda é verdade nos nossos dias? Especialmente para o desgraçado do pobre, que não tem uma firma de advogados que o defendam se for injustamente acusado. Mas se é rico e corrupto, não só não o conseguem prender como ainda se “arrisca” a ser reeleito Presidente de Câmara…
Não vou contar o que acontece a Fernando porque ia estragar a piada. Na verdade, esta história nada mais é do que uma piada desenvolvida em forma de conto. O mais surpreendente é que ainda nos faz rir hoje em dia, duzentos anos depois.
Beldemónio é o pseudónimo de Eduardo Lobo Correia de Barros, cronista, contista, jornalista e tradutor.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Uma Récita do Roberto do Diabo, de Júlio César Machado

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Durante uma exibição da ópera “Roberto do Diabo”, um folhetinista (título que dá a si próprio) é abordado por um companheiro de camarim que lhe relata uma ignominiosa história de parricídio, caso este a queira escrever. O folhetinista interessa-se e o companheiro conta-lhe a história de Ricardo, que mata o pai no único intuito de lhe roubar a herança. Pior do que isso, consegue acusar um inocente do homicídio, inocente este que é enforcado por um crime que não cometeu. Ricardo é o Mal em pessoa. Mas sobrepujado pelos remorsos, acaba por se arrepender.
No drama em palco, temos a história inversa. Roberto é filho de Bertran, que se intitula diabo (“um diabo subalterno, um diabo inferior, um diabo de segunda qualidade, um pobre diabo! A licença com que veio à Terra expira nesse dia; dentro em poucas horas tem de abandonar o filho e voltar às trevas e às chamas, ao fogo e à escuridão, à alegria infernal e à dor maldita!”), e que gosta tanto do seu filho que quer levá-lo para o inferno para não se separar dele.
Este é um conto que promete mais do que oferece. Entretanto, o companheiro do folhetinista confessa que o tal “Ricardo” é ele próprio (o que já todos tínhamos percebido) e promete dar mais pormenores. Contudo, no dia seguinte, o folhetinista descobre que este estranho homem é um louco do manicómio. Ficamos sem saber se a história era verdadeira, se foi uma invenção do louco, se foi o parricídio que o fez enlouquecer. Não aprecio este tipo de fim que não nos dá nada em forma de conclusão. Justifica-se, em certos casos, mas aqui não percebo mesmo porque é que o fim fica “à interpretação do freguês”.
Salvam-se algumas considerações sobre o Bem e o Mal que vão sendo feitas a meio da narrativa. Não há muito mais a dizer sobre este conto e não quero fazê-lo parecer mais interessante do que é.



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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.