segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mars / Marte


[crítica à primeira temporada]

“Marte” é uma série/documentário do canal National Geographic que se distingue pelo formato original. A parte “documentário” é normal, mas a parte “série” não é a dramatização com figurantes silenciosos que estamos habituados a ver nestas coisas. É mesmo uma série, com personagens a sério, com motivações e flashbacks e histórias pessoais. Pode ter sido uma grande aposta da parte do National Geographic, porque se não fosse esta parte “série” eu não estaria de certeza a ver um documentário sobre uma possível colonização de Marte.
A história é esta: no futuro próximo, a primeira missão tripulada dirige-se a Marte na intenção de estabelecer a base de uma colonização humana. Os personagens são mais genéricos do que tridimensionais mas têm os seus momentos de profundidade. Nas partes boas, isto é, quando o perigo espreita, é que a série muda para documentário, o que é tão irritante como eficaz. Enquanto cientistas entrevistados debitam factos e opiniões, o espectador fica ali agarrado ao écran no suspense de saber se a nave explodiu ou não. Não sei se será este o futuro do documentário em geral, e até mesmo se será o formato mais credível, mas a verdade é que a mim apanharam-me de entre um público que geralmente não vê estas coisas. Logo, aposta ganha em termos de audiências.
O que não quer dizer que fiquei deslumbrada com o formato. Passei o primeiro episódio a tentar perceber se ia haver história ou se era só documentário, e se aquilo não era tudo publicidade à SpaceX. A interrupção da dramatização ficcional para aparecer um senhor ou uma senhora a dizer coisas com que não concordo também não ajuda nada.
Porque, com toda a franqueza, faz-me muita confusão como é que alguém pode estar a pensar em gastar milhões com Marte quando existe tanta miséria aqui mesmo, no planeta Terra, quando tanta gente ignorada em países subdesenvolvidos luta pela subsistência mais básica, onde não há comida nem água potável, quando migrantes morrem no Mediterrâneo a tentar fugir da pobreza. Não me entra no miolo.
A ideia desta gente é colonizar Marte como mais um trampolim para a expansão da espécie humana pelo universo afora, não vá acontecer uma extinção em massa por cá (como já aconteceram várias) que nos acabe com a raça. Não passa pela cabeça destes senhores a simples pergunta: e nós somos uma espécie que vale a pena salvar da extinção? Eles acham que sim, mas quanto apostam que esta “salvação” está restrita a quem tiver dinheiro para a pagar? E vale a pena salvar uma espécie que alegremente anda por aí a explorar o espaço enquanto a maior parte dos seus exemplares passa mal no planeta natal? Uma espécie que já deu cabo do planeta natal, que todos os dias extingue um número assustador de outras espécies, que não se importa nada com isso, que vai dar cabo de todos os planetas onde puser as patas?
Há muito tempo que a filosofia e a ficção científica colocam estas questões, mas agora já não é ficção científica. Estão mesmo a pensar pôr uma base na Lua, e de seguida em Marte. Não contentes com a lixarada que já fizeram na Terra, e que não conseguem (ou não querem) resolver, toca de ir fazer lixarada para o espaço e cavar aterros sanitários na Lua. E a mim faz-me confusão, a sério. Antes de pensar em salvar a espécie da extinção, o ser humano devia estar fazer por merecer ser salvo. Por enquanto não merece destino diferente dos dinossauros. Se se extinguir, não se perde nada e o universo agradece.
Voltando à primeira temporada da série, “Marte” são apenas seis episódios em que os pioneiros da colonização do planeta vermelho passam por bastantes maus bocados. Aprendi muita coisa, apesar dos pedaços “série” estarem constantemente a ser interrompidos e os pedaços “documentário” me alienarem um pouco. Por exemplo, não sabia que uma viagem até Marte são apenas 7 meses. Julguei que era muito mais. Também gostei de ver a parte em que o astronauta desmaia colado ao tecto. Só não sei até que ponto é que é tudo credível. Será mesmo assim que qualquer pessoa pode abrir uma porta (escotilha?) de uma base num planeta sem atmosfera, sem que haja protocolos de segurança confirmados por pelo menos dois responsáveis? Cheira-me que não, ou é optimismo a mais. Ou talvez a parte “documentário” quisesse que a parte “série” mostrasse o que acontece sem esses protocolos de segurança? Talvez. Mas eu continuo a achar que os dois formatos deviam permanecer separados. Preferia que não houvesse documentário nenhum e que fosse só série, para que os personagens evoluíssem e se tornassem de carne e osso em vez de ficarem nesta coisa que não é carne nem peixe.
Seja como for, o melhor momento do programa é a canção de Nick Cave e Warren Ellis, “Mars Theme”, uma pequena maravilha a descobrir. Fãs de Nick Cave, atenção.



segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Os Canibais, de Álvaro do Carvalhal

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Na forma de conto fantástico, “Os Canibais” é na verdade uma feroz crítica social. Quer-me parecer que a crítica não é apenas ao óbvio: a importância das aparências e a ganância, mas mais do que isto talvez já me escape nos dias de hoje.
A acção passa-se entre a alta sociedade portuguesa do século XIX. “Suponha o baile — se lhe apraz, mesmo por comodidade ou propriedade — suponha-o em Lisboa”, diz o narrador,  que já tinha começado o conto com uma crítica irónica ao pensamento literário da época: “Disse a crítica pela boca de Boileau: Rien n’est beau que le vrai”, isto é, só o verdadeiro é belo. [E esta já é uma tradição de séculos entre nós --só o realismo interessa-- o que é um dos factores que explica a falta de literatura gótica e fantástica em Portugal. Ainda hoje, note-se, na cabeça de muitos intelectuais, só o realismo é sério. Veja-se até o prémio Nobel, sempre atribuído a autores que retratam sociedade e política. A Fantasia, a Ficção Científica, o Fantástico em geral, são considerados devaneios inferiores. Salva-se o Realismo Mágico quando bem embrulhado em ditaduras. E isto explica porque é que Tolkien nunca ganhou o Nobel. E está tudo dito.]
Álvaro do Carvalhal vai citar a ideia de que “só o verdadeiro é belo” para se lançar num conto que é completamente Fantástico, se bem que nem sempre coerente. Eu fiquei com algumas dúvidas quanto ao que de facto aconteceu.
A jovem Margarida, bela e senhora do seu nariz, apaixona-se pelo misterioso visconde de Aveleda. Margarida é muito cortejada (“Ela era o ídolo acatado de todos os crentes”) mas não corresponde ninguém. Álvaro do Carvalhal bem sublinha que não quer dar a moral da história, mas eu vejo aqui algo do ditado “quem muito escolhe pouco acerta”. O visconde, desde o momento em que aparece, denuncia logo que não é um homem vulgar. Melancólico e desencantado, não diz duas frases seguidas que não sejam góticas: “O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder contemplá-las. Eu sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada.” O visconde adverte Margarida de que não o ame, deixando adivinhar qualquer tragédia que nunca revela, mas por fim até ele cede à sedução de Margarida e acabam por casar.
Entra aqui em cena um outro personagem, D. João, que diz amar Margarida, embora tudo nos leve a perceber que é desejo de conquista e orgulho ferido que o move. D. João queria cortejá-la mas Margarida desdenha-lhe os avanços. D. João é um Don Juan (seja o nome propositado ou não), habituado a ter as mulheres que quer. É através deste personagem que Álvaro do Carvalhal faz a crítica mais severa, descrevendo-o como um produto da sociedade, julgando que são os seus talentos pessoais, em vez da grande fortuna, que lhe abrem todas as portas. “O prostíbulo, voragem que a lei sanciona, foi a arena borrifada com o vinho de suas primeiras proezas. Cansado enfim de se estorcer na crápula, no húmido chão do lupanar, volveu os despertados apetites para a recatada burguesia. Se lhe resistia a inocência, a palavra dinheiro, pronunciada com voz anelante por lábios torpes, abandonava o pudor aos soltos caprichos do mancebo. E muitas foram as envergonhadas pequenas, que lhe venderam a virgindade em beijos frios, em dilúvios de sentidas lágrimas.”
Mas tirando a crítica social, não percebi que papel D. João realmente teve nos acontecimentos. O orgulho ferido leva-o a intentar o assassinato do visconde, nomeadamente no dia do casamento, mas antes de o chegar a fazer já a tragédia se tinha desenrolado.
Eu cheguei a pensar, até devido ao título do conto, que o visconde seria um vampiro ou algo do género. O que o visconde realmente é, prefiro que o autor o descreva: “Fez um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme, monstruoso. Pernas, braços, os próprios dentes do visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos tapetes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre, que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros. O infeliz era um fenómeno, um aborto estupendo, que em nossos dias valeria muito dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta de mais para isso. A tudo porém dera remédio a civilização de seu tempo. Afortunados tempos!”
Isto acima descrito aconteceu na noite de núpcias, em frente da horrorizada Margarida. Antes, ele tinha-a lembrado da sua promessa: “prometeste seguir-me ao cemitério, se lá fosse minha morada…” Margarida lança-se da janela e morre, de cabeça esmagada num banco do jardim. O visconde, de coração partido, atira-se à fogueira para morrer queimado.
D. João, que entra no quarto neste preciso momento na intenção de matar o visconde (ou o casal?) foge também. Mas, ao descobrir que Margarida tinha morrido, dá um tiro no “coração”, numa intenção de morrer que eu não percebi muito bem. Achei demais para um homem movido pelo orgulho ferido que de facto não amava Margarida mas a ideia de a possuir como a todas as outras. Mas as motivações das personagens não são o aspecto mais trabalhado deste conto. Diria mesmo mais, este é um conto satírico disfarçado de conto de horror, em que as acções das personagens se destinam a realçar a sátira. Nem sei se devíamos mesmo sentir simpatia pelo pobre visconde e pelo seu atrevimento e ingenuidade de julgar que Margarida o podia aceitar como era, ou se o autor estava a gozar connosco também.
Não vou revelar a parte que dá nome ao conto mas asseguro que não é publicidade enganosa. A seguir, acontece aqui uma espécie de piada que de forma nada subtil nos informa de que o dinheiro compra tudo, até a consciência.
Mas fiquei a perguntar-me: seria só isto que o autor queria dizer, que me parece tão óbvio e batido, até para a altura? O problema da escrita satírica, e neste caso o autor chega mesmo a gozar com o próprio conto, é que só faz rir quem está por dentro da piada. Era preciso dizer ou mostrar muito mais para que se entendesse plenamente a piada mais de dois séculos depois. Nunca esperei canibalismo literal deste conto, mas o título fez-me pensar num “canibalismo” simbólico em que os personagens se destroem mutuamente. Afinal, porque é que os pais e irmãos de Margarida são “canibais” a nível simbólico? Porque são iguais aos outros e também teriam prostituído a filha ao D. João ou ao visconde ou a outro qualquer, não fosse ela tão senhora do seu nariz? Era só isto? Já que o objectivo é a sátira, eu esperava mais de um título tão forte. E não gostei mesmo nada da ligeireza do fim, quase uma anedota. O autor é demasiado gozão para o meu gosto. Mas justiça lhe seja feita, o conto consegue cenas verdadeiramente tenebrosas (rebuscadas que sejam). Tudo o resto sou eu que estou mal habituada a um terror mais moderno e consistente.

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Já depois de escrever este artigo, tive curiosidade de ir pesquisar o conto e o autor. Descobri que Álvaro do Carvalhal morreu com apenas 24 anos, em 1868. Isto explica tudo o que apontei acima. Não bastando o talento, a escrita é uma arte que se aperfeiçoa durante toda a vida, mas algumas coisas só se adquirem com a maturidade, nomeadamente a construção de personagens tridimensionais e com as devidas motivações. Não posso deixar de lamentar o potencial perdido com o desaparecimento deste jovem autor.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Event Horizon / O Enigma do Horizonte (1997)


Este é daqueles que se vi não me lembro. Personagens genéricas e uma ameaça que fica sempre inexplicada parecem ser os ingredientes perfeitos para causar amnésia cinematográfica.
Até o enredo é mais ou menos igual a tantos outros do género: uma equipa de socorro é enviada em busca da nave de exploração espacial Event Horizon, seguindo um sinal que esta envia de algures em órbita de Saturno. Assim que vemos o aspecto da nave Event Horizon percebemos logo que isto vai ser um filme de terror inspirado no “Alien”. Meu dito meu feito, o filme não é exactamente subtil. Até a equipa de socorro nos recorda as tripulações dos vários “Aliens”, o tipo de pessoas que está ali porque é um emprego como outro qualquer e no fundo o que queriam era uma reforma antecipada. Gostei das cenas em que quase todos os membros da equipa fumam uma cigarrada antes de entrarem nos tanques de stasis (?). É datado, mas é giro. Também gostei de terem explicado o conceito de FTL (velocidade Faster Than Light) que implica causar uma “dobra” no contínuo espaço-tempo. Tudo ficção científica, bem entendido, mas como era 1997 ainda se deram ao trabalho de explicar. Actualmente a ficção científica usa o termo FTL a torto e a direito e pessoas como eu, que não conhecem estes termos nem sabem o que significam, ficam ali à nora a tentar perceber a acção, ou desistem. O que me leva a esta reflexão: uma ficção científica que não se dirija a um nicho muito específico de conhecedores devia ter em conta uma audiência mais interessada na história e personagens e menos nos aspectos científicos. Quanto mais a ficção científica se dirige a um nicho, mais aliena o público leigo.
Mas voltando ao filme. As coisas começam a acontecer como é previsível neste género horror sci-fi. A Event Horizon é uma nave fantasma, toda a sua tripulação está morta, alguns corpos andam mesmo ali a vogar nos corredores devido à ausência de gravidade. Enquanto exploram a nave, os membros da equipa da socorro começam a ter alucinações estranhas com pessoas que lhe são caras, algumas já falecidas. Resolvendo que se passa algo de anormal e perigoso, decidem ir-se embora, mas aqui entra em cena o cientista louco/malvado (Sam Neill). Acontece que foi ele quem desenhou a nave, dotando-a de um mecanismo capaz de criar o seu próprio buraco negro de modo a viajar no espaço mais depressa. Mas aparentemente a Event Horizon visitou outra dimensão e não regressou sozinha. Trouxe consigo forças maléficas que querem apossar-se dos recém-chegados. Que forças maléficas são estas e para onde querem levar a nave de volta? Para o inferno. Não, não é uma forma de dizer. O filme quer-nos convencer de que a nave foi ao inferno e voltou. (É tranquilizador saber que algures na infinitude do espaço, até do outro lado de um buraco negro, ainda se aplicam as regras da nossa civilização judaico-cristã.)
As tais forças maléficas apoderam-se da mente do cientista (ou será que ele já era assim?) e a partir daqui este faz o papel de sabotar a fuga dos outros. O resto do filme é a tripulação da nave de socorro a lutar pela vida.
“Event Horizon” não prima pela originalidade mas enche o olho em termos de efeitos especiais e cenários. É o tipo de filme que se via no grande écran (quando ainda havia grande écran, mas já em extinção) a comer pipocas. Uma crítica que li chamou-lhe uma espécie de “Shining via Aliens”, e é de facto uma descrição muito apta. Durante quase todo o filme me recordei de “The Shining”, especialmente na cena em que um dos tanques de stasis se enche de sangue, explode, e jorra sangue por todo o lado, como o célebre elevador do hotel Overlook. Fiquei foi sem perceber se o tanque aconteceu mesmo ou se foi outra alucinação. Na verdade, fiquei sem perceber grande coisa excepto que o inferno é muito mau e pode estar do outro lado de um buraco negro, e que o Génesis bíblico tinha razão: o homem não deve querer saber tanto como Deus ou será castigado. Mas acho que até já estou a tirar conclusões a mais por mim própria e a tornar o filme mais interessante do que é. “Event Horizon” aposta principalmente no espectáculo, com muitos cenários, muitas explosões, muito sangue e afins, mas na verdade é um filme vazio que não deixa lembranças.


14 em 20


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A Morta, de Florbela Espanca

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Ou não fosse Florbela Espanca, este é um conto em prosa poética. Os temas são os do costume nesta poetisa, o amor e a morte, e mais uma dose de morte.
Tal como em toda a prosa poética, apenas se pode interpretar o significado, e do que eu conheço da autora interpreto assim: a Morta morreu nova; durante uns tempos, o noivo foi visitá-la ao jazigo; por fim, o noivo deixou de visitá-la. Sentindo-se esquecida, a Morta levanta-se e vai-se “afogar”/”diluir” no rio, onde acabam todas as memórias. (Florbela conheceria o rio Lethes?... Na sua obra poética, Florbela menciona várias vezes a transmigração das almas/metempsicose/reencarnação, pelo que não é descabido interpretar este conto como mais uma referência a essa “morte” do eu antigo/renascimento pós-morte).
Florbela Espanca foi a autora mais gótica do nosso país antes de haver o movimento gótico. Lamento muito por ela não ter encontrado a sua gente. Talvez o suicídio tivesse sido evitado. Trágico destino de nascer antes do seu tempo. Como é que se conseguia ser gótico e viver naquele tempo de Avé-Marias e procissões, e de gente normal a martelar-lhe aos ouvidos que o problema estava nela? A solidão intelectual devia ser absoluta.
Isto é suspeito da minha parte porque eu adoro a autora, mas este foi um dos meus contos preferidos desta colectânea.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.