domingo, 25 de dezembro de 2022

The Handmaid’s Tale [terceira temporada]


[contém spoilers!]

[Primeiras duas temporadas]

Não esperava escrever tão cedo sobre esta série mas há tanta coisa a acontecer na terceira temporada que merece um post próprio.
Esta é a temporada em que o mundo se expande para lá de Gilead. É a temporada em que conhecemos a Resistência. É a temporada em que Serena Joy “fornica” o marido (e não no bom sentido) e em que Fred se vinga “fornicando-a” também.
Após a fuga de Emily, auxiliada pelo enigmático Comandante Joseph Lawrence, June é destacada precisamente para casa dele (a pedido de Lawrence, obviamente), passando a chamar-se Ofjoseph.
É-nos dito que Lawrence foi o grande arquitecto da economia de Gilead, mas eu pergunto: qual economia? Daquilo que percebemos das temporadas anteriores Gilead não tem economia, está sob sanções de muitos países que se recusam a estabelecer relações comerciais devido à falta de respeito pelos direitos humanos de Gilead, não existe turismo, o Canadá acolhe todos os refugiados de Gilead, a comida é racionada e só existem produtos da época devido a uma agricultura à antiga, e a “economia” das colónias (continuo sem saber onde elas são) resume-se a encher sacos de lixo radioactivo. A série não conseguiu estabelecer isto, mas percebe-se que Lawrence é efectivamente muito importante porque nem se digna de sair de casa para reuniões com os outros comandantes: são eles que vão à casa dele. Se isto não é importância e estatuto não sei o que será.
Devido a esse estatuto irrepreensível, Lawrence é a pessoa ideal para ser simpatizante da Resistência, especialmente porque a sua mulher, a quem ele adora, tem problemas mentais e sofre imenso com o que se passa no regime. Por esta razão, Lawrence não permite que ela saia de casa (para não ver o que se passa e para não trair o que se passa na casa deles). A casa de Lawrence, mesmo debaixo dos narizes dos outros comandantes, é um núcleo da Resistência. As Marthas (criadas para quem ninguém olha, que não são tão escrutinadas como as Servas) são as suas principais agentes com ajuda de alguns guardas e até comandantes que querem destruir o regime do seu interior.
Nesta temporada, e a série foi bastante criticada por isso, June comete vários erros de julgamento que teriam significado a morte de qualquer outro personagem. Mas June adquire um execrável “plot armour” (não pode morrer porque o que seria do enredo se a protagonista morresse?) e escapa a todos os erros com um puxão de orelhas, a ponto de se tornar irrealista num mundo em que as pessoas vão parar à forca e são penduradas na parede (como exemplo) à menor transgressão.
Algo que vai valendo a June é a protecção de Lawrence, a quem esta convence de que a mulher dele estaria melhor fora de Gilead porque a doença mental está a agravar-se e é cada vez mais difícil encontrarem-lhe a medicação de que ela precisa. Lawrence acaba por concordar.
Podemos pensar muito mal de Lawrence, um dos arquitectos de Gilead, que embora simpatizante da Resistência não faz parte dela e também não atrapalha. Mas uma coisa é certa: Lawrence ama a mulher Eleanor, a sério e de verdade.
No entanto, Lawrence tem inimigos. Como sempre nestes regimes, há facadas nas costas. Fred Waterford, antigo “dono” de Offred, insinua que Lawrence não está a cumprir o seu dever na Cerimónia, uma vez que já teve quatro Servas sem “produtividade”. Fred, um outro comandante, Serena Joy e a Tia Lydia (não falei das Tias antes, mas estas são as carcereiras sádicas que “treinam” e controlam todos os pormenores das vidas das Servas) sugerem proceder a um Testemunho, isto é, irem a casa de Lawrence na noite da Cerimónia para testemunharem se esta é realizada.
Foi a cena mais difícil de ver em “The Handmaid’s Tale” (o que não é dizer pouco nesta série). Lawrence, Eleanor e June fecham-se no quarto e Lawrence sugere que não façam nada enquanto Eleanor, fora de si, lhe grita: “Tu prometeste que nunca teríamos de fazer isto!” Ficamos a saber que a Cerimónia nunca aconteceu na casa de Lawrence. Tem de ser June a explicar que a Cerimónia tem mesmo de acontecer porque a Tia Lydia trouxe um médico para a examinar depois. Se Lawrence não fizer sexo com ela, não é o único a ser punido: ele, a esposa, as criadas e June, todos correm risco de vida. Lawrence pede à esposa que se sente a um canto, jurando que não significa nada, e corre as cortinas para ela não ver. Nesta cena, todos são violados. Ninguém está a salvo em Gilead.
No dia seguinte, Lawrence faz planos para fugir.
É também na terceira temporada que June começa a exibir um carácter de quem está disposto a tudo para lutar, e não apenas sobreviver. Quando June encontra Eleanor em coma numa tentativa de suicídio com comprimidos, June ainda pensa em ajudá-la… e de repente pára e pensa melhor, no seu momento “Breaking Bad”. Eleanor, completamente instável e descompensada, queria ir falar a toda a gente dos planos de fuga para “salvar as crianças” raptadas aos pais. A sua morte resolve esse problema. Algumas pessoas viram compaixão no acto de June para com uma mulher em sofrimento que quer morrer, e acredito que tenha havido uma parte disso também, mas acredito mais que June pensou duas vezes e deixou as coisas acontecerem como lhe interessava mais. 


Fred e Serena
Mas voltemos ao nosso casal “preferido”. Vimos a saber que Fred costumava trabalhar em marketing. Para convencer os canadianos a devolverem Nichole (a bebé de June e Nick que Emily levou com ela ao fugir) organiza grandes eventos de oração em que June tem de colaborar à força. Aqui parece que os canadianos estão numa de realpolitik, porque começam a dizer que é melhor reatarem negociações com o vizinho Gilead por causa das relações comerciais e isso tudo. Mas Gilead está a usar Nichole para tentar que o Canadá extradite todos os refugiados no seu território, atrasando as negociações de propósito. Serena apercebe-se disto e sugere a Fred que contactem um representante do governo americano no exílio, um homem da sua confiança, para recuperarem a bebé mais cedo. Sozinhos, de carro, Fred e Serena vão ao encontro deste representante, que imediatamente prende Fred por crimes de guerra. Mais tarde Fred vem a saber quem o traiu: Serena. Eu fiquei tão atónita como ele. Serena enganou-nos bem. Mas Fred também tem crimes a apontar a Serena, e Serena é presa também. Adoro quando são os próprios maus a destruírem-se uns aos outros. Foi uma satisfação indescritível.
Mas porque é que Serena Joy traiu Fred? Pela promessa de passar algum tempo com a bebé Nichole, a quem ela chama “filha”. Ora, aqui há conclusões a tecer sobre Serena. Eu nunca acreditei quando ela dizia que ter um filho era tudo o que queria da vida. Sempre pensei que era uma desculpa, que Serena foi uma das arquitectas de Gilead pela ambição do poder mas o tiro saiu-lhe pela culatra. Neste episódio fui obrigada a acreditar que Serena, apesar de se encontrar agora no “mundo normal”, ainda vive na fantasia e obsessão em que ela é a mãe de Nichole, embora a criança nada lhe seja biologicamente e esteja a viver com o marido de June. Isto já é caso de psiquiatra, o que explicaria muita coisa.
“The Handmaid’s Tale” tem representações notáveis, especialmente a de Elisabeth Moss (que conhecemos de “Mad Men”) no seu enorme papelão como Offred/June, mas eu quero destacar o magnífico trabalho da actriz Yvonne Strahovski (Serena Joy), ainda por cima uma vilã, a quem não conhecemos o monólogo interior como no caso de June, e que mesmo assim nos engana e deixa na dúvida, quando o mais normal seria sentirmos uma repulsa imediata por Serena Joy.
Já vi mais temporadas de “The Handmaid’s Tale”. Se alguém ficar frustrado com a aparente falta de movimento da terceira temporada (discordo, mas algumas pessoas preferiam que o enredo andasse para a frente mais depressa) garanto que a partir daqui as coisas começam mesmo a aquecer.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes

 

domingo, 18 de dezembro de 2022

Kiss Me (2004)


Foi um sacrifício ver este filme. Sem exagero, demorei umas duas semanas a assistir a uns 15 minutos de cada vez porque não conseguia aguentar mais. Lembro-me vagamente de ter lido críticas arrasadoras a “Kiss Me” na altura em que estreou. Por uma questão de cultura geral, insisti em ver até ao fim.
Havia aqui muita coisa para explorar se fosse esse o objectivo. Cheguei ao fim do filme sem perceber muito bem que objectivo era esse.
Esta é a história de Laura, que foge da sua terra (Alentejo, parece-me) por ser maltratada pelo marido. Aqui temos o cenário da pequena mentalidade de aldeia dos anos 50/60 e uma história bastante vulgar. Laura vai para Tavira, onde fica a viver com uma tia muito sofisticada que morou na América e gosta de dizer umas palavras em inglês em cada frase só para mostrar que sabe. (Também não percebi muito bem como é que esta tia, irmã da mãe de Laura, conseguiu sair da terrinha e tornar-se uma mulher tão diferente da pacóvia da irmã, mas se calhar não é importante. Não é a história dela.) A tia ensina Laura a transformar-se numa grande P-U-T-A que se aproveita dos homens. Ou talvez não. A tia ensina-a a ser sedutora; a putice é opcional. Influenciada pela tia, Laura apaixona-se pela actriz Marilyn Monroe a ponto de pintar o cabelo e de se vestir como ela. A partir daqui, desata a seduzir este e aquele, um porque é bom na cama, outro porque daria um marido conveniente, outro porque lhe paga as contas. O filme é passado nestas seduções de femme fatale de cliché a quem os homens não conseguem resistir porque sabem que vão ter cama. E vão mesmo ter cama.
Conheci muitas Lauras ao longo da vida. Isto não é liberdade nem emancipação feminina, é simplesmente putice. O filme ainda se mete por um sub-plotezinho com a PIDE, mas tão mal exploradinho que mal se dá conta de que ele existe (e isto não é o “Até amanhã, camaradas”, antes fosse).
Não consegui empatizar com a personagem, achei o enredo (?) longo e chato, não percebi o propósito. No fim, Laura casa com o homem mais velho que lhe banca as contas. Podia ter logo casado com ele e acabava o filme mais cedo. Ah, mas precisávamos de umas cenas de cama para encher.
De facto, Laura é daquelas pessoas que me dá urticária e de quem só quero distância. Uma drama queen, sem querer parecer a tia dela. A cena do carro, por exemplo. Para pedir a um dos amantes que prove que a ama, Laura manda-o atirar um carro novo de um penhasco abaixo. Isto não me entra na cabeça. Para lá de ser irresponsável (já não digo anti-ecológico porque naquele tempo ninguém pensava nestas coisas), um carro novo custa dinheiro. Não se atira de um penhasco abaixo. Vende-se, por exemplo. Para provar que a ama, o gajo deixava a mulher dele e casava com ela (o que não faz, porque só a quer para a cama). Então, o que é que Laura ganha com isto? O dramalhão de telenovela e o sexo, se calhar? Porque afinal não é ela quem ultimamente se aproveita dos homens, mas o contrário. À excepção do sr. Almeida, que a aceita e lhe paga as contas porque já não tem idade para grandes escolhas. Laura paga-se bem, quanto a isso não há nada a dizer. Já que todos se aproveitam, estão bem uns para os outros. Cada qual tem o que merece.
E assim esta é a história de uma Marilyn de salão de cabeleireiro que quer ser uma mulher fatal mas parece mais outra coisa. THE END.
Só tenho algo de bom a dizer deste filme. Ao contrário das produções nacionais mais recentes, em ”Kiss Me” não notei os problemas de som de que me tenho vindo a queixar ultimamente. Parece que é mesmo coisa de há poucos anos para cá.

10 em 20

domingo, 11 de dezembro de 2022

Arctic / Árctico (2018)


O piloto de um pequeno avião despenhado no Árctico tenta sobreviver sozinho enquanto aguarda salvamento. O filme começa quando o homem já se encontra há algum tempo nesta situação (por exemplo, já perdeu um dedo do pé). O que o salva até então é mesmo o abrigo da avioneta, onde se refugia como se fosse a casa mais confortável que existe (e, naquelas condições, até é).
Finalmente, consegue contactar um helicóptero. Azar dos azares, o helicóptero de resgate é apanhado por uma rajada de vento e despenha-se também. O piloto morre imediatamente mas a co-piloto fica viva, embora inconsciente. Isto ainda vai acrescer aos problemas do sobrevivente, que agora não tem os recursos suficientes para a salvar. Tem de tomar uma decisão: ficar onde está, ou iniciar uma jornada longa e perigosa até ao posto de sobrevivência mais próximo. A viagem por si só já seria arriscada, no gelo e à mercê das intempéries num local do planeta em que adormecer pode significar hipotermia e morte. Como se não bastasse, têm um urso polar à perna.
Não posso mesmo contar mais nada.
“Árctico” é um filme de sobrevivência muito simples, muito directo, que se expressa muito bem. Por alguma razão já vi imensos filmes de sobrevivência no Árctico e na Antártida e há algo que posso garantir: eu não sobreviveria um dia, mesmo sem urso. É arrepiante a todos os níveis, de ficar com pele de galinha só de “sentir” o frio extremo que vemos no écran. Mas sempre vai dando para aprender alguma coisa.

14 em 20


domingo, 4 de dezembro de 2022

The Handmaid’s Tale (2017-?)


[crítica à primeira e segunda temporadas]

Uma das séries mais chocantes dos últimos tempos, esta é a adaptação do livro homónimo de Margaret Atwood.
Antes de entrarmos na crítica propriamente dita, tenho duas coisas a dizer.
A primeira, é que fiquei chocada por haver mulheres que ficaram chocadas por esta série mostrar o quanto as mulheres podem ser más umas para as outras. Não percebo, sinceramente. Que existências resguardadas devem estas “chocadas” ter experimentado a vida toda ou, pelo contrário, o “choque” é fingido. Custa-me a acreditar que uma mulher não conheça a perfídia (e o fingimento) de que outra mulher é capaz.
Segundo, embora não seja grande apologista de leituras obrigatórias, penso que este livro (e/ou a série), tal como outros clássicos distópicos como “1984” de George Orwell e “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, deviam fazer parte de um kit de leitura de sobrevivência e prevenção contra todos os totalitarismos.
Acho muito curioso que o livro tenha sido publicado em “1985” (embora todos os livros sejam escritos muito antes), como se uma sequência natural de “1984”. Terá sido apenas uma coincidência, mas não deixa de ser interessante.
Uma vez que não estou a escrever um livro, posso dar-me ao luxo de um pequeno info dump para situar a história. A Terra está tão poluída que isso se reflectiu nas taxas de fertilidade e natalidade. Muito poucas mulheres conseguem engravidar e levar a gravidez a termo, ou mesmo dar à luz bebés saudáveis. (Isto recorda outro clássico distópico, “Children of Men” de P. D. James, mas muito mais chocante.) Na América, uma facção de fanáticos religiosos chamados Sons of Jacob tomam o poder pela propaganda e pela força, entrando em guerra com o governo americano (que perde) e estabelecendo o regime do novo país Gilead. Mulheres férteis são escravizadas como Handmaidens (Servas) para darem à luz os filhos dos governantes de Gilead.
Pauso novamente para explicar de onde os Sons of Jacob tiraram a ideia. É possível que os Sons of Jacob tenham sido uma seita evangélica antes do regime, mas os pressupostos bíblicos em que se baseiam e a nova religião que inventam não têm nada a ver com qualquer cristianismo que conheçamos hoje. A ideia das Servas vem do episódio bíblico em que Raquel, sendo estéril, “oferece” a sua serva (escrava) Bila a Jacó (a Bíblia está cheia destes exemplos edificantes) para que este tivesse relações sexuais com ela e Bila “parisse sobre os joelhos” de Raquel, como se o filho fosse desta. (Génesis 30, 1-5) Basicamente, Bila é uma barriga de aluguer à força, tal como o são estas novas Servas de Gilead.
A nova religião leva este “sobre os joelhos” completamente à letra e inventa um ritual em que a Serva é violada no meio das pernas da esposa enquanto o marido a penetra sem lhe tocar. Isto não é só doentio e repugnante e criminoso, acho-o mesmo escabroso e até um pouco badalhoco (em todos os sentidos). Mas segundo a doutrina do ritual em que marido e mulher participam, a Serva é apenas o receptáculo entre eles.
Da mesma forma, quando a Serva dá à luz, a esposa finge que também está a dar à luz, fazendo a respiração e tudo. Dito assim, até parece cómico. Foi mesmo por achar cómico que uma das futuras Servas, ainda em “formação”, perdeu um olho.
Quando as Servas têm filhos, as crianças são-lhes tiradas e as Servas são enviadas para um novo “destacamento”. Uma vida de inferno.

Offred / June
Offred é a Serva do Comandante Fred Waterford (daí o nome OfFred) e da sua esposa Serena Joy. Na “outra vida” Offred chamava-se June, casada com Luke e mãe de Hannah. Quando o regime de Gilead começou a exercer poder, como a própria June explica, estavam “adormecidos”, incapazes de acreditar que as coisas chegassem tão longe. Mas então começa a guerra e o totalitarismo impõe-se de forma brutal e sangrenta. June e Luke ainda tentam fugir para o Canadá, mas são apanhados. Luke consegue escapar, com ajuda de estranhos. Hannah é retirada à mãe e entregue a um casal de dirigentes do novo regime. June, por ser fértil, é “recondicionada” para ser Serva, o que implica tortura, lavagem cerebral, mutilação e até morte para as mais rebeldes.
Demorei um bocado a perceber que nem todas as mulheres férteis iam para Servas. June não escapou porque é considerada adúltera. Descobrimos depois que June e Luke começaram por ter um caso enquanto ele ainda era casado com outra mulher, de quem se divorciou para casar com June. Basta isto para ser pecado, ou desculpa, para arrebanharem mais uma Serva. Mães solteiras, lésbicas, “pecadoras” várias, desde que férteis, vão para Servas. Outras mulheres vão para Marthas (criadas domésticas). Em Gilead tudo está previsto, até as cores com que todas se vestem: as Esposas vestem verde, as Servas vermelho, as Marthas cinzento. Assim não há confusões quanto ao lugar de cada qual na sociedade. Para além da violação ritualizada uma vez por mês, chamada a Cerimónia, as Servas também podem ir às compras, duas a duas, por ruas cheias de enforcados: homossexuais, médicos que fazem abortos, até padres. Gilead não gosta da religião antiga porque tem a sua.
As mulheres são proibidas de ler, até mesmo a Bíblia. A pena por ler é o corte de um dedo ou da mão toda. (Pergunto-me como é que eles pensam continuar a fazer isto no futuro. Para uma sociedade que passa o tempo a declamar salmos e outras passagens bíblicas memorizadas, vai tornar-se difícil que as mulheres memorizem o que não conseguem ler… Mas se calhar bastará um ”ámen”, como na Idade Média em que o povo também não lia.)
Como desculpa para todos estes horrores, os dirigentes de Gilead proclamam que estão a criar um mundo sem poluição (à excepção dos carros e aviões deles). Isto justifica também regressar a hábitos “tradicionais”, como andar 300 anos para trás.
Não há nada em “The Handmaid’s Tale” que não se tenha passado algures na História, como diz a própria autora, mas admito que aquela violação escabrosa e institucional a dois possa ser um elemento realmente original.
Nesta sociedade santarrona, apesar de tudo, o vício tem lugar nos bastidores. Quando uma mulher é considerada “irredimível” é enviada para bordéis secretos onde é chamada Jezebel. A Jezebel é igualmente uma escrava, mas não institucional. As mulheres, até mesmo as Esposas, perderam todo e qualquer poder. Se sabem, fecham os olhos.
Finalmente, quando a mulher já não tem qualquer valor reprodutivo ou sexual, ou é demasiado rebelde, é enviada para as sinistras Colónias (ainda não percebi onde são) encher sacos de lixo radioactivo até à morte. Estas são chamadas Unwomen, o que lembra a “non-person” de Orwell (quem era morto pelo regime). Aliás, o que não falta aqui é “new-speak”, como em qualquer totalitarismo. “Bendito Seja o Fruto”, “Que o Senhor Abra”, é a saudação entre Servas. Cada classe tem a sua.
Offred tem momentos de grande desespero, mas não pode desistir porque não perde a esperança de salvar a filha Hannah. Isto é um grande motivador. Outras mulheres perdem a cabeça (como Janine) ou recorrem à violência em desespero de causa (como Emily, que já não julga escapar com vida). Offred tem dois grandes trunfos para além da motivação de encontrar a filha: é uma manipuladora nata, e está (sempre esteve) muito à vontade com a sua sexualidade. Isto permite-lhe, por exemplo, seduzir o Comandante Fred e fingir-se sua amante (chega a fazer sexo com ele fora da obrigação da Cerimónia) de modo a obter mais margem de manobra e protecção. Não imagino uma Emily a conseguir fingir isto, mesmo que quisesse. Numa forma de reclamar o seu corpo e a sua sexualidade, June envolve-se numa relação romântica (e consensual) com o guarda/motorista dos Waterford, Nick, o que se vai revelar fulcral para o desenvolvimento do enredo.
June tem a perfeita consciência de que pisa demasiado o risco. É necessário resistir, mas não ser estúpida a ponto de ser enforcada: morta, não conseguirá ajudar a filha. Mas June não é a personagem perfeita, longe disso. Tal como alguém lhe diz, já na terceira temporada, muitas vezes é egoísta e age apenas no seu interesse, não importando quem tenha de sacrificar. E é verdade, por exemplo, quando quase obriga um casal a ajudá-la a fugir, o que estes fazem por decência, com resultados funestos. (Curiosamente, esta é uma família muçulmana que esconde o Corão debaixo da cama, o que leva June a meditar que podia ter sido a família dela, se tivessem sabido jogar o jogo, se soubessem que o estavam a jogar, e se tivessem frequentado “a igreja certa”. As famílias medianas em Gilead não têm Servas e Marthas ao dispor, são apenas gente normal a tentar sobreviver mesmo que tenham de esconder a sua religião, o que nos leva imediatamente para um paralelo com o Nazismo.)
Noutra situação, Offred incita as outras Servas à revolta, sabendo que por estar grávida se tornou “intocável”, mas as outras são barbaramente castigadas e June tem de viver com essa culpa. Mas eu gosto de personagens realistas, complexas e atormentadas. O que nos leva aos verdadeiros vilões.

Fred e Serena Joy Waterford
“The Handmaid’s Tale” recorre bastante aos flashbacks para nos mostrar como as coisas evoluíram até Gilead. Fred e Serena eram dois fanáticos fundamentalistas que já na altura acreditavam que a humanidade estava à beira da extinção e que era preciso tomar todas as medidas necessárias para o evitar, drásticas que fossem. Serena foi mesmo uma das arquitectas do regime ao escrever o livro “O lugar de uma mulher” onde expôs o seu conceito de “feminismo doméstico” , remetendo a mulher ao seu papel de esposa e mãe. Sim, ironicamente, foi ideia dela. Isto ainda era no tempo em que Fred e Serena se olhavam como iguais e Serena escrevia livros e dava palestras. Depois de Gilead, tudo mudou. Agora Serena não pode sequer ler o seu próprio livro, e aceitou tudo isto voluntariamente por acreditar na “causa maior”. Mas quando Offred chega a casa dos Waterfords, o casamento deles já está de pantanas. Já não dormem juntos, já quase nem se falam. Serena Joy é a personagem mais complexa nisto tudo. Apesar de ter tido parte bastante activa no estado de coisas, tenta afogar todas as frustrações no objectivo (ou obsessão) de ter um filho através de uma Serva, mas cá para mim não há nada que sacie Serena Joy porque todo o seu intelecto e brilhantismo foram apagados na sociedade que ela própria criou. Não admira que tenha dores de consciência ocasionais, e ataques de raiva que descarrega na Serva e nos criados. Serena Joy poderá nunca ser absolvida perante a sociedade pelos crimes que cometeu, mas também não encontrará paz de espírito enquanto não aceitar os seus erros.
Fred é o personagem menos explicado. Nos flashbacks de “antes” vemos claramente que não era o monstro em que Gilead o tornou, nem Serena Joy teria casado com ele se o fosse, mas não percebemos exactamente como é que ocorreu a transformação de homem que apoia e admira a mulher que escreve livros e discursa em público para marido capaz de a castigar com tareias de cinto. É uma grande diferença e só posso concluir, sem outros motivos, que o poder lhe subiu à cabeça. Mas o estatuto de pai de família é importante e não lhe corre bem alienar ainda mais Serena Joy. Não conseguimos empatizar com estes monstros, mas salta à vista que ninguém é feliz em Gilead, nem os mais poderosos do regime.

Uma série mais actual do que a própria Margaret Atwood poderá ter julgado em 1985
Haverá mais a dizer com as temporadas seguintes, mas para já decidi ficar por aqui. “The Handmaid’s Tale” é uma história cada vez mais actual. Basta recordar que em alguns estados americanos, muito recentemente, o aborto foi proibido. Tal como nos diz a própria série, “não aconteceu da noite para o dia”. Foi progressivo, de perda de liberdade em perda de liberdade até à submissão total.
Destaco ainda a belíssima cinematografia que contrasta propositadamente com as atrocidades a que temos de assistir. Neste aspecto, e pelo tema, “The Handmaid’s Tale” lembra-me “The Man in the High Castle”, mas muito mais realista e acutilante.
Esta é uma série difícil de ver pela tortura e pela barbaridade, mas que aconselho a toda a gente, especialmente àqueles que preferem enterrar a cabeça na areia até ser demasiado tarde (como June e Luke) e não gostam de ver estas coisas. Dois olhinhos bem abertos evitam muitos males. Há que pará-los antes de começarem.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes