domingo, 28 de fevereiro de 2021

Divergente, de Veronica Roth (livro), e filmes

[contém spoilers]

Ó Céus, ó Seca! Sem exagerar, este foi um dos livros mais aborrecidos que já li na vida.
Mas antes, o disclaimer: este foi dos tais que adquiri como bónus da entidade patronal. Era escolher alguns ou ficar sem nada. A sinopse interessou-me. Numa sociedade de facções, uma jovem divergente é obrigada a escolher a facção a que vai pertencer o resto da vida. É caso para dizer que a sinopse é melhor do que o livro, porque me fez pensar numa história socio-filosófica em que a conclusão é que todos somos divergentes e ninguém pertence a uma só facção como ovelhas rotuladas. Eu, sem dúvida nenhuma, sou divergente. Mas afinal há sempre uns mais divergentes do que outros.
Assim que vi o primeiro filme, homónimo, arrependi-me logo de ter adquirido o livro. Mas já que estava cá em casa, dei-me ao trabalho de ler e julgar por mim própria. O livro ainda é pior do que o filme, não só porque qualquer livro demora mais a ler do que um filme demora a ver, mas também porque é mais chato.
É uma história Young Adult contada na primeira pessoa em que uma rapariga de dezasseis anos (mas que aparenta uns vinte e tal em maturidade) decide escolher uma facção de malucos e sádicos porque quer ser maluca e sádica como eles. Não lhe consegui perdoar isto e nunca consegui simpatizar com ela. Mas certas coisas são culpa da autora. Por exemplo, logo a princípio um dos Intrépidos (os tais malucos e sádicos) cai de um telhado por acidente e os outros companheiros de facção nem pestanejam. Penso que até ali deixam o cadáver sem se darem ao trabalho de o ir buscar, ou nada nos é dito sobre isso. Isto não é comportamento humano normal excepto em situação de guerra ou catástrofe. Desprezar assim um “membro da tribo” é minar o espírito de grupo. Mas Beatrice (a miúda) observa isto e nem se incomoda. Em Roma sê romano, deve concluir, e não pensa mais no assunto.
Segue-se uma longa iniciação cheia de praxes e bullying. Isto podia resultar se os Intrépidos fossem uma daquelas tiranias mesmo medonhas, como na História Alternativa de “The Man in the High Castle”. Mas não. Isto parece mais uma historinha de colégio interno onde os veteranos embirram especialmente com a miúda nova sem que haja sequer grande razão para isso. Beatrice veio de outra facção, mas não é a única. Não vejo razão para implicarem com ela mais do que com os outros “transferidos”, a ponto de a quererem matar por ter bons resultados, santo exagero! (Alguém deve ter passado as passinhas do Algarve no liceu e este livro é resultado/vingança dessa experiência.)
O livro são páginas e páginas de treino e simulações (tipo jogos de vídeo). Poderá haver algo mais chato do que páginas e páginas de treinos? Eu nem o “Karate Kid” consegui suportar já por causa disso.
Finalmente Beatrice consegue o que quer, ser iniciada como Intrépida de pleno direito, só não sendo tão sádica como os outros porque tem o tal gene “divergente”. Mais um simplismo irrealista, a mera ideia de um grupo de pessoas só poderem ser uma coisa e uma coisa apenas. Não há lugar para empatia nos Intrépidos, como se em vez de humanos fossem uma outra espécie qualquer, ou uma cambada de psicopatas (é mais a segunda hipótese).
Finalmente, chegamos à acção. Não vou contar como, mas há uma guerra entre facções. A mãe de Beatrice morre a salvar a filha. Reacção: “Oh, nem acredito que a minha mãe acabou de morrer à minha frente, mas tenho mais que fazer agora.” Apenas horas mais tarde, o pai de Beatrice morre também. Reacção: “Hoje não estou com paciência nenhuma. Morreu-me o pai e a mãe. Que raio de dia.”
Eu espero que no próximo livro ela chore, e chore muito, porque isto não é uma reacção normal de pessoa humana a fazer um luto por um pai e uma mãe de quem gostava muito. Não é mesmo. E novamente culpo a autora que não deve perceber muito de psicologia nem de gente nem da vida. Que personagens tão mal escritas, ó desgraça!
Ainda por cima os Eruditos (facção) são os maus da fita. Isto sim, já é plausível, porque este livro realmente não se destina a um público-alvo de grande erudição. Mas chateou-me ainda mais, não bastante tudo o resto, porque numa sociedade destas (ou doutras) eu escolhia mesmo pertencer aos Eruditos sem pensar duas vezes. Mais uma razão para não simpatizar com a protagonista nem com o livro.
Pelo menos fiquei a saber algo que não apanhei no filme. As facções estabeleceram-se assim para evitar aquilo que acreditam causar as guerras: os Eruditos, a ignorância; os Intrépidos, a cobardia; os Cândidos, a mentira, e por aí fora. Mais uma explicação simplista de gente pouco erudita, porque o Mal é demasiado complexo para se explicar apenas por um único factor. O mais irónico ainda é que não há nada mais propício do que um sistema de facções para criar um clima de conflito “nós contra eles”, que seria exactamente o que as facções supostamente deveriam evitar. Os Eruditos, que pelo menos estudam, devem ser os únicos que sabem disto. Mas chamar malvados aos únicos que prezam o conhecimento não é um bom princípio.
Dei três estrelas ao livro no Goodreads porque está escrito decentemente, em termos técnicos. Se fosse a avaliar unicamente a história, levava só duas estrelas com sorte.

Divergente / Divergent (filme, 2014); Insurgente / Insurgent (filme, 2015)
Como disse, assim que vi o primeiro filme, “Divergente”, arrependi-me logo de ter pedido o livro e demorei alguns anos a começar a lê-lo. Mesmo assim, tenho de dar os parabéns aos realizadores do filme por terem conseguido fazê-lo mais interessante do que o livro, adaptando e cortando o que foi preciso, adicionando mais dramatismo onde era criticamente necessário. Por exemplo, no filme sentimos de facto a dor e o luto de Beatrice quando perde os pais. No livro, e ainda mais grave, na primeira pessoa, é quase como se ela estivesse a falar de dois conhecidos lá da rua. O filme não me interessou nada, mas como o vi primeiro ainda serviu para salientar mais os problemas do livro.
“Insurgente” consegue ser um filme ainda mais maçador, o meio da história na trilogia onde se avança um bocadinho mas não muito, onde me dá a sensação de que o filme se passou todo entre várias simulações que apenas Beatrice consegue manipular. Olha outra incongruência. Por alma de quem é que a Super-Beatrice é a única que consegue manipular as simulações, como apenas os divergentes conseguem, e destes é a melhor de todas? Que genes tão bons devem ter os divergentes em relação aos outros seres humanos. No segundo filme há mais violência e mais mortes, mas nada que cause impacto.
Péssima série, não aconselho a ninguém. Vou ver o último filme, “Allegiant”, quando e se passar na televisão, porque gosto de saber o fim às coisas, mesmo quando as coisas são más. Mas não tenho pressa nenhuma. Se nunca o vir também não perco nada.

Divergente / Divergent (filme, 2014)

12 em 20

Insurgente / Insurgent (filme, 2015)

12 em 20

 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Blog Gotika ultrapassa as 400.000 visitas

 

Quatrocentas mil!
Pena não ter estado aqui para captar o momento dos 400 zero zero zero.
São muitos visitantes. São muitos leitores. Muito obrigada a todos. O blog não existiria sem vós!

domingo, 21 de fevereiro de 2021

The Hunger Games: Catching Fire / Os Jogos da Fome: Em Chamas (2013); The Hunger Games: Mockingjay - Part 1 / Os Jogos da Fome: A Revolta – Parte 1 (2014)

Quando aqui fiz a crítica ao primeiro filme, perguntava-me quem seria Katniss quando não andava a ser perseguida na floresta. Agora já sei. Katniss é daquelas protagonistas Young Adult que estão muito na moda e que não passam de “action figures” à Schwarzenegger, mas no feminino como manda o “espírito dos tempos”. Queixei-me do mesmo quanto à Juliana de “The Man in the High Castle”, protagonista que ali está para fazer as coisas que o enredo precisa que ela faça. Profundidade nenhuma, motivações as mais básicas. Isto era o pior dos filmes de acção dos anos 80 e continua em força, pelos vistos.
O único esforço para aprofundar Katniss é um stress pós-traumático levezinho que a faz ter um ou dois pesadelos depois de sobreviver aos Jogos da Fome, mas nada de grave ou incapacitante.
Até o triângulo amoroso (?) é incompreensível. Mas afinal ela gosta é do Gale, ou do Peeta, ou dos dois, ou de nenhum? Assim o que parece é que ela beija aquele que ali está mais perto porque… está ali mais perto. Coisinha mais mal feita. Ao menos podiam ter aprendido com “Os Diários do Vampiro”, um triângulo amoroso Young Adult verdadeiramente épico, daqueles que nos prendem a respiração.
Mas vamos lá aos filmes.


The Hunger Games: Catching Fire / Os Jogos da Fome: Em Chamas
“Os Jogos da Fome: Em Chamas” é a continuação do enredo onde o primeiro filme acabou. Katniss sobrevive aos Jogos da Fome, mas de maneira tão subversiva que inspirou as populações dos distritos oprimidos à rebelião. A princípio a elite dominante do Capitólio decide passeá-la e a Peeta, numa espécie de romance de telenovela para distrair a populaça. Quando não funciona, o malvado do Presidente Snow (malvado como só Donald Sutherland consegue fazer sem grande esforço) decide eliminá-la. Muda a “narrativa” política, e agora Katniss e os outros vencedores de prévios Jogos da Fome vão ter de se confrontar nuns Jogos especiais que celebram os 75 anos do regime.
A única maneira em que esta história funciona, e funciona muito bem apesar de tudo, é ao basear a elite despótica na Antiga Roma, desde os nomes ao vomitorium. (O próprio nome do país vem de “panem et circenses”, pão e circo.) O filme adquire uma gravitas que se calhar não merece quando os vencedores / participantes / gladiadores dos Jogos desfilam em quadrigas numa arena perante a tribuna do Presidente. Isto leva-nos imediatamente para a imagética dos filmes bíblicos de gladiadores e de cristãos lançados aos leões que têm um peso profundo no nosso inconsciente colectivo, entre os quais Spartacus, o antigo e o recente. Não é difícil de imaginar que isto seria Roma se os romanos tivessem reality shows na televisão. Mas quem viu o “Spartacus” recente sabe que também os tinham, apenas não tão mediáticos como agora.
A parte mais chata do filme, curiosamente, foram mesmo os Jogos. E detestei aquela coisa dos macacos assassinos. Completamente escusado.
Mas desta vez Katniss e Peeta e outras personagens simpáticas que conhecemos entretanto parecem mesmo feitos ao bife. Até que chega a reviravolta surpreendente.

The Hunger Games: Mockingjay - Part 1 / Os Jogos da Fome: A Revolta – Parte 1
“Os Jogos da Fome: A Revolta” (primeira parte) começa exactamente onde o segundo “episódio” terminou, levando Katniss para o meio da rebelião da qual se tornou um símbolo mais ou menos sem querer.
Aqui o tom da série torna-se mais pesado, com imagens a lembrarem muitos cenários de guerra que já vimos na realidade, e repressão e execuções na rua à maneira dos vários regimes ditatoriais que têm existido aqui e ali. Mais uma vez o filme ganha uma gravitas que não sei se merece, emprestada de acontecimentos reais e exteriores à história que só nos tocam por esse motivo: porque aconteceram mesmo.
As personagens continuam bidimensionais, o que se torna cada vez mais notório e incomodativo à medida que o enredo progride. Sim, empatizamos com elas porque lhe conhecemos os nomes e as caras (da Katniss, pelo menos, dos outros nem isso) e porque temos coração, mas nada que perdure quando o filme acaba.
A acção passa-se agora no bunker do quartel-general do exército da Resistência (um exército que ninguém sabia que existia, nem a própria Katniss). O secretismo compreende-se, mesmo assim, porque os rebeldes não querem denunciar a sua posição e armamento antes de estarem em condições de atacar. Depois de ver a destruição infligida ao seu próprio distrito, Katniss decide finalmente assumir-se como símbolo da rebelião. Agora é que ela se torna realmente um alvo a abater, mas Katniss já sabia que o era e não tem nada a perder. Ou quase nada. Peeta foi capturado pelo Capitólio.
O resgate de Peeta é a parte mais empolgante do filme. O suspense da acção militar é merecido, decorrente do enredo e não “emprestado do exterior” como os exemplos que referi antes.
Não resisto a mencionar um momento que me fez rir, embora não devesse. A certa altura Katniss agarra-se a alguém a chorar quando percebe que tanto Gale como Peeta podem morrer. “Perdi os dois! Perdi os dois!”, lamenta-se. Apeteceu-me ser mázinha: Olha filha, quem tudo quer… Mas procura em tua volta, aí perto como tu gostas. Há muito peixe no mar. Mais um, menos um, para quem muda de homem conforme a fase da Lua, não há-de ser nada.
Duas últimas notas para as interpretações de Philip Seymour Hoffman (uma das suas derradeiras), num grande papelão como Plutarch Heavensbee. Já Julianne Moore foi criminosamente subaproveitada como Presidente Coin.
Falta-me ver o fim da história. Os filmes estão a tornar-se mais interessantes de “episódio” para “episódio” e pode ser que ainda me surpreenda. Vou deixar as conclusões finais para essa altura.

The Hunger Games: Catching Fire / Os Jogos da Fome: Em Chamas
13 em 20

The Hunger Games: Mockingjay - Part 1 / Os Jogos da Fome: A Revolta – Parte 1
14 em 20

 

 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

A Cat-Shape Hole In My Heart, vários artistas (1999) – requiem pelos ausentes

Um disco de grande beleza pelos nossos amigos felinos ausentes, essas criaturas misteriosas que dignam partilhar connosco as suas vidas efémeras.
O projecto começou quando Sam Rosenthal (fundador de Projekt e Black Tape for a Blue Girl) perdeu a sua gata Vidna devido à leucemia felina e decidiu convidar bandas a integrarem uma compilação que alertasse para essa doença. Os lucros foram, e são ainda, destinados ao Tree House No-Kill Shelter of Chicago, um abrigo para gatos.
Cruzei-me com este disco por acaso (se acreditasse em acasos) quando o encontrei em segunda mão nos anos 2000, ainda na velhinha loja Fata Morgana da avenida Duque de Loulé. Comprei-o logo, mesmo sem conhecer a maioria das bandas. Vinte anos depois, este disco fez-me companhia em alguns dos momentos mais penosos da minha vida: o adeus aos companheiros felinos que estiveram comigo e já não estão. Muitas destas canções fazem-me logo desatar em lágrimas, mas chorar lava a alma.
“A Cat-Shape Hole In My Heart” é um álbum de gótico puro e sublime, um requiem composto por pessoas que passaram pelo mesmo luto destruidor. Um disco obrigatório para góticos que amam gatos. Se ainda não o têm, não imaginam a falta que vos fez.
Não há uma única canção inferior nesta colectânea, mas destaco as minhas preferidas: o desgosto subtil de "Too Far Away" (Area), o comovente "Cayman" (Mira), o devastador "Night and Mourning" (Regenerator), os fantasmagóricos "Galactipus" (Tara Vanflower) e "Felix the Cat" (Collide), o melancólico "In The Snow" com o seu último verso "There’s something that falls apart the instant the light ends" (Dead Leaves Rising), o misterioso "In Dreams Of Mine" (Faith & The Muse).

Há pouco tempo pesquisei e não apenas ainda se encontra à venda o CD em formato físico como agora é possível ouvi-lo e adquiri-lo no Bandcamp do Projekt Records:
projektrecords.bandcamp.com/album/a-cat-shaped-hole-in-my-heart-pay-what-you-wish-1999
Ouçam-no, guardem-no, comprem para os amigos, não emprestem. Um dia vão precisar dele.


domingo, 7 de fevereiro de 2021

The Man in the High Castle (2015–2019)


[contém spoilers]

E se os Nazis tivessem ganhado a guerra? É esta a premissa da série, adaptação do livro homónimo de Philip K. Dick, publicado em 1962. Mas a adaptação vai para além do livro e vale muito a pena.
Esta é uma daquelas séries que até se viam só pelos cenários. A América ocupada pelos dois invasores vitoriosos, a Alemanha Nazi e o Império Japonês, e todas as alterações que isso provoca no quotidiano, na arquitectura, na cultura, nas pessoas. É um mundo que nós reconhecemos mas que ao mesmo tempo nos arrepia, como ao vermos a suástica em tudo e alguma coisa, desde os alfinetes de lapela aos candeeiros de sala.
Muito deste world building começa logo no genérico, por si só uma obra prima. O genérico explica-nos como é que a guerra foi ganha pelo lado errado e de que forma a América está dividida entre alemães e japoneses. Faz muita impressão vermos a águia Nazi sobreposta na águia americana derrotada. 

A Estátua da Liberdade a assistir ao filme da bomba atómica a deflagrar é uma imagem igualmente poderosa. Por falar em Estátua da Liberdade, desde “O Planeta dos Macacos” que não há um filme ambicioso de ficção científica em que esta não seja derrubada estrondosamente. Aqui isto acontece (lá para as últimas temporadas) e é tão bom como promete.
Mas “The Man in the High Castle” é principalmente História Alternativa. Pessoalmente, não me importava nada que não tivesse ficção científica. Um mundo em que os Nazis ganharam e em que a Resistência tem de os combater já é suficientemente interessante. Mas parece que o aspecto dos universos paralelos vem mesmo do livro (não li e não é o meu género) e tiveram de lidar com eles. Na minha opinião podiam ter feito melhor, especialmente o fim (que, admito já, não percebi). Mas também não vi a série por causa dos universos alternativos, mas pelo desafio politico-sociológico que nos apresenta.

Afinal, quem é o Man in the High Castle?
É melhor pensar nesta história como um longo filme (e com episódios igualmente longos, por falar nisso, daqueles de 60 minutos). Não consegui chegar a uma conclusão quanto ao seu significado antes de ver mesmo tudo. É claro que isto se pode aplicar a qualquer série, mas eu diria que se aplica mais nesta. Só quando conhecemos a totalidade das escolhas que os personagens foram fazendo ao longo das quatro temporadas é que percebemos completamente o que a história nos quis dizer. Confesso que fiquei agarrada do princípio ao fim, sempre a torcer para que alguns “maus” se redimissem.
Alguns críticos de TV reagiram muito incomodados quando perceberam que as personagens principais não são as mais importantes. É que não são mesmo. Juliana, Joe, Frank, são estereótipos. Juliana é a jovem que viu a irmã ser assassinada à sua frente pela kompetai (a polícia política japonesa que aterroriza Los Angeles, e que me lembrou muito a PIDE) e que se envolveu na Resistência quase sem querer depois de ver um dos filmes misteriosos em que os Aliados ganham a guerra. Daqui para a frente, Juliana é uma “figura de acção”, que faz o que tem de fazer porque a série precisa de uma protagonista que o faça. Joe é o agente Nazi com dúvidas, que pode ou não mudar de lado por amor ao conhecer Juliana. Frank é o namorado de Juliana, um judeu que só quer passar despercebido (e tem razão para isso) até que a kompetai lhe gaseia a irmã e os dois sobrinhos só para o obrigar a falar das actividades de Juliana na Resistência. A partir daqui, Frank tem poucas alternativas senão envolver-se na Resistência também.
A história não é sobre eles. Eles são os eixos em que o enredo se apoia para nos revelar as personagens interessantes: o terrível inspector Kido, do lado japonês, e o implacável Obergruppenführer John Smith, americano que chegou às mais altas patentes do regime Nazi.
Comecemos por Kido. E aproveito aqui para dizer que a série só se torna realmente boa a partir do sexto episódio (opinião que tenho encontrado como unânime). Os cinco primeiros episódios não fazem muito sentido nem são muito bons. Os diálogos são péssimos. Por exemplo, temos o inspector Kido, depois de assassinar uma mulher e duas crianças, a dizer a Frank: “Eu não sou um monstro”. Pior um pouco, temos Frank (o irmão da mulher assassinada) a responder: “Agora, quando quiser matar um judeu, já sabe onde eu moro”. A resposta devia ter sido: “Meu caro senhor, se está assim tão aborrecido por eu o deixar ir para casa, não se incomode. A gente mata-o já também.” Kido não podia matá-lo logo no primeiro episódio porque a série precisava de Frank, mas os diálogos não precisavam de ser tão maus.
Então, Kido é um monstro? Da perspectiva da cultura ocidental, sim. Da perspectiva japonesa, Kido é um homem de honra, um samurai patriota dos tempos modernos que estava efectivamente disposto a enfiar uma espada na barriga se o Império sofresse qualquer revés por sua culpa. Gostei principalmente do fim que ele teve, um fim desonroso que para Kido é infinitamente pior do que a morte. Fins assim dão gozo.
E depois temos o vira-casaca John Smith, oficial do exército norte-americano que se vendeu aos Nazis quando eles ganharam. Ou, pelo menos, é o que parece. À medida que as temporadas se desenrolam percebemos que Smith não é nem nunca foi um Nazi, que começou por fingir que o era por necessidade e que para mal dos seus pecados se deu tão bem a fingir que chegou ao topo da hierarquia. Se Smith tem um defeito, é a ambição brutal que o cega. Mas Smith tem um calcanhar de Aquiles: o amor à família. Se houver redenção, é por aí. Mas haverá, ou John Smith já foi longe demais para mudar aquilo em que se tornou? Esta é a história mais interessante em “The Man in the High Castle”. Eu diria mesmo que este tal Homem do Castelo é John Smith.

Um niquinho abaixo do sublime
Haveria muito para comentar na riqueza destas quatro temporadas, mas prefiro voltar a instar que o espectador não se deixe desencorajar pelos primeiros cinco episódios. São de facto mauzinhos. Por exemplo, a princípio Juliana é incumbida de levar o filme ao agente da Resistência conhecido por The Man in the High Castle (daí o título aparente) para que este não chegue a Hitler, que quer deitar as mãos a todos estes filmes misteriosos que andam a aparecer e que considera uma ameaça ao regime. Mas depois é-nos dito que quem distribui os filmes é mesmo este Man in the High Castle. Um personagem da Resistência chega mesmo a verbalizar: “Porque é que íamos mandar um filme ao Man in the High Castle se os filmes vêm dele?” E a gente fica: OK, agora é que não percebi nada. Esta grande confusão dos cinco primeiros episódios explica-se assim: a Amazon mandou fazer a série e estava a ver se tinha audiências. Como teve audiências, decidiu continuar, mas a história foi alterada. Por isso é que os episódios iniciais parecem cartas fora do baralho. Espectadores potenciais, ignorem-nos. Vejam-nos só para perceberem o universo da série, na certeza de que o que vem a seguir vale a pena sofrê-los.
“The Man in the High Castle” é uma grande série, que só não é ainda melhor porque preferiu reduzir os protagonistas a pouco mais do que figuras de acção. Não posso deixar de pensar no festim que Vince Gilligan (“Breaking Bad”, “Better Call Saul”) faria com estas mesmas personagens. Mas não se pode ter tudo.
Recomendo vivamente e vou ver de novo. Aproveito para advertir que há cenas muito pesadas e de grande brutalidade (a execução dos judeus, por exemplo, mas há outras) que só devem ser vistas com a necessária preparação psicológica.