segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Alien: Covenant (2017) / Prometheus (2012)


Alien: Covenant (2017)

Como faço muitas vezes, comecei a ver este filme sem saber quase nada sobre ele. Nem que era de Ridley Scott, nem que era um filme da série Aliens, nem que era a sequela de “Prometheus”. (Da sinopse e título pensei que era a história de colonos espaciais que encontram uma civilização alienígena hostil.) Não saber nada de um filme (ou livro) permite-me absorver a obra sem expectativas ou ideias preconcebidas. E admito que fiquei agradavelmente surpreendida quando percebi que ia ser um filme da série Aliens. Até cerca de metade do filme gostei bastante. E de repente o filme tornou-se confuso. Comecei a ter a sensação de que tinha perdido um episódio. Efectivamente, perdi, porque ainda não tinha visto “Prometheus”.
Então a história é esta. A nave espacial Covenant dirige-se a um sistema solar distante na intenção de o colonizar. Mas, durante o caminho, recebe uma transmissão humana, vinda de um planeta tão propício à vida que é completamente compreensível que a missão decida investigar e, talvez, estabelecer-se mesmo ali.
Mas a transmissão é uma armadilha. E de quem? Ora, é esta a parte em que seria preciso conhecer o que aconteceu em “Prometheus” e em que comecei a ficar confusa.
“Alien: Covenant” começa muito ao estilo de “Odisseia no Espaço” (ou filmes semelhantes da altura, até nas roupas que parecem ter saído dos anos 70) com o criador de um andróide muito evoluído, e este próprio andróide, David, a terem uma discussão altamente filosófica sobre quem devia servir quem uma vez que o andróide é eterno e o criador é mortal.
Muda a cena, estamos na nave Covenant. Esta nave tem um andróide, que eu julguei que era o tal David (são iguais) mas afinal não era. Instala-se a confusão na minha cabeça.
A tripulação da nave desce ao tal planeta, onde começam a ser infectados pelo nosso alien do costume (afinal não fui assim tão enganada pela sinopse, simplesmente o alienígena hostil não é um desconhecido) através de esporos que entram pelo nariz, boca, ouvidos e outras reentrâncias do corpo humano. Mas a maneira como sai é a mesma: buraco entre as costelas e lá vai ele.
Entretanto, já andam pelo menos dois aliens adultos à solta ainda antes que a pobre tripulação perceba muito bem o que lhe está a acontecer. Quando estão a ser atacados, eis que entra em cena o primeiro andróide, David, o tal da primeira cena, com armamento que afugenta os aliens.
E aqui parece que o filme deixou o universo Aliens e entrou no universo O Senhor dos Anéis. David vem coberto com uma manta encapuzada à elfo, de longos cabelos loiros, no papel do estranho misterioso e cheio de poderes sobre-humanos que oferece ajuda.
Só percebi que era um andróide quando ele se volta para o andróide da nave e lhe chama “irmão”, e só aí percebi que o andróide da nave não era o mesmo do princípio.
Ok, avançamos. A tripulação é levada para as ruínas de uma cidadela completamente rodeada de cadáveres carbonizados (a lembrar Pompeia) e ninguém se lembrou de perguntar ao tal David o que raio se tinha passado ali. Entretanto, este explicava que era o único sobrevivente da nave Prometheus, dada como perdida, e a fonte da transmissão que leva ali a tripulação da Covenant.
O filme continua dividido em dois a partir daqui: por um lado, os recém-chegados da Covenant protagonizam um filme Aliens como estamos habituados, eles a fugir, os aliens a comê-los, enquanto que os dois andróides se retiram para mais uma conversa filosófica como se nada se passasse lá fora.
E aconteceu-me outro momento de grande confusão. O novo andróide, o tal David, subitamente aparece de cabelo preto e cortado, e quase igual ao outro, e durante toda a cena eu não percebi que era o mesmo actor a contracenar consigo próprio! Aqui tenho de dar os parabéns ao actor Michael Fassbender que me convenceu completamente de que era duas personagens diferentes a ponto de enganar os meus olhos. (Mas deixem-me explicar o motivo principal da minha confusão, que foi o cabelo loiro. Isto é explicado no filme anterior, “Prometheus”. Quem conhece os andróides de Aliens não lhes nota qualquer vestígio de vaidade ou vontade de ser diferente. Mas David, aparentemente, foi o primeiro andróide a ser criado e é muito mais humanizado do que os outros, o que se revela um problema. Sim, David decidiu mudar de visual. E isto baralhou-me tanto que passei o filme a tentar perceber quem era quem. Mas lá consegui apanhar o fio à meada e até adivinhei a reviravolta final.)
Fazendo justiça a Ridley Scott, se eu tivesse visto “Prometheus” primeiro esta confusão não se punha porque David é completamente inesquecível. O que só vem reforçar a ideia de que os filmes são episódios e precisam um do outro, e não aconselho ninguém a ver “Alien: Covenant” antes de “Prometheus”. A sensação de “episódio perdido” persiste até ao fim do filme. Comecei a ficar com a impressão de que “Alien: Covenant” se tinha passado antes mesmo do primeiro Alien, que este tal David é que tinha manipulado geneticamente a raça de aliens até estes se transformarem nos aliens que viemos a conhecer nas aventuras da Ripley, mas tudo isto apenas como hipótese e sem lhe conhecermos as motivações. Este David, neste filme, aparece como um Dr. Frankenstein apaixonado pelo seu monstro, um filme dentro de outro filme. Mas um filme que termina no Aliens “habitual”, com todas as reviravoltas que esperamos desta saga. Se alguém tem o direito de inovar é mesmo Ridley Scott, realizador do “Alien” original, mas parece-me que ele tentou fazer a sua “Odisseia no Espaço” ao mesmo tempo que dava à audiência a dose de aliens de que esta estava à espera. Se resultou? Bem, é uma boa dose de aliens com todos os condimentos habituais, mas “Alien: Covenant” continua a parecer dois filmes que só por coincidência se interceptam e no meu caso com um “episódio perdido” pelo meio. Por este motivo, culpa minha que não vi “Prometheus” antes, abstenho-me de dar nota por agora.



Prometheus (2012)

“Prometheus” não é a dose habitual de Aliens. É um filme filosófico e ambicioso sobre a origem da vida, especialmente sobre os motivos do criador e a sua relação com as criaturas que concebeu.
O filme começa quando uns arqueólogos, na Terra, descobrem gravuras rupestres que apontam para uma raça estelar semelhante à humana e para um sistema solar longínquo que, segundo estes acreditam, é o lar dos nossos Criadores, a quem chamam os Engenheiros. Esta descoberta leva-os a uma viagem ao tal planeta dos Engenheiros, na esperança de conhecerem a espécie que deu origem à raça humana.
Enquanto a tripulação dorme na nave que a transporta até lá, voltamos a encontrar o andróide David (o mesmo de “Alien: Covenant”) e percebemos porque é que ele pinta o cabelo. David pinta o cabelo de louro depois de ver “Lawrence da Arábia”, o seu herói. E um andróide com um herói é um andróide com personalidade. David é, indubitavelmente, o personagem principal, um andróide com um complexo de superioridade em relação aos seres humanos que o criaram e que o tratam como a um robô sem sentimentos nem intelectualidade. David está chateado e tem motivos para estar chateado.
Ao chegarem ao planeta dos supostos Engenheiros, hominídeos gigantes que nos teriam criado à sua imagem, mas agora aparentemente extintos, David encontra, primeiro que todos, uma outra criação dos Engenheiros, uns estranhos micróbios cuja finalidade desconhece. Mas começa imediatamente a testá-los nos humanos, especialmente nos humanos que o tratam pior.
Há muitas cenas arrepiantes neste filme, mas na minha opinião a pior de todas é a operação à barriga. Não faltam outras, igualmente de arrepiar os cabelos. Ninguém vai sair deste filme insatisfeito nesse departamento. Os efeitos especiais são particularmente convincentes.
Mas como este não é um filme de aliens qualquer, a nossa curiosidade é conduzida para esta raça de gigantes que supostamente nos criou. Após pesquisarem as instalações que os Engenheiros deixaram no planeta, a tripulação da Prometheus percebe que este não é um lar mas uma base militar, e carregadinha de armas de destruição maciça (o micróbio alien). Visualizando gravações de imagens, percebem que os Engenheiros se preparavam para voltar à Terra com o objectivo de destruir a humanidade que eles próprios criaram.
Mas se dúvidas houvesse, David o andróide descobre que um dos Engenheiros ainda está no complexo, vivo, numa câmara de hipersono. A tripulação acorda-o e tenta estabelecer comunicação com ele, mas o gigante não quer conversas e desata a matar toda a gente que apanha. Não bastando fugir dos aliens, agora têm de fugir dele também.
Voltemos ao princípio. Filme filosófico e ambicioso em que a humanidade se confronta com o seu criador. Este criador, aparentemente, mudou de ideias e resolveu destruir a sua criação. Que moral, ensinamento, conclusão tiramos daqui?
“Porque é que queres saber porque é que eles mudaram de ideias? É irrelevante. Não compreendo.”, pergunta David à arqueóloga.
“Não compreendes porque tu és um robô e eu sou um ser humano”, responde ela.
Ainda bem que eu também sou um ser humano porque eu também queria muito saber porque é que os Engenheiros se deram ao trabalho de criar a humanidade para depois a destruir. Isto é, posso tecer milhentas conjecturas sozinha, mas o filme não oferece nenhuma. Temos de ficar com esta ideia “interessa-nos porque somos seres humanos”. Fraquinho, muito fraquinho. Eu esperava, no mínimo, uma teoria. Um motivo. Afinal ficamos na mesma.
De igual forma, não percebi o Engenheiro suicida que se mata com uma dose de micróbios alien no princípio do filme enquanto vê a nave do seu povo afastar-se. Dá ideia de que foi o único que ficou no planeta, mas afinal não, porque havia outro em hipersono. A única pista sobre este suicida é uma menção no genérico final como aquele que se “sacrifica”, o que ainda é mais confuso. Do que vimos nas tais imagens deixadas por eles, tiveram de fugir à pressa porque as experiências com aliens não correram bem. (A única parte que se percebe perfeitamente, conhecendo nós os aliens como os conhecemos.) Então quando é que isto (o suicídio/sacrifício) aconteceu? Terá sido neste planeta, como parece dar a entender, ou no deles, ou na Terra, ou noutro lado qualquer? Mais uma vez podia pôr-me aqui a tecer conjecturas, mas o filme não dá respostas. “Alien: Covenant”, a sequela, também não nos explica mais sobre esta raça de gigantes excepto o massacre que se vê na tal cidadela de que falei acima. E que mais uma vez nos deixa sem saber nada.
As únicas respostas que temos, tanto em “Prometheus” como em “Alien: Covenant”, são sobre a origem dos aliens. Afinal começaram como micróbios (ou esporos, não percebi bem) e foram sendo geneticamente manipulados (e evoluindo por eles próprios, igualmente, com a ajuda dessa manipulação), primeiro pelos Engenheiros e depois pelo próprio David, antes de serem o alien que conhecemos da nave Nostromo. Uma coisa é certa, no entanto: até como micróbios os aliens eram extremamente mortíferos, se não mais, porque não se viam a olho nu e mesmo assim entravam no corpo do hospedeiro e faziam aquilo que se sabe.

Gostei mais de “Prometheus” do que de “Alien: Covenant”, e gostei mais ao segundo visionamento. A primeira vez que vi fiquei confusa, a perguntar-me o que me tinha escapado. Afinal não me escapou nada, mas estes dois filmes têm ar de trilogia incompleta. As intenções são claras, fazer um paralelo entre a nossa criação, ou mitologia dessa criação, com a criação dos aliens, e de como acabamos todos por ser espécies a competir pela vida num universo indiferente, abandonados por um Criador que não se importa. Muito existencialista. Mas parece-me que Ridley Scott queria dizer mais e ainda não foi desta que conseguiu. A existência e motivação dos Engenheiros é interessante e misteriosa e merecia um filme só para eles. Até sem aliens.
Também gostei muito de toda a imagética criada em “Prometheus”, a começar pela primeira cena. Só é pena deixar tantas perguntas a que a sequela também não responde.
Fiquei interessada e fui investigar. Parece que Scott prevê realizar outro filme ainda só denominado “Untitled Alien Prequel". Por mim, que venham mais. Que venham todos.


Alien: Covenant
14 em 20

Prometheus
15 em 20


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Noah / Noé (2014)

 

Esta é a história bíblica de Noé e do dilúvio, versão Senhor dos Anéis com preocupações ecológicas.
Qualquer filme sobre acontecimentos bíblicos é um filme altamente escrutinado. Quem os faz também sabe disto. Depois é uma questão de perceber se o realizador quer seguir tudo à letra (“A Paixão de Cristo”) ou ser “criativo”. Aqui foram um bocadinho mais criativos, na minha modestíssima opinião, do que um filme bíblico devia ser. Não é que não compreenda as preocupações ecológicas para tornar o filme actual e relevante, mas não era preciso pôr esta gente antediluviana a disparar armas de fogo.
Há mais. Por exemplo, os anjos caídos (sim, os tais que seguiram Lúcifer) transformaram-se em pedregulhos animados a lembrar os Entes de Tolkien (porquê, oh, porquê?) e ajudaram Noé a proteger a Arca dos maus. (Se Jeová soubesse que Noé estava a ser ajudado por demónios nem Noé se safava.) Matusalém (Anthony Hopkins, com a sua cara sinistra de Anthony Hopkins), na Bíblia o homem que viveu mais anos em toda a humanidade (969 anos, não é brincadeira) e avô de Noé, tem poderes mágicos que fariam inveja a um Gandalf. Se calhar aprendeu-os dos demónios? Ai se Jeová soubesse disto tudo, Deus os livrasse! É só ler o Velho Testamento para perceber que Jeová Deus dos Exércitos não gostava nada de magias nem de feiticeiros. Mas quem fez o filme não se ralou nada com isso.
Quando se vê um filme sobre Noé, é natural esperar grandes efeitos especiais em duas vertentes principais: os animais e o dilúvio propriamente dito. E com isto falo de efeitos especiais de grande envergadura, daqueles tão caros que obrigam a que só se faça um filme sobre Noé de 50 em 50 anos. Nos animais, fiquei decepcionada. Muito pouco, poucochinho. Poucos animais, pouco detalhados, vistos ao longe. Eu queria ver os bigodes dos leões e os pêlos nas trombas dos elefantes. Fiquei desapontada. Já o dilúvio, a princípio não se distingue de uma chuvada normal. Fica um bocadinho melhor com os geisers (as águas da terra) e as vagas que finalmente cobrem o horizonte. A imagem da Terra vista do espaço, completamente envolta em furacões, como se fosse uma fotografia de satélite, também foi algo de inesperado e original num filme inspirado em temas bíblicos.
Porque convenhamos, um filme destes, quando não segue a história à letra, fica reduzido aos efeitos especiais. Todo aquele drama que acontece dentro da Arca, com Noé a querer matar as netas recém-nascidas (Jesus, que homem tão mau), armado em mais jeovista do que Jeová, completamente fanático e tarado, tipo líder de culto que decide matar todos os seguidores, isso nunca acontece na Bíblia nem nada que se pareça. Aquilo foi tudo para dar que fazer à miúda do Harry Potter. Só para repor a verdade, todos os filhos de Noé já tinham esposas antes de entrarem na Arca. E não entrou nenhum “homem mau” na Arca a matar os animais. Se isso acontecesse, na Bíblia, aparecia-lhe logo um daqueles anjos exterminadores de Sodoma e Gomorra e da Páscoa do Egipto que lhe ensinaria o significado da expressão “o temor de Deus”. Melhor gente foi fulminada por muito menos. A mulher de Ló, transformada numa estátua de sal só porque olhou para trás. Nunca, mas nunca, o Criador permitiria que se destruísse parte da sua criação que ele já tinha deliberado salvar. (Na altura Deus intervinha. Agora é que não.)
A única coisa em que o filme conseguiu acertar foi em convencer-nos da maldade dos contemporâneos de Noé. Existe uma cena bastante perturbadora que parece mesmo uma visão do inferno em todo o seu esplendor medieval, com fogo e tudo. Mais apropriada num cenário pós-apocalíptico mas completamente eficaz.
Onde o filme errou completamente foi na caracterização de uma das “personagens” principais desta história, o Deus do Velho Testamento, aquele que mandou o dilúvio. De forma alguma aqueles demónios seriam perdoados e admitidos de volta ao Céu. Basta ler o Génesis, o Êxodo, e quem não gosta do Velho Testamento que leia os Evangelhos e atente no que Jesus diz de Lúcifer e afins, culminando no Apocalipse/Revelação (o lago de fogo). Que história é que estavam mesmo a contar, afinal?
“Noé” não seguiu o relato bíblico e o fim soou mais vazio do que era claramente a intenção. A grande história de Noé e do dilúvio é a explicação da relação de Deus com os homens. De como Deus perdeu a cabeça com a humanidade e decidiu destruir quase tudo para começar de novo, e no fim arrependeu-se. É este o significado do arco-íris. Mas, ao arrepender-se, foi o momento em que Deus começou a decidir parar de intervir, e, consequentemente, a começar a afastar-se. Foi dado livre-arbítrio à humanidade, mas que faz a humanidade com esse livre-arbítrio quando Deus se afasta? Este é que é o grande tema filosófico do dilúvio, mais filosófico até do que religioso porque não é preciso ser-se crente para o compreender.
“Noé”, o filme, deixou Deus de lado e reduziu tudo isto a um duelo entre maus e menos maus. Ainda por cima a armar-se ao Senhor dos Anéis.
Sinceramente, não gostei.

12 em 20 (os pontos são para os efeitos especiais)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

The Death of Bunny Munro (2009), de Nick Cave



Saber que Nick Cave tinha escrito um romance deixou-me naturalmente curiosa, interessada e empolgada. Não é o seu primeiro: “And the Ass Saw the Angel” (publicado em 1989), que eu não li, já está na minha lista para colmatar essa falha.
Comecemos pelo princípio, Nick Cave é um poeta e um letrista extraordinário. Disto, ninguém que conheça o seu trabalho tem qualquer dúvida. Quando deram o Nobel a Bob Dylan, mais do que pensar em Leonard Cohen, eu pensei logo em Nick Cave. Isto só para expressar em que pedestal ponho o homem como poeta que é.
Mas escrever um romance não é a mesma coisa que escrever poesia. E um poeta não é necessariamente um romancista. Tive receio, ao pegar em “The Death of Bunny Munro” que Nick Cave não fosse tão completamente sublime, na prosa, quanto o é na poesia. Não é que as duas coisas se possam comparar linearmente, mas fiquei completamente rendida à escrita de Cave como romancista também. Com algumas críticas, ligeiras, que tenho a fazer ao livro.
Mas antes de ir às críticas, o que mais gostei foi sem dúvida a grande riqueza de imagens, inspiradas e inesperadas, que nos fazem relacionar coisas que aparentemente não teriam qualquer relação. Como, aliás, Nick Cave já nos habituou nas suas letras, pelo que não foi novidade nenhuma. Este romance podia ser uma longa canção, ao estilo de “Jangling Jack”, todo escrito no presente do indicativo, alternando os pontos de vista entre Bunny e o seu filho Bunny Junior, com alguma presença de um narrador quase invisível excepto a um olho treinado. E fico-me por aqui a nível de características técnicas. Vamos então à história e às personagens.
Bunny Munro é um tarado sexual e esta é a sua história. E não exagero a parte da taradice. A princípio nem percebi se Nick Cave estava a querer ser sério ou cómico (ou um misto dos dois) ao caracterizar Bunny, que até lembra as piadas de tarados sexuais que se contavam no liceu. Este é um homem que não pensa noutra coisa senão sexo. Desde o momento em que acorda de manhã ao último pensamento antes de adormecer: vaginas, vaginas, vaginas. Olha para uma mancha na parede e vê nela um par de mamas. Olha para outra mancha e vê um traseiro. (Juro que havia uma piada assim, e até me lembro dela, mas não vou contar.) Bunny não precisa de ver pornografia porque todos os seus pensamentos são pornografia. Actualmente chama-se a isto uma adicção ao sexo e é tratada como qualquer outra adicção. Bunny, inclusive, trabalha em venda de produtos de beleza, o que o leva a casa das clientes para demonstrações personalizadas. O perfeito terreno de caça. Na verdade, até o emprego é um meio para atingir o fim, satisfazer a adicção, de manhã à noite. E Bunny, curiosamente, tem uma carinha laroca e tem sucesso nas suas aventuras. Tirando esta ou outra excepção (a intelectual cinturão negro em Taekwondo que lhe partiu o nariz), fiquei surpreendida com o seu nível de êxito. Mas Bunny é um tipo desprezível. Até podemos achar-lhe alguma graça até sabermos que já recorreu a roofies para se aproveitar de mulheres inconscientes, até o vermos aproveitar-se de uma junkie à beira de uma overdose, até nos enojar como ele rouba algumas jóias a uma cliente velhota e cega. Isto é um sociopata a quem só interessa a sua satisfação pessoal e imediata, sexual ou outra. E nem sequer falei da sua (não-)relação com o pobre do filho, a quem Bunny liga exactamente zero.
Mas isto leva-nos à sua relação com a mulher dele, Libby, cujo suicídio é o acontecimento que dá início à história. Não gostei da personagem Libby porque não me pareceu realista. A história passa-se nos anos 90. Sabemos isto porque o puto de nove anos anda sempre com uma enciclopédia e ninguém tem computadores ou smart phones e os telemóveis ainda são de concha, mas Kylie Minogue e April Lavigne já são estrelas mediáticas. [Rectificação: segundo a Wikipedia a acção passa-se em 2003, mas tudo o que eu acabei de dizer ainda se aplica nesta data.] Libby é uma dona de casa com depressão, casada há 10 anos com Bunny, farta de saber que ele a trai a toda a hora e a torto e a direito com conhecidas e desconhecidas. Pior que tudo, ele apalpou o traseiro à melhor amiga de Libby no dia em que Libby chegou da maternidade com o recém-nascido, quando a amiga estava na casa deles para ajudar com as tarefas domésticas. Pior que isto é difícil. Taradice e ingratidão. E Libby sabe porque a amiga lhe contou o que ele fez. Libby sabe e durante dez anos atura esta situação. Logo no princípio do casamento, Libby ainda vai para casa dos pais, mas volta para o marido. Entretanto Bunny Junior tem nove anos, Libby não procura emprego nem ajuda psiquiátrica, e continua casada com um homem que não a respeita a ela nem a ninguém. Saliento que apesar de todos os seus defeitos Bunny não é daqueles que isola e maltrata a esposa e a impede de sair de casa. Não, isso ele não é. Pelo contrário, ele quase não pára em casa e só não a ignora quando quer sexo com ela também. Deprimida ou não, Libby tem opções. Tem família e amigos que a podem receber, pode tentar arranjar emprego, pode pedir ajuda psiquiátrica. Não faz nada disto. E eu não acredito que uma mulher jovem, nos anos 90, aturasse placidamente um casamento que mulheres de outras décadas --ou por vergonha, ou por estigma social, ou por dependência económica do marido, ou por demasiada idade para arranjar emprego, ou por falta de apoio de família e amigos-- suportariam por falta de opções. Nos anos 60, até mesmo nos anos 70, talvez. Nos anos 80, em Inglaterra, onde se passa a história, já tenho dúvidas. Nos anos 90, nem pensar. Libby não é daquelas esposas sem alternativa que se vêem amarradas a um casamento abusivo. Se Libby não é uma personagem pouco credível, é pior, é burra quem nem uma porta. (A depressão é uma coisa, a burrice é outra). Mas, na verdade, Libby não me merece muito respeito porque eu não acredito nesta personagem. Não acredito que uma mulher jovem, bonita, com o apoio da família, com um filho a crescer naquele ambiente com aquele pai que não lhe liga nenhuma, não se pusesse depressa dali para fora. Acreditaria, sim, se a lassidão de Libby se explicasse por um mal bem mais conhecido do autor desta história: uma dependência de substâncias.
Digo mesmo mais, a obsessão de Bunny por sexo, desde que acorda até que adormece, parece-me muito a vida de um viciado em que tudo se resume a obter a próxima dose. Libby, apaticamente sentada no sofá, parece-me outra "drogada" como ele. Reconheço que a depressão é uma doença incapacitante (estou completamente à vontade para falar de experiência própria), mas custa-me acreditar que uma mãe não tenha feito nada para tentar melhorar a sua vida, tendo um filho de nove anos com um pai com que não se pode contar. Em vez disso, suicida-se.
Os amigos de Bunny também não são melhores. Classe média-baixa xunga, de uma espécie como só existe por aquelas bandas. Piadas xungas, quecas xungas, penteados e roupas xungas, tudo é xunga naquele ambiente.
Salva-se o miúdo, o pobre órfão Bunny Junior, que nos parte o coração porque está convencido de que tem o melhor pai do mundo. Para ele, Bunny é um campeão. É mesmo de ter pena do miúdo quando este fica sozinho com aquele tipo egoísta depois do suicídio da mãe. O miúdo é esperto, e naquela interacção alucinante em que Bunny Junior viaja com o pai enquanto este finge andar a vender cosméticos quando na verdade só pensa onde arranjar a próxima queca, começa a aperceber-se de que o seu pai não é o herói que tinha imaginado. A interacção entre pai e filho, afinal, é o cerne da história e o que nos prende à leitura. A torcer pelo filho, bem entendido, e a desejar de todo o coração que alguém o tire àquele pai.
Não vou contar mais porque já me aproximo do fim, e o fim é uma reviravolta com uma surpresa (ou talvez não, se estivermos com atenção), mas poderei dizer que chegando à última página cada um de nós vai ter de tirar conclusões e, se calhar, pensar na vida.
“The Death of Bunny Munro” é como aquelas viagens em que o mais importante é a jornada e não o destino. Apesar de ter detestado o protagonista, apesar da xungaria da maioria das personagens, incultas e grosseiras, apesar de só ter sentido empatia pelo pobre do puto que não tem culpa de nada, gostei do que li. Gostei principalmente da escrita, das imagens inesperadas, de uma longa “canção” de Nick Cave em forma de romance.
Estou convencida. Quero ler mais de  Nick Cave e espero que ele escreva mais. Só não mais tarados sexuais, por favor. Já chega.
Agora vou mesma à cata de “And the Ass Saw the Angel”.