domingo, 25 de abril de 2021

Carriers / Pandemia (2009)

Este vai ser filosófico.
Sempre me disseram, na escola, que o homem é um animal social, um animal gregário. Gregário, só se for como o lobo.
Começou tudo no tempo das cavernas, quando éramos caçadores/recolectores. O homem pensou que sozinho caçava um coelho ou um veado, mas em equipa podia caçar um mamute e a tribo toda tinha carne para muito tempo. Lógica de alcateia. Colaborar para encher a barriga.
Com a chegada da agricultura, o homem tornou-se sedentário. Depois de uma vida inteira a trabalhar o solo, a construir uma casa, a crescer um vinhedo, o homem chegava à velhice e pensava: quando eu morrer tudo isto se perde, o que me deu tanto trabalho a conseguir, o que passei anos de enxada a labutar, todo o meu trabalho, todo o meu valor. Para que não se perdesse, o homem arranjou uma família. Mulheres e muitos filhos que lhe mantivessem vivo o nome e dessem continuidade ao seu legado. Mais do que isso, o homem abastado doaria grão para os sacerdotes do templo, metal para fazer um novo ídolo, para que alguém lhe escrevesse o nome num pergaminho como “Fulano, muito rico em grão e metal, doou isto”. Não podendo ser imortal, o homem quis que ao menos a sua labuta lhe imortalizasse o nome. E que o imortalizasse perante quem? Perante a sociedade. Quem mais lhe recordaria os feitos e o valor? A sociedade serve o homem porque lhe espelha a vaidade. O que é o homem abastado sem uma sociedade que o reconheça? Não é ninguém. É o lobo solitário que morre bem alimentado, mas sozinho.
Chegamos aos nossos tempos. Agora as vaidades são outras, as necessidades são outras. Mas continuamos os mesmos lobos de sempre. Vivemos em sociedade para encher a barriga e alimentar a vaidade. O carro, o emprego, o curso, a viagem, os amigos que tem de se ter, a família que fica bem nas redes sociais. Ninguém quer morrer sozinho e ignorado, por muito bem alimentado.
E de repente chega um vírus mortal. No outro homem, onde antes se via um membro de equipa e um espelho da própria vaidade, vê-se agora a morte. A sociedade já não serve o homem, pelo contrário, torna-se uma ameaça à sua sobrevivência. O homem foge do homem. Foge da alcateia para as montanhas e regressa ao seu lugar de lobo solitário. Quando a sociedade se desagrega e tudo escasseia, o homem ataca-se entre si pelos bens que ainda restam: é o homem lobo do homem.
Vêm estas considerações a propósito de um filmezinho despretensioso de 2009, “Carriers” / ”Pandemia", que algum canal de televisão foi repescar na certeza de que os espectadores iam logo querer vê-lo nos tempos que correm. Além deste ainda tenho outro para ver, chamado “Contágio”, sem contar com o outro do Dustin Hoffman, que também tem passado muito frequentemente.
Em “Pandemia”, um vírus mesmo muito mortal, com efeitos muito rápidos semelhantes ao ébola ou à lepra, mata todos os hospedeiros e transmite-se por inalação de partículas. Dois irmãos, a namorada de um deles e a amiga do outro, fogem dos centros urbanos para se refugiarem numa estância balnear isolada onde os irmãos passavam férias quando eram miúdos. Por esta altura a sociedade já se desagregou. A estrada está deserta. Já não há gasolina para abastecer. A maioria da população já morreu. Não se vê ninguém. É quase o pós-apocalipse, mas ainda não chegaram lá. O intuito é sobreviver o tempo suficiente até que a doença desapareça, isto é, que todos os infectados morram e o vírus deixe de se transmitir por falta de hospedeiros. Para sobreviverem, os quatro concordam num conjunto de regras implacáveis: quem está infectado é como se já estivesse morto, deixa-se para trás.
O ambiente despovoado do filme lembrou-me muito de “The Walking Dead”, mas sem zombies, só com mortos, e trouxe-me esta outra reflexão: até no apocalipse zombie a sociedade continua a servir o homem. Os zombies são uma ameaça. A união em grupos coesos permite combater essa ameaça e a de outros grupos hostis. Em “Pandemia”, nem para isso a sociedade serve. É o completo regresso à sobrevivência do mais apto. Os quatro jovens são aptos, saudáveis, e querem sobreviver a todo o custo. E do ano de 2021, especialista que me tornei sem querer, até digo que eles estavam a fazer tudo bem: o uso correcto de máscaras, luvas e desinfectante, o que me surpreendeu porque geralmente estes filmes acabam sempre por desleixar os pormenores.
Na estrada, encontram um pai com uma criança infectada, e deixam-nos para trás. A namorada fica infectada, e deixam-na para trás. Um dos irmãos é mais impiedoso do que o outro, uma espécie de Shane de “The Walking Dead” que já percebeu que para sobreviver pode ser preciso matar. E mata. Logo da primeira vez que precisa de gasolina, mata duas inocentes num carro que só querem o mesmo que ele: fugir e sobreviver. O outro irmão parece condenar, mas vai tolerando porque também quer sobreviver. Todavia, nota-se na personagem uma crescente desilusão, um crescente nojo e antipatia. Já nem os laços de sangue os unem. Quando o irmão impiedoso também fica infectado e se recusa a dar-lhes as chaves do carro para continuarem sem ele, o outro irmão dá-lhe um tiro. Só fez, afinal, como lhe disse o irmão mais velho: “Fui eu que te ensinei tudo”.
No fim, este irmão e a amiga conseguem chegar à estância da praia, completamente abandonada. Já não se falam, já nem conseguem sequer olhar um para o outro depois das atrocidades que cometeram para chegar ali. Vai cada um para seu lado. Um homem e uma mulher jovens, dos poucos sobreviventes no mundo, e nem sequer se suportam de modo a fazer sexo e continuar a espécie. Mas por esta altura a gente questiona-se: e esta espécie de animais sem escrúpulos merece continuar?
O que distingue o homem do animal é a consciência moral. Talvez o outro irmão, o que não tinha escrúpulos nem remorsos, conseguisse continuar a viver com a namorada como se nada tivesse acontecido, como animais, como lobos. Se tivessem ambos sobrevivido. Mas sobreviveram os que tinham consciência, os que se repugnam do que fizeram. E agora nota-se-lhes nos rostos que se perguntam também: valeu a pena? Somos os mais aptos, somos os sobreviventes, mas sobrevivemos para quê se nem nos conseguimos olhar no espelho que é o rosto um do outro?
Todas estas reflexões não vêm deste filme em particular, “Pandemia”. Não é um filme assim tão bom, embora seja melhor do que as críticas o pintam. Estas reflexões vêm de muitos outros filmes como este, cenários apocalípticos que nos convidam a questionar o que é que nos distingue de uma alcateia de lobos. O que é verdadeiramente importante na existência humana. A vida, e não apenas a sobrevivência. Lembrou-me também as sábias palavras bíblicas: de que importa ganhar o mundo e perder a alma? Estes dois personagens podem ser as últimas pessoas vivas no planeta, mas perderam a alma pelo caminho. Tanto queriam sobreviver a todo o custo que agora a vida já não lhes interessa. Irónico, não é?

14 em 20 (o filme não é assim tão bom)


 

domingo, 18 de abril de 2021

The Twilight Zone / A Quinta Dimensão (2019, segunda temporada)

Não sei o que se passa com esta nova edição de “The Twilight Zone”, mas o facto é que parece não ter impacto. Se na primeira temporada os episódios eram quase panfletários, tão preocupados com a mensagem política e social que estavam a tentar transmitir que as histórias acabavam por ser relegadas para segundo plano, já não podemos dizer isso da segunda.
Desta vez “The Twilight Zone” cingiu-se às histórias, mas nem por isso estas tiveram o impacto com que a velhinha “A Quinta Dimensão” de 1959, a preto e branco, ou até a edição de 1985, a cores, nos marcou para sempre. Serão as histórias menos boas? Seremos nós que já vimos tanta coisa que não é qualquer história que nos atinge? A verdade é que depois de cada episódio dei por mim a encolher os ombros, sem que me aquecesse ou arrefecesse.
Quase basta dizer que o meu episódio preferido foi “8”, em que o protagonista é um polvo assassino. Sim, leram bem, um polvo assassino, nem sequer um polvo gigante (embora bastante grande), mas muito inteligente. O episódio passa-se na Antártida, onde um grupo de cientistas estão isolados a estudar, supostamente, os efeitos das alterações climáticas, quando algo os começa a matar um a um. Este é um enredo à “Alien” e “The Thing”. Nunca me passou pela cabeça que o vilão fosse mesmo o polvo que os cientistas encontram escondido dentro de uma arca. Mas acontece que os cientistas, afinal, não estão ali com boas intenções. O que eles querem é apanhar o espécime para a indústria farmacêutica e coisas piores. Só que o polvo é mais esperto do que eles e lixa-os. E o pior é que nós aplaudimos. Existe uma cena perturbadora como há muito tempo não via. O polvo consegue camuflar-se de tal maneira que fica invisível em cima de um dos membros da equipa que acabou de matar. Foi arrepiante, confesso.
Algumas histórias têm o seu interesse, mas destaco também “You Might Also Like”, uma invasão extraterrestre pelos mesmos aliens do original “To Serve Man” que acaba por ser uma paródia pouco subtil ao consumismo.
Os outros episódios são francamente esquecíveis e se a série for renovada e a qualidade continuar assim, penso que vai ser a última crítica que faço a esta nova “Twilight Zone”.



domingo, 11 de abril de 2021

Sinbad (2012–2013)

Depois de tão escaldada e irritada por séries juvenis como “Merlin” e “Atlantis”, comecei a ver “Sinbad”, outra série feita no Reino Unido, na quase certeza de que era mais uma para criticar sem piedade. Surpresa das surpresas, até gostei. Ao contrário das outras duas, e tendo em consideração que é um produto infanto-juvenil, esta pelo menos faz sentido. Mas há muito mais para gostar.
Não sei até que ponto é uma série para crianças. Reparei num quadradinho azul-claro no canto do écran com o número 7. O que é isto? Como não costumo ver séries para crianças, não sei, mas desconfio que é para maior de sete? Sim, a história é simples de acompanhar e até aparece um grifo no segundo episódio que ajuda os protagonistas, mas não sei se às vezes não é muito pesado para sete anos. Como daquela vez, por exemplo, em que um monstro comeu o braço a alguém e se vê o “braço decepado”, osso e sangue à mostra. Eu achei um bocadinho realista demais para um público infantil, mas se calhar agora os putos até vêem “A Guerra dos Tronos”. Por outro lado, apesar da simplicidade da história, os personagens não são tão bidimensionais como é costume e não sei se um miúdo desta idade tem capacidade de lhes compreender as nuances. Eu aconselharia a uma idade entre os 10 e os 13, mas já volto a este ponto.
Sinbad é mesmo Sinbad o Marinheiro. Um jovem irresponsável, vive de expedientes até ter o azar de matar acidentalmente o filho de um nobre importante num antro de luta a dinheiro. Este nobre importante, Lord Akbari, não é outro senão Naveen Andrews, o Sayid Jarrah de “Lost”, e que bem que este homem faz de vilão atormentado. Tão atormentado, na verdade, que não sei até que ponto uma criança ia compreender isto. No mundo infantil há os bons e os maus, não existe a área cinzenta em que um vilão pode ter alguma razão.
Cego de vingança, Lord Akbari manda matar o irmão de Sinbad, que este adora, para que Sinbad sinta a dor que ele sente. Quando isto acontece, a avó de Sinbad, furiosa por este ter sido o causador da morte do irmão bom e responsável, põe-lhe uma maldição: Sinbad tem de andar no mar durante um ano, com um colar ao pescoço que o estrangula se passar mais de um dia em terra. A avó é uma feiticeira, como é óbvio, e não faz isto por malvadez. Quer que Sinbad aprenda a lição de que os seus actos têm consequências. Entretanto, Lord Akbari sofre pela morte do único filho e decide que a vingança não bastou. Agora quer matar Sinbad também, e decide persegui-lo até aos confins do mundo. Para tal, pede ajuda à feiticeira Taryn, cujas práticas estavam banidas da Pérsia por ordem do soberano, irmão de Akbari, que não gosta de magia.
Aqui, confesso, cheirou-me tanto a “Merlin” que enjoou (“Merlin” terminou em 2012, ano de estreia de “Sinbad”), mas a série afastou-se desse enredo depressa, talvez por perceber que já ninguém tinha paciência para ver o mesmo outra vez. Foram espertos.
A única ligação à Pérsia é mesmo o ponto de partida, porque de resto “Sinbad” é uma série de Fantasia com um world building próprio muito bem feito em que somos mergulhados num tempo e espaço ficcionais sem outras semelhanças com a realidade histórica. (Alguns críticos não perceberam que estavam a ver Fantasia. É triste mas ainda acontece.) Perseguido por Lord Akbari, Sinbad tem de fugir num navio que quase naufraga durante uma tempestade. Os únicos sobreviventes, que se tornam companheiros de Sinbad, são meia dúzia de personagens que não podiam ser mais diferentes, alguns bons até ao tutano, outros de passado e presente duvidosos.
Todos os episódios são uma aventura diferente e a série aproveita para desenvolver cada um dos personagens, contando-lhes a história. Dei por mim a ficar interessada. Não deslumbrada, nem nada que se pareça, mas é uma boa série para ver ao fim do dia, com sono e um copo de vinho, sem ter de pensar muito, mas ainda nos fazendo pensar um bocadinho. O enredo principal vai sempre acompanhando as aventuras dos amigos náufragos, e nunca temos a sensação de episódios que só ali estão a encher “chouriços”.
Acabada a primeira temporada de 10 episódios, perguntei-me se havia segunda. Para meu espanto, não havia. Foi cancelado. E digo “para meu espanto” depois de cinco intermináveis temporadas de “Merlin” e duas de “Atlantis”, que eu já só via por hate watching. Isto intrigou-me e fui investigar. Li algumas críticas. E as minhas suspeitas confirmaram-se. “Sinbad” foi vítima de ser demasiado pesado para crianças e demasiado leve para adultos, um pouco o que aconteceu também a “Atlantis” no fim. As crianças não conseguem compreender os personagens e os adultos acham-nos demasiado estereotipados. O world building de Fantasia está muito bem feito mas pedia mais drama a encher este cenário. Numa altura em que competia com “A Guerra dos Tronos”, não tinha qualquer hipótese.
Vou dar o exemplo do segundo episódio, em que os náufragos vão parar a uma ilha de ladrões canibais. Que são canibais é a princípio só insinuado mas lá para o meio do episódio torna-se muito claro: vão ser comidos. A rainha dos canibais escolhe um dos homens para dormir com ela (antes de o comer mesmo, isto é), e Sinbad oferece-se em vez dele para tentar descobrir como escapar. Ora, meus amigos, isto é violação. Se fosse um homem a escolher uma mulher para dormir com ele sob ameaça de morte, o que não teriam gritado os pais das criancinhas a quem a série era supostamente destinada. Sinbad vai para a cama com a rainha dos canibais porque não tem outra escolha se a quer “empatar”. É a vida dele e dos amigos que está em jogo. Não me parece um enredo infantil. Mas este é precisamente o episódio que acaba com a ajuda do grifo. A rainha dos canibais tem um grifo aprisionado a quem Sinbad liberta. O grifo ajuda por gratidão. Ora, este já é um enredo infantil. Mas o episódio andou ali entre o pesadíssimo e o infantil como se água e azeite se misturassem. Eu assisti de boca aberta a perguntar-me: quem é o público-alvo desta série? É que não dá para ser leve e pesado ao mesmo tempo. Acaba por não agradar a ninguém, nem aos miúdos nem aos graúdos. Na minha opinião foi isto que ditou a curta carreira de “Sinbad”, que, dirigido a um público mais adulto, ou o contrário, a um público mais infantil, podia ter sido uma série mais satisfatória.
Assim, ficou ali no morno e não foi quente nem frio. Mas como morno que é, aconselho a adultos ensonados antes de dormir.
E já falei no Naveen Andrews como vilão? Por onde é que o homem tem andado? As saudades que eu tinha dele.

 

domingo, 4 de abril de 2021

The Purge: Anarchy / A Purga: Anarquia (2014)

Muitos críticos deste filme apontam a premissa da Purga como ridícula e inconcebível. Eu discordo cada vez mais. Tal como disse aqui na crítica ao primeiro filme da série, “A Purga”, não acredito que uma noite de violência por ano em que todos os crimes são admissíveis, até o homicídio, resultasse na diminuição do crime. Mas, como acabámos de ver pelo exemplo do ano que passou, não é por uma medida não resultar que não se implementa. E uma população aterrorizada, neste caso uma população aterrorizada pelo crime, desde que bem regada de propaganda, aceita tudo o que percepcione como medida de protecção para si e para os seus.
Os Novos Pais Fundadores, como chamam a si próprios, não são ditadores de um regime totalitário. Tal como o partido Nazi foi eleito por uma população desesperada e iludida, estes líderes foram eleitos por uma população amedrontada que acreditou na propaganda. Uma vez engolida a propaganda, as piores atrocidades podem acontecer sob o aval da sociedade que concordou com elas, implícita ou explicitamente. E depois há sempre aquela tendência do ser humano de entrar em negação: “Eles dizem isso assim e assim, mas não são tão maus como parecem. É só conversa, não vão pôr em prática.” E lá vai o voto de protesto para os radicais que defendem as medidas. Aconteceu com o partido Nazi, não vejo razão por que não possa vir a acontecer. É claro que aqui também entra a negação: “Não, não vai nada acontecer outra vez. Que ideia ridícula e inconcebível.” Não é ridícula nem inconcebível e já esteve mais longe.
Raramente me vão ouvir dizer isto, mas este segundo filme é melhor do que o primeiro. Se “A Purga” era o típico filme de terror em que uma casa é assaltada por estranhos que querem matar os seus habitantes, esta sequela desenvolve-lhe as pistas políticas e sociológicas. Sem deixar de ser um filme de grande terror, que o é, é também um comentário à desigualdade social, à lavagem cerebral e ao poder.
Se em “A Purga” vimos os acontecimentos pela perspectiva de uma família privilegiada da classe média-alta, aqui andamos nas ruas, na anarquia da noite da Purga em que aqueles que não se conseguem proteger por detrás de muros e bunkers, os pobres, são os mais vitimados. Muitas coisas são chocantes por serem já consideradas tão normais pela sociedade.
Por exemplo, começa por aquele avô que precisa de remédios muito caros e sabe que a filha faz grandes sacrifícios para lhos comprar, e decide vender-se para ir ser assassinado por uma família abastada que mata em conjunto no conforto e segurança do seu lar. “Sobrevivam a esta noite e usem o dinheiro que vai aparecer na vossa conta”, escreve à filha e à neta antes de sair para ir morrer. 

Já na casa deste avô, esta filha, empregada de mesa, e a sua filha adolescente, tentam trancar-se como podem, mas uma milícia armada invade o prédio e arrasta-as para fora de casa, onde uma metralhadora as espera. É que o governo acha que as pessoas “não estão a matar-se o suficiente” e começou a intervir com assassinatos militarizados em bairros pobres para diminuir a despesa com as classes mais desfavorecidas. Esta milícia mata a mando do governo.
Mãe e filha são salvas no último instante por um polícia que andava na rua na noite da Purga com a sua própria vingança em mente: matar o condutor alcoolizado que vitimou o seu filho num acidente de automóvel. Este é daqueles que concordam com a Purga como método de fazer justiça pelas próprias mãos, e que se calhar até votou nos Novos Pais Fundadores, mas tem muitas horas para mudar de ideias até ao fim da noite.
Os outros protagonistas da história são um jovem casal em crise que apenas teve o azar de estar no sítio errado à hora errada. Ainda antes de começar a Purga, são perseguidos por um gangue com máscaras medonhas e facas. Pensamos que este gangue os quer matar, mas não. Este gangue anda à procura de vítimas para vender a um leilão da classe alta em que estas vítimas vão ser caçadas, como animais num safari, pelos licitantes que pagarem mais. A mensagem do filme não podia ser mais clara. A Purga serve os interesses dos mais ricos, que “purgam e purificam” completamente convencidos de que estão a participar na melhoria da sociedade. Porque nunca lhes calha a eles. Assim é fácil defender a Purga.
Mas se os mais ricos se conseguem proteger, isso não significa que alguns das classes mais desfavorecidas não gostem também da Purga. É uma noite para deitar cá para fora o “animal dentro de si” como dizem as notícias, e grupos de “purgadores” munidos das suas armas preferidas saem às ruas para fazer isso mesmo: matar tudo o que lhes aparecer à frente. Chegam até a procurar os locais onde dormem os sem-abrigo porque são os mais fáceis de matar e estão completamente indefesos.
Nem tudo é horrível. Já começa a formar-se uma resistência política e armada que anda pela noite da Purga a matar os ricos nos seus bunkers. Sim, também parece horrível, mas pelo menos estes matam por convicções ideológicas, se não mesmo em auto-defesa, não matam para satisfazer instintos sádicos. É a diferença entre a guerra e a barbárie, por muito más que sejam ambas.
Como se deve ter notado, gostei do filme e recomendo. Para se ver de olhos bem abertos sem as vendas da negação. Já aconteceu semelhante e pode muito bem vir a acontecer igual ou semelhante outra vez.

17 em 20