domingo, 31 de março de 2024

Transcendence / Transcendence: A Nova Inteligência (2014)


Tive de ver este filme duas vezes para perceber porque é que não gostei. A própria premissa não é original: um cientista que tenta fazer com que o seu intelecto sobreviva à morte. Lembro-me de um filme da série B em que tinham o cérebro de um cientista preservado numa redoma a comunicar através de um microfone. Esta é uma história que vem desde… Frankenstein? E só estou a pensar nas histórias modernas. Antes da electricidade e da ciência era tudo explicado com fantasmas.
Em “Transcendence” um casal de cientistas (Will e Evelyn Caster) e um amigo (Max Waters) estão a trabalhar no desenvolvimento de uma Inteligência Artificial quando um grupo de terroristas tenta assassinar Will, bem como a outros pesquisadores de Inteligência Artificial, porque a julgam perigosa. A princípio parece que não conseguem matar Will, mas este foi atingido por uma bala com polónio, o que significa que vai morrer de radiação.
Entretanto, Evelyn tem a ideia de fazer o upload da consciência de Will para um computador antes que ele morra (algo que já teria sido conseguido com a consciência de um macaco). Will aceita. Quando morre, a consciência na máquina, a que eu vou chamar Programa Will, acorda e imediatamente pede acesso à internet e às Bolsas. O primeiro a expressar dúvidas é o amigo Max: “Mas será que é mesmo ele?” Evelyn, a viúva, não tem dúvidas. É mesmo Will.
Mas Will corre perigo de vida (ou, neste caso, de ser destruído por terroristas), por isso convence Evelyn a instalar-se numa cidade quase fantasma onde não há quase nada nem ninguém de modo a construírem ali uma base de segurança.
Não é fácil escrever o resumo do filme porque este é longo (ou assim parece) e cheio de reviravoltas. Dois anos depois, o “casal” conseguiu montar um laboratório informático onde desenvolve experiências com nanotecnologia. Quando um dos trabalhadores é assaltado e espancado e fica às portas da morte, os nanitos salvam-lhe a vida. Mas não é só o que fazem. Também lhe dão uma força sobre-humana e, e aqui é que as coisas começam a dar para o torto, ligam-no ao Programa Will numa espécie de “consciência de colmeia”. Este trabalhador, de seguida, apresenta-se a Evelyn como Will, que lhe diz que agora já encontrou “uma maneira de lhe tocar”. Evelyn fica horrorizada, e é de ficar, mas permanece no laboratório. As imagens na internet da recuperação milagrosa do trabalhador atraem às instalações um corrupio de paralíticos, cegos e doentes incuráveis, todos eles no desejo de serem curados, e todos eles passando a pertencer à mesma “consciência de colmeia” a que o Programa Will chama Híbridos. O governo americano começa a pensar que Will está a criar um exército e decide destruir as instalações, nem que tenha de desligar completamente a internet para que o Programa Will não consiga escapar para outro lado.
No meio disto tudo, o filme também é uma história de amor. A princípio não percebi o que me alienou, mas nem sequer foi a pseudo-ciência. Foi a quantidade de vezes que Evelyn se virou contra o “marido”, e cinco minutos depois o defendeu, e logo a seguir se virou contra ele outra vez, e o defendeu outra vez… É caso de não perceber o que é que ela queria afinal. Nada me desagrada mais do que motivações incoerentes numa personagem, e acabei o filme sem compreender o que ela esperava daquelas experiências (que apoiou e em que participou), ou do próprio casamento. Da mesma forma, também não percebi muito bem se Will queria mesmo curar as pessoas e o planeta, ou se isso era apenas o início para dominar o mundo. Obviamente, como Programa, Will esqueceu que entrar na cabeça de alguém e modificá-la sem pedir autorização viola o livre-arbítrio dessa pessoa. Isto é agir sem escrúpulos, por muito boas intenções que se tenham.
Aconselho outras pessoas a verem por si e tecerem as suas próprias opiniões, porque a minha é muito má.

11 em 20

domingo, 24 de março de 2024

The Walking Dead: Dead City (2023 - ?)


Muito era esperado deste spin-off que confronta Maggie e Negan de “The Walking Dead”. Algumas críticas acreditam que o conflito entre os dois (a morte à cacetada de Glenn) ficou superado na série original. Eu nunca fui dessa opinião. Negan decide afastar-se da gente de Alexandria/Hilltop/etc exactamente por saber que um dia Maggie vai acabar por matá-lo. Maggie tenta interiorizar o facto de que Negan passou anos preso em Alexandria a pagar pelo seu crime, mas Maggie não estava lá para ver (porque a actriz Lauren Cohan estava a fazer outro programa). Desta forma, embora na última temporada tenham sido obrigados a trabalhar juntos, o conflito entre Maggie e Negan está longe de resolvido (se é que alguma vez poderá estar).
Passaram-se alguns anos desde o final de “The Walking Dead”. Existe uma nova Federação de Estados chamada New Babylon em que se aplica Lei & Ordem. Maggie e as pessoas de Hilltop tiveram de se mudar para outra localização depois do incêndio causado pelos Whisperers (não percebi se a comunidade de Maggie faz parte de New Babylon ou não). Hershel, o filho de Maggie e Glenn, é agora um adolescente na fase rebelde que responde mal à mãe (como é normal). Mas parece que a sociedade está menos caótica em geral. Até têm bares com álcool, jogo e prostituição. Fiquei surpreendida mas achei interessante. Se é fascinante ver a sociedade desagregar-se também é interessante vê-la voltar ao normal.
No final da série original, Negan tinha uma esposa e um filho a caminho, mas não se encontra com eles porque, como sempre, Negan está metido em sarilhos. É procurado pelos delegados de New Babylon pelo homicídio de 5 homens (mas depois percebemos que teve grandes razões para fazer o que fez). Maggie descobre-o escondido num motel (já têm motéis outra vez) para o obrigar a ajudá-la. A comunidade de Maggie foi atacada por um antigo parceiro de Negan dos tempos do Santuário, chamado o Croata (a quem Negan apelida de “o filho da puta mais demente que já conheci”), que lhes roubou todo o grão, levou Hershel como refém, e ameaçou regressar frequentemente para lhes levar a produção agrícola. Maggie quer a ajuda de Negan porque este conhece o Croata, e porque Negan “lhe deve”, além de andar fugido e já não ter muitos sítios onde se esconder. O problema é que o tal Croata levou Hershel para a ilha de Manhattan, um dos locais mais perigosos da América. Acredito que Negan só tenha aceitado por causa de Hershel, porque tem a tal “dívida”.
Perseguidos pelos delegados de New Babylon, Negan e Maggie chegam de barco a Manhattan. Manhattan está particularmente devastada porque foi um dos epicentros do apocalipse zombie. Numa tentativa de conter a epidemia, os militares destruíram as pontes e os túneis, deixando as pessoas abandonadas à sua sorte. Manhatan é agora um deserto negligenciado de prédios semi-destruídos e vegetação, hordas de zombies pelas avenidas, esgotos cheios de mortos e veados a pastar nas ruas. É neste cenário de ficção-científica (desolador, mas não é a bela França) que Negan e Maggie têm de procurar onde se esconde o Croata, o que vão descobrir mais depressa do que pensavam graças à ajuda de sobreviventes originais de Manhattan. No entanto, Maggie não está a ser tão honesta como parece…
Durante a aventura em Manhattan, Maggie fica a conhecer facetas de Negan que não julgava existirem. Por outro lado, Negan parece reconhecer o monstro que existe dentro de si e que ele não quer ver de volta à luz do dia.
“The Walking Dead: Dead City” é um bom spin-off, com mais originalidade e tensão do que a série original nos últimos tempos (o que não seria difícil). O último episódio promete uma sequela, uma vez que Maggie admite que está na altura de resolver a questão de Negan de uma vez por todas. Aconselho a todos os fãs de “The Walking Dead” e, depois de ver dois spin-offs, estou surpreendida pela qualidade que já não esperava tendo em conta como a série original acabou a arrastar-se.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies

 

terça-feira, 19 de março de 2024

12 Years a Slave / 12 Anos Escravo (2013)


Por alguma razão, este filme não teve em mim o impacto que devia ter tido. A história é baseada em factos verídicos. Um homem negro de Nova Iorque, Solomon Northup, nascido livre, é raptado e forçado a viver em escravidão na Luisiana durante doze anos até conseguir ser libertado e voltar a casa. As suas memórias foram registadas em livro.
O filme claramente quer mostrar-nos o que foi a escravatura no sul dos Estados Unidos. Acontece que nada disto é novidade para mim, como o deve ter sido para outros espectadores. Cresci com a telenovela brasileira “A Escrava Isaura” e assisti ao soberbo “Raízes” (“Roots”). Em vários filmes e séries do género já assisti a tudo o que vi aqui e pior. (Até em “Outlander”, imagine-se.) Logo, não houve factor novidade. Conheço estas atrocidades todas.
O que faltou? O filme quer mostrar-nos o que era a escravatura, mas nunca nos mostra quem é de facto Solomon Northup. Sim, é um homem decente, sabemos que quer sobreviver e escapar e regressar para a sua família (quem não quereria?), mas tudo isto é demasiado genérico e bidimensional. Solomon Northup não é um personagem em si próprio; é um símbolo. Muitas vezes dei por mim a pensar antes em “The Handmaid’s Tale”, que estava a ver na altura, e em como em narrativas semelhantes (as Servas são forçadas à escravidão pela violência) as personagens são tão bem desenvolvidas.
E depois temos a aparição deus ex machina de Bratt Pitt, qual anjo salvador, que só ali está para ajudar Solomon, finalmente.
Ou seja, o filme adquire uma tonalidade quase panfletária em vez de contar a história do homem de carne e osso que foi Solomon Northup. Exemplo disto é que só lhe vemos a família no princípio e no fim. Se calhar o objectivo do filme era mesmo que não olhássemos para o homem mas antes para os horrores da escravatura. Se era isso, objectivo conseguido, mas podia-se conseguir melhor.

13 em 20

domingo, 17 de março de 2024

The Prodigy / O Prodígio (2019)

Uma mãe descobre que o seu filho, uma criança-prodígio, está possuído pela entidade falecida de um serial killer.
Este é mais um filme do tipo “creepy kid” com todos os clichés que vêm com isso desde “O Exorcista”. É curioso que o filme insiste que não é possessão mas reencarnação (a alma do falecido “entrou” no recém-nascido para terminar assuntos pendentes) mas, lamento, a reencarnação não é nada disto. Isto é possessão e não lhe chamarei outra coisa.
À medida que o miúdo cresce mais se manifesta a personalidade manipuladora e perigosa do serial killer. A grande questão do filme é saber o que uma mãe é capaz de fazer para salvar o filho, e esta mãe está disposta a quase tudo. Mas conseguirá cumprir o último desejo do serial killer?
“O Prodígio” é um filme mediano que faz tudo o que tem de fazer dentro do género. Pese embora a falta de originalidade, agradará aos espectadores que já sabem com o que podem contar.

12 em 20


terça-feira, 12 de março de 2024

Insidious / Insidioso (2010)


Alguns filmes podem ser resumidos por fórmulas. “Insidious” seria [família em crise muda-se para casa nova] + [criança possuída] e os amantes de terror já sabem tudo o que esperar daqui. Mas vamos lá ao resumo propriamente dito.
Uma família em crise, com três filhos pequenos, muda-se para uma casa nova para recomeçar. Logo numa das primeiras noites, o filho mais velho sobe ao sótão e cai de uma escada. No outro dia não acorda: está num coma que os médicos não conseguem explicar. O filho do meio tem medo de estar sozinho no quarto, e muito depressa também a mãe começa a ter visões de espectros à volta do quarto do filho em coma.
Pensando que a casa está assombrada, convence o marido a mudar de casa, e assim fazem. (O que não acontece muitas vezes neste tipo de filmes, note-se.) Só que na casa nova as manifestações sobrenaturais continuam, o que demonstra que não era a casa que estava assombrada, é a família! (Reviravolta original, admito.)
Entra mais um elemento na fórmula: [caça-fantasmas]! Não estavam à espera desta, pois não? Eu confesso que não estava. Pensei mesmo que os caça-fantasmas e os seus aparelhómetros (que parecem mais uma coisa de “Sobrenatural” mas ainda menos profissional) eram apenas um comic relief temporário. Mas depois chamam mesmo uma vidente-exorcista.
A partir daqui o filme torna-se histérico, exactamente o contrário de insidioso, subtil. Aparecem fantasmas e demónios de todo o lado. As luzes piscam e rebentam. O costume. Eu desatei a rir quando mostraram os cascos do demónio. (Mais um à imagem do deus Pan, coitado, que não tem culpa nenhuma.) Foi assim, desatei-me mesmo a rir! E não há nada pior num filme de terror do que pôr os espectadores a rir.
E assim continuou. Os caça-fantasmas ficaram até ao fim a fazer-me rir, e nunca mais parou. Pena, porque a coisa ia bem. Onde é que o filme falhou? Fórmula demasiado comprida: [família em crise muda-se para casa nova] + [criança possuída] + [caça-fantasmas]. Quiseram meter tudo e mais alguma coisa num filme que se anunciava “insidioso” e que se tornou “excessivo”.
Fica a parte boa e a parte em que me ri.
Ah! E vejam os créditos finais até ao fim para mais uma gargalhada!

12 em 20


domingo, 10 de março de 2024

Cybele's Secret, de Juliet Marillier


Segundo livro da série iniciada em “Wildwood Dancing”, esta é a história de Paula, uma das cinco irmãs do original. Paula acompanha o pai, o mercador Teodor, a Istambul, na tentativa de adquirirem a estatueta de Cybele, um artefacto pagão de uma deusa da antiguidade, que se diz trazer prosperidade ao seu possuidor.
Em Istambul, chegada da Transilvânia, Paula encontra uma cultura islâmica muito diferente da sua que obriga o mercador a arranjar-lhe um guarda, o búlgaro Stoyan, que a acompanha para todo o lado. Numa sociedade de intrigas e traições, Paula, a erudita da família, conhece outra erudita, a grega Irene de Volos, e o capitão do navio Esperança, o português com fama de pirata Duarte da Costa Aguiar, ambos interessados no mesmo artefacto. (Fiquei muito surpreendida e entusiasmada por haver um português na história, com palavras e canções em português e tudo!) As autoridades de Istambul suspeitam que o culto pagão de Cybele está a ser praticado às escondidas e também querem pôr as mãos no que consideram um ídolo proibido.
Duarte é atrevido e considerado sem escrúpulos, e é ele quem consegue comprar a estatueta, mas, como Paula vem a descobrir, não é o lucro que o move, antes a promessa que fez a um amigo de restituir o artefacto ao povo a quem este pertence.
Paula torna-se amiga de Duarte mas apaixona-se por Stoyan, o que não vai ser uma relação fácil porque Paula adora conhecimento e instrução e Stoyan nem sabe ler ou escrever.
“Cybele's Secret” é um romance Young Adult (e toda a gente aqui sabe que não é o meu género) mas o que realmente não apreciei foi a aventura à Indiana Jones em que Paula, Duarte e Stoyan se metem para levar a estatueta ao povo que a idolatra. Quem gosta de aventuras tem aqui uma boa história, no entanto. Para mim, admito, foi uma seca. Aliás, “Cybele's Secret” ainda é mais juvenil do que “Wildwood Dancing” e faltam-lhe os elementos dramáticos que me enchem as medidas. Bom livro para oferecer a uma pessoa muito jovem, mas para mim não.


terça-feira, 5 de março de 2024

The Girl On The Train / A Rapariga No Comboio (2016)

Este é um daqueles filmes baseados em romances que talvez não tenham sido bem traduzidos para o cinema, fazendo com que a princípio pareça um drama psicológico que subitamente se transforma num suspense/policial à Hitchcock. A sensação geral é de que estes dois elementos andam sempre desconjuntados.
Começa logo pelo princípio, em que somos apresentados a três personagens femininas distintas, uma de cada vez, nenhuma delas particularmente empática. Achei aborrecido e fez-me questionar porque é que nos devíamos interessar por elas. Rachel, a protagonista, é uma alcoólica que todos os dias finge que vai trabalhar (embora tenha sido despedida) e se mete no comboio que passa à frente da casa do ex-marido, onde este agora mora com outra esposa e uma filha bebé. Da perspectiva desta nova esposa, descobrimos que Rachel não se limita a observar. Passa os dias e as noites de embriaguez a telefonar e a mandar mensagens ao ex-marido, e certa vez, bêbeda, entrou em casa deles (que tinha sido também a casa dela) e pegou na bebé e levou-a com ela, o que é aterrador para uma mãe.
Mas o interesse de Rachel não se limita ao ex-marido. Durante as viagens de comboio desenvolveu um fascínio/obsessão com outra vizinha que parece viver o amor perfeito com o marido (desta outra vizinha). Se soa confuso, é porque o filme também é algo confuso. Demorei um bocadinho a perceber que este “casal perfeito” é vizinho do ex-marido e que Rachel possivelmente só ficou fascinada por eles porque passava por lá todos os dias. Quando Rachel descobre que esta mulher (que Rachel não conhece mas fantasia conhecer) anda a trair o marido, fica enraivecida porque a vê a destruir algo de perfeito. Perfeito na cabeça de Rachel, isto é. Embriagada, Rachel tem um apagão e acorda em casa coberta de sangue e nódoas negras. Pouco mais tarde vê no jornal que a mulher, chamada Megan, desapareceu. Rachel pensa que a matou e fica apavorada. Continuando na linha stalker, apresenta-se ao marido de Megan como amiga dela, imiscui-se na investigação, começa a frequentar o psiquiatra de Megan. E aqui o filme começa a ser um “quem matou Megan?”, mas significativamente mais interessante do que tinha sido nos primeiros 20 minutos.
Infelizmente, após tanto tempo de filme, a revelação aparece um bocado aos trambolhões. Não era nada do que pensávamos porque o filme nos tentou enganar noutra direcção e também não nos deu nada para suspeitarmos outra coisa. Logo, o fim parece-nos uma reviravolta forçada. Aliás, toda a dinâmica entre estes vizinhos e Rachel parece forçada e “coincidência a mais”. Foi pena, porque o filme até estava a tomar forma e a recompensar-nos pelos 20 minutos em que tivemos de conhecer personagens sem percebermos qual era o papel delas na história.
Das críticas que li, o livro resulta, o filme é que não. Mesmo assim, tem momentos interessantes e vale a pena ver. A parte do saca-rolhas é de algum humor negro. Quem melhor do que um alcoólico para usar um saca-rolhas como arma? Acho que não era para rir, mas ri-me.

12 em 20

domingo, 3 de março de 2024

The First Purge / A Primeira Purga (2018)


O primeiro filme da série “A Purga” era assumidamente um filme de terror com comentário social implícito. Nos dois filmes seguintes, “The Purge: Anarchy” e “The Purge: Election Year”, o comentário social começou a tomar um lugar central sem que mesmo assim saíssem do género que lhes deu origem.
Já não posso dizer o mesmo deste “The First Purge”. A história começa com cenas de protestos em que duas facções de americanos se enfrentam com tal antagonismo que podiam passar-se hoje. De facto, parece o que vemos no telejornal. Isto arrepia, mas de outra maneira: não porque é ficção mas porque é real.
“The First Purge” conta-nos como começou a noite da Purga, quando o Partido chamado Novos Pais Fundadores subiu ao poder. Basicamente, é um partido do tipo “fazer a América grande outra vez” sem usar exactamente este slogan, que acredita que o Estado está muito sobrecarregado com despesas de apoio aos mais pobres e que aproveita, para os eliminar, uma experiência científica que defende que deixando as pessoas darem largas aos impulsos mais criminosos impunemente, durante uma única noite no ano, a violência decresce. Mais uma vez, esta barbaridade é vendida em troca da promessa de mais segurança. Segundo me lembro do primeiro filme, alguns números confirmavam o sucesso da experiência, mas por outro lado os números podiam estar manipulados. Não é possível acreditar em nada que os Novos Pais Fundadores dizem oficialmente.
A primeira Purga foi assim vendida como experiência na ilha de Staten Island, e aos mais pobres foram oferecidos 5 mil dólares para permanecer no local (na altura havia a possibilidade de escapar para outro sítio) e ainda mais se participassem. A maioria das pessoas aceitou porque precisava do dinheiro, mas há uma minoria de outros que está a salivar pela oportunidade de fazer mal ao próximo, mesmo a desconhecidos, até por questões de frustrações e raivas acumuladas.
Enquanto os activistas anti-Purga se organizam para manter as pessoas em segurança durante a noite, os traficantes de droga, por seu lado, também não gostam da ideia porque não é bom para o negócio. Daqui nascerá uma estranha aliança quando as coisas se complicam.
A princípio, “The First Purge” ainda tenta um toque do género terror, fazendo os “purgantes”, chamemos-lhes assim, usar umas lentes de contacto com câmaras integradas (a transmitirem para o centro de observação da experiência) que ficam néon e dão uma aparência alienígena. Isto é interessante, mas depressa abandonado.
Curiosamente, na noite da Purga as pessoas não se lançaram todas umas às outras. Houve quem aproveitasse para organizar festas. Houve quem decidisse ir arrombar o Multibanco para roubar o banco que lhe cobra comissões muito altas (e podemos censurá-lo?). Mas, é claro, há sempre o psicopata que aproveita para dar vazão aos seus instintos, e é assim que as mortes começam.
É igualmente curioso que as pessoas que decidem “purgar” comecem a fazê-lo usando máscaras, mesmo que a lei lhes permita impunidade. É a maneira de esconderem a vergonha de cometerem actos que sabem estar errados, um apontamento de psicologia interessante.
Todavia, as coisas continuavam relativamente calmas na opinião do centro de observação. Previam que houvesse muito mais violência. Na falta dela, enviam mercenários para começarem o que as pessoas comuns não queriam fazer, e então sim, foi a mortandade.
Um dos heróis do filme é mesmo o traficante de droga que tenta proteger as pessoas do bairro, o bairro que, afinal, também é o dele. Isto leva a cenas de grandes tiroteios e combates nas ruas, mas, e aqui é que lamento, um filme de tiros não é um filme de terror. Em suma, é o que acho de “The First Purge”, que abandonou completamente o género inicial e se transformou quase num filme de acção, os bons contra os maus e isso tudo. Não digo que tenha perdido o interesse, mas perdeu alguma coisa do seu ADN.
Este filme é todo feito na perspectiva de pessoas de cor, o que também me incomodou um bocadinho. Todos os personagens brancos são ricos e maus. Não há aqui um único branco pobre e/ou bom. É verdade, o primeiro filme passou-se numa casa da classe alta branca mas os “maus” também eram brancos. Em “The First Purge” acho que se exagera na questão racial, como se não houvesse brancos pobres. É quase um “brancos a matar negros oprimidos” carregadinho de ideias políticas tão fracturantes que, se eu estivesse a escrever isto nos Estados Unidos, caía-me tudo em cima a chamar-me racista. (As coisas já estão assim tão extremadas que nem se pode emitir uma opinião de meio-termo.) Pelo contrário, só estranhei a falta dos brancos pobres porque também há muitos e vivem nos mesmos bairros sociais e degradados.
Não gostei que esta “Purga” tenha perdido o elemento de terror. Os filmes anteriores já estavam a caminhar nesse sentido, mas eram mais subtis. Esta “Purga” é muito óbvia, quase panfletária. O paralelo com a situação política actual funciona, mas perde-se quando se entra no território da Purga propriamente dita, num salto da realidade para a ficção sem terror e/ou drama que o sustentem.

13 em 20