domingo, 3 de março de 2024

The First Purge / A Primeira Purga (2018)


O primeiro filme da série “A Purga” era assumidamente um filme de terror com comentário social implícito. Nos dois filmes seguintes, “The Purge: Anarchy” e “The Purge: Election Year”, o comentário social começou a tomar um lugar central sem que mesmo assim saíssem do género que lhes deu origem.
Já não posso dizer o mesmo deste “The First Purge”. A história começa com cenas de protestos em que duas facções de americanos se enfrentam com tal antagonismo que podiam passar-se hoje. De facto, parece o que vemos no telejornal. Isto arrepia, mas de outra maneira: não porque é ficção mas porque é real.
“The First Purge” conta-nos como começou a noite da Purga, quando o Partido chamado Novos Pais Fundadores subiu ao poder. Basicamente, é um partido do tipo “fazer a América grande outra vez” sem usar exactamente este slogan, que acredita que o Estado está muito sobrecarregado com despesas de apoio aos mais pobres e que aproveita, para os eliminar, uma experiência científica que defende que deixando as pessoas darem largas aos impulsos mais criminosos impunemente, durante uma única noite no ano, a violência decresce. Mais uma vez, esta barbaridade é vendida em troca da promessa de mais segurança. Segundo me lembro do primeiro filme, alguns números confirmavam o sucesso da experiência, mas por outro lado os números podiam estar manipulados. Não é possível acreditar em nada que os Novos Pais Fundadores dizem oficialmente.
A primeira Purga foi assim vendida como experiência na ilha de Staten Island, e aos mais pobres foram oferecidos 5 mil dólares para permanecer no local (na altura havia a possibilidade de escapar para outro sítio) e ainda mais se participassem. A maioria das pessoas aceitou porque precisava do dinheiro, mas há uma minoria de outros que está a salivar pela oportunidade de fazer mal ao próximo, mesmo a desconhecidos, até por questões de frustrações e raivas acumuladas.
Enquanto os activistas anti-Purga se organizam para manter as pessoas em segurança durante a noite, os traficantes de droga, por seu lado, também não gostam da ideia porque não é bom para o negócio. Daqui nascerá uma estranha aliança quando as coisas se complicam.
A princípio, “The First Purge” ainda tenta um toque do género terror, fazendo os “purgantes”, chamemos-lhes assim, usar umas lentes de contacto com câmaras integradas (a transmitirem para o centro de observação da experiência) que ficam néon e dão uma aparência alienígena. Isto é interessante, mas depressa abandonado.
Curiosamente, na noite da Purga as pessoas não se lançaram todas umas às outras. Houve quem aproveitasse para organizar festas. Houve quem decidisse ir arrombar o Multibanco para roubar o banco que lhe cobra comissões muito altas (e podemos censurá-lo?). Mas, é claro, há sempre o psicopata que aproveita para dar vazão aos seus instintos, e é assim que as mortes começam.
É igualmente curioso que as pessoas que decidem “purgar” comecem a fazê-lo usando máscaras, mesmo que a lei lhes permita impunidade. É a maneira de esconderem a vergonha de cometerem actos que sabem estar errados, um apontamento de psicologia interessante.
Todavia, as coisas continuavam relativamente calmas na opinião do centro de observação. Previam que houvesse muito mais violência. Na falta dela, enviam mercenários para começarem o que as pessoas comuns não queriam fazer, e então sim, foi a mortandade.
Um dos heróis do filme é mesmo o traficante de droga que tenta proteger as pessoas do bairro, o bairro que, afinal, também é o dele. Isto leva a cenas de grandes tiroteios e combates nas ruas, mas, e aqui é que lamento, um filme de tiros não é um filme de terror. Em suma, é o que acho de “The First Purge”, que abandonou completamente o género inicial e se transformou quase num filme de acção, os bons contra os maus e isso tudo. Não digo que tenha perdido o interesse, mas perdeu alguma coisa do seu ADN.
Este filme é todo feito na perspectiva de pessoas de cor, o que também me incomodou um bocadinho. Todos os personagens brancos são ricos e maus. Não há aqui um único branco pobre e/ou bom. É verdade, o primeiro filme passou-se numa casa da classe alta branca mas os “maus” também eram brancos. Em “The First Purge” acho que se exagera na questão racial, como se não houvesse brancos pobres. É quase um “brancos a matar negros oprimidos” carregadinho de ideias políticas tão fracturantes que, se eu estivesse a escrever isto nos Estados Unidos, caía-me tudo em cima a chamar-me racista. (As coisas já estão assim tão extremadas que nem se pode emitir uma opinião de meio-termo.) Pelo contrário, só estranhei a falta dos brancos pobres porque também há muitos e vivem nos mesmos bairros sociais e degradados.
Não gostei que esta “Purga” tenha perdido o elemento de terror. Os filmes anteriores já estavam a caminhar nesse sentido, mas eram mais subtis. Esta “Purga” é muito óbvia, quase panfletária. O paralelo com a situação política actual funciona, mas perde-se quando se entra no território da Purga propriamente dita, num salto da realidade para a ficção sem terror e/ou drama que o sustentem.

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