domingo, 31 de dezembro de 2023

Charlie Says / O Culto de Manson (2018)

Gosto muito de filmes que retratam cultos, não apenas o de Charles Manson, mas também. É um erro pensarmos que não nos pode acontecer a nós. Conhecermos os meandros do fenómeno é a única maneira de nos protegermos de uma lavagem cerebral aos primeiros indícios de alarme, porque eles existem.
Não acontece do dia para a noite. “Charlie Says” conta a história pela perspectiva das três mulheres “Mansonitas” que cometeram homicídios a mando de Manson, quando estas já estão na prisão. Passados meses, anos, ainda acreditam em tudo o que Manson “profetizou”, como se este fosse um messias. Na verdade, Manson chegou a arrogar-se ser a segunda vinda de Cristo.
Mas nem tudo eram rosas no rancho onde a comunidade de Mason (a Família) se estabeleceu, longe disso. A princípio Manson é um homem carismático, acolhedor, bem-humorado, com ideias que agradam aos jovens hippies da altura. LSD e orgias são a norma. Todos os membros são incentivados a sentirem--se perfeitos, belos, e a deixarem para trás o “ego”. Quando as raparigas aliciadas já pertencem à comunidade, tudo muda. As mulheres não são autorizadas a ter dinheiro nem a ler nada senão a Bíblia. Outra coisa que eu não sabia: as mulheres só podiam começar a comer depois dos homens. (Ainda outro dado importante que não aparece muito salientado neste filme: as crianças eram retiradas às mães e criadas num infantário colectivo sob a supervisão das Mansonitas mais fanáticas para melhor controlar as mulheres que pensassem em desertar.) Manson chega a ser violento para com uma das discípulas como qualquer marido abusador, mas tudo isto é atribuído ao “amor”. Não era só uma forma de controlo, mas várias, o que lentamente ia formatando os indivíduos ao culto a ponto de acreditarem em tudo o que Manson dizia. E o que ele dizia era verdadeiramente absurdo: ia haver uma guerra racial, o Helter Skelter (segundo a canção dos Beatles). Usando ideias bíblicas, no Apocalipse cinco gafanhotos seriam mandados como praga para a humanidade. Quatro eram os Beatles, Manson era o quinto. Completamente delirante. Manson manda os discípulos cometerem crimes e darem a entender que foram os negros, para começar a guerra. A Família de Manson ia então refugiar-se nas profundezas do abismo de que fala o Apocalipse e só emergiria quando a guerra terminasse. Há mais, mas fiquemos por aqui.
Fascinante! Mais fascinante ainda é como é que jovens normais (se bem que inseguros e à margem da sociedade) acreditaram nisto tudo. Nunca é demais estudar estes fenómenos.
Como bom sociopata que era, Manson teria razões muito próprias e vingativas para ordenar os primeiros homicídios. Conhecido de Dennis Wilson, dos Beach Boys, Manson tinha ambições de se tornar uma estrela rock. Através deste conheceu o produtor Terry Melcher, que ouviu a música de Manson e não o contratou. Furioso, Manson manda os discípulos a casa de Melcher para o massacre. Só que entretanto Melcher tinha-se mudado e a casa estava alugada pela família de Roman Polanski (ausente nessa noite). O homicídio brutal da modelo Sharon Tate, esposa de Polanski e grávida de 8 meses, foi o crime hediondo que deu cara às vítimas. Segundo várias fontes, nos seus últimos momentos Tate ofereceu-se como refém para que a levassem e não a matassem até o bebé nascer. Não valeu de nada.
Este filme e outras séries/documentários contam a história, acrescentando mais pormenores. É cómodo preferir não conhecer os detalhes porque são demasiado chocantes. Mas nos dias da internet é ainda mais fácil estabelecer um culto, religioso ou outro. Toda a vigilância é pouca e começa nas nossas cabeças. Se cheira a culto, se tem contornos de culto, se a palavra do “líder” não pode ser questionada, então é um culto.
Filmes como este são mais documentários romanceados do que cinema propriamente dito, mas são obrigatórios.

13 em 20


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Another Earth / Outra Terra (2011)

[contém spoilers]

Ao ler a sinopse este filme pode parecer ficção científica mas na verdade é um grande dramalhão para chorar do princípio ao fim.
Rhoda Williams é uma jovem que acaba de entrar no MIT com apenas 17 anos. Toda a vida à sua frente e um futuro muito promissor. Depois da festa de celebração, em que houve bebida e possivelmente drogas à mistura, Rhoda conduz de regresso a casa.
Nesse preciso dia foi descoberto um planeta que parece um duplo da Terra, visível a olho nu no céu nocturno. Rhoda distrai-se a olhar para o planeta e choca frontalmente com um carro de uma família parado nos semáforos, matando imediatamente a mãe grávida e uma criança pequena.
Condenada por homicídio involuntário, Rhoda é libertada quatro anos depois por ser menor à altura, mas todo o seu futuro desapareceu. Vive atormentada pela culpa, aceita um emprego em limpezas para se castigar e tenta suicidar-se por hipotermia. Não conseguindo matar-se, decide ir a casa do sobrevivente do choque frontal, o compositor e professor de música John Burroughs (William Mapother, que para mim será sempre o Ethan de “Lost”). O que Rhoda encontra é desolador. O homem desistiu de viver, passa os dias a tomar medicação e a beber, a sua casa parece uma pocilga. Rhoda perde a coragem de pedir desculpa e apresenta-se como funcionária de uma empresa de limpezas a oferecer uma primeira experiência grátis. Burroughs hesita mas acaba por aceitar e “contratar” o serviço uma vez por semana.
Durante meses, Rhoda limpa-lhe a casa e de vez em quando conversam sobre a Terra 2, designação que foi dada ao novo planeta que agora está tão perto da Terra que parece maior do que a Lua. Descobre-se também que a “nova Terra” é um “duplicado” da Terra, em que existem precisamente as mesmas pessoas que existem na Terra e que têm nomes e percursos de vida iguais. É como se Deus tivesse tirado uma fotocópia da Terra.
Ora, é aqui que a ficção científica é mais absurda do que a hipótese da intervenção divina. Um planeta da dimensão da Terra, a orbitar o Sol, nunca passaria despercebido aos astrónomos. E este planeta não poderia ter outra órbita ou imediatamente se tornaria frio como Marte ou quente como Vénus. Nem podia ser como os cometas, a vogar pelo universo gelado para só aparecer uma vez em centenas de anos. Logo, é melhor esquecer qualquer plausibilidade científica e encarar este planeta como hipótese, um “e se houvesse um espelho da Terra algures”?
Uma empresa está a organizar um concurso para uma viagem espacial de visita à Terra 2, e Rhoda candidata-se sem acreditar que pode ser escolhida. Entretanto, a relação com Burroughs torna-se cada vez mais íntima e até romântica. A presença dela reavivou-lhe o interesse pela vida. Mas quando Rhoda lhe conta quem é, inevitavelmente, Burroughs expulsa-a da sua frente. No entanto, Rhoda ganha um lugar na viagem para a nova Terra e coloca-se a questão: talvez os percursos de vida nesse planeta tenham sido iguais até ambos se interceptarem. Nesse caso, a família de Burroughs ainda pode estar viva. Num último acto de redenção, Rhoda oferece-lhe o bilhete e ele aceita ir em vez dela.
Gostei muito do filme, não pelo aspecto da nova Terra, que não passa de um cenário hipotético, mas pelo drama realista na vida destas pessoas. O fim veio estragar o que estava a correr tão bem. Mesmo que a família de Burroughs ainda estivesse viva, não estaria ele lá também, e, logo, não haveria lugar para ele na vida deles? Não era melhor deixá-los em paz? E o que significa o encontro de Rhoda com a sua “dupla” do novo planeta? Desagradou-me que “Another Earth” tivesse deixado estas respostas em aberto e sem sentido. Todo o tema central do filme é a possibilidade de redenção e novas oportunidades. Não percebo como é que o fim se encaixa no tema.

16 em 20
 

domingo, 24 de dezembro de 2023

SurrealEstate (2021 - ?)

A fórmula de “Sobrenatural” deve ter feito escola porque “SurrealEstate” segue exactamente na mesma linha. A premissa é interessante: Luke Roman é o dono de uma agência imobiliária especializada em vender casas assombradas. Tirando este “pormenor”, a agência utiliza todas as práticas de vendas e eufemismos típicos do negócio. Por exemplo, a uma casa assombrada chamam antes “metafisicamente estigmatizada”. Roman tem uma equipa de peritos que tratam de “limpar” a casa de assombrações ou possessões antes de a venderem a um novo dono, o que permite uma assombração-da-semana como em “Sobrenatural”. O próprio Roman tem o dom, desde infância, de ouvir o mundo do Além.
Tal como em “Sobrenatural”, a par com os casos da semana a temporada tem uma história principal. Roman está obcecado com uma casa em especial, onde a mãe dele, que vivia na casa ao lado, entrou para se queixar das ervas daninhas no jardim e simplesmente desapareceu. Uma das cenas mais interessantes homenageia uma passagem do “Exorcista”, em que Roman é visto a observar a mansão como o padre Karras a chegar a casa de Regan.
Porque é que eu digo que a fórmula é a mesma de “Sobrenatural”? Porque o género é evidentemente Sobrenatural, mas o enredo principal + monstro-da-semana permite que a série explore tudo o que lhe apetecer: o cómico, o dramático, o romântico, e, obviamente, o terror, sem que o terror alguma vez chegue a meter medo. Aqui é tudo sobre as personagens, cativantes e tridimensionais. Eu, pelo menos, consegui sentir empatia por alguns deles.
Penso que, tal como “Sobrenatural”, esta série poderá vir a ter muito para dar se, para além do entretenimento das casas assombradas, as personagens continuarem a ser bem desenvolvidas. Uma boa alternativa para quem tem saudades de “Sobrenatural”.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: “Sobrenatural”, exorcistas, casas assombradas 


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Life / Vida Inteligente (2017)

Citando o outro, há que dizê-lo com frontalidade: quando vemos um filme qualquer no canal SyFy esperamos uma chachada para entreter e esquecer. Não é o caso de “Life”, uma boa surpresa.
Os astronautas da Estação Internacional recebem uma amostra de solo vindo de Marte com um presente envenenado: uma bactéria dormente, prova de que existiu vida no planeta vermelho. Em condições controladas, os cientistas tentam “despertá-la” com várias experiências. Até que conseguem. E a bactéria começa a crescer, a crescer… Desde pequenina, do tamanho de uma folha de chá, já se notava que queria abocanhar o dedo do cientista. Foi mais fácil crescer o suficiente para devorar o ratinho do laboratório. Imediatamente os astronautas tentam matar o organismo, mas este é inteligente e esconde-se na nave, tentando assimilar os recursos disponíveis: a água, o oxigénio… e a carne. Os astronautas percebem que não podem deixar o organismo chegar à Terra, mas o organismo também percebe que a Estação Internacional não lhe chega. Começa uma batalha desesperada pela sobrevivência. Uma das espécies não vai sair bem disto.
É claro que “Life” é quase uma imitação de “Alien” (embora o organismo me pareça antes o monstro de “Stranger Things”) mas não lhe faltam méritos próprios e uma maior simplicidade. Eu roí as unhas do princípio ao fim. Não estava nada à espera de um filme tão bom. A crítica tem sido feroz (porque, lá está, é quase o “Alien”) mas eu gostei e recomendo aos apreciadores de ficção científica de terror. Até recomendo mais aos apreciadores de terror do que aos de ficção científica, porque terror não falta.

15 em 20

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Nadie Quiere La Noche / Nobody Wants the Night / Ninguém Quer a Noite (2015)

Poucos filmes têm um título tão desastrado. Resultado de uma produção espanhola, belga e búlgara, o título original é “Nadie Quiere La Noche”, mas já vi traduzido para “Nobody Wants The Night” e até “Endless Night”. O título português segue o original: “Ninguém Quer a Noite”.
Isto é o perfeito exemplo de um título mal pensado, até porque não nos diz nada da história. Parece mais um filme sobre prostitutas e é o suficiente para afastar potenciais interessados. Mesmo no contexto do filme, em que a frase é efectivamente proferida, é um diálogo forçado e bizarro, algo que ninguém diria naquela situação. Começa mal.
Mas o filme é melhor do que o título e merece atenção. Esta é a história de duas mulheres sozinhas nos rigores do Árctico, a lembrar a série “The Terror”.
Josephine Peary, mulher do explorador americano Robert Peary, que alegou ter sido o primeiro a alcançar o Pólo Norte em termos geográficos, é também uma aventureira e acompanhou o marido em diversas expedições ao Árctico. Em 1908 não o acompanhou desde o início, facto que nunca é explicado. Josephine diz apenas que o seu casamento de vinte anos se baseia na busca pelo Pólo Norte (inclusivamente, ela deu à luz durante uma dessas expedições) e que, desta vez, porque tem a certeza de que ele vai conseguir o objectivo, tem de estar lá com ele.
Para tal, Josephine paga uma mini-expedição que a leve a um posto seguro muito longe da civilização, uma cabana de madeira, quando já é Julho (quase inverno em termos polares). Tal como em “The Terror”, Josephine manifesta toda a arrogância da classe alta da altura. Começa logo por matar a tiro um urso polar, com todo o orgulho e petulância, como se estivesse numa caçada na terra dela. Não quer ouvir os conselhos de que já é tarde para partir. Faz-se acompanhar de baús com roupas caras, talheres, pratos de porcelana e copos de vidro. Igualmente como em “The Terror”, o racismo e o antropocentrismo impregnam as mentalidades da época. A morte de um esquimó durante uma expedição era considerada irrelevante. Os cães não eram permitidos dentro de tendas ou cabanas, o que é um erro colossal porque os animais contribuem para o calor. Por outro lado, compreende-se esta última questão, uma vez que os cães eram vistos como fornecedores de outras comodidades…
Josephine, segundo o espírito dos tempos, força tudo e todos a atravessar um estreito de gelo movediço (onde perde o melhor guia que tem) até encontrar a pequena cabana. O seu objectivo é esperar pelo marido antes do inverno polar. Mas é demasiado tarde, como todos lhe disseram, e ele não vem. A única Inuíte que não a abandona é uma rapariga chamada Allaka, que, Josephine vem a descobrir depois, espera um filho precisamente do marido de Josephine.
Na falsa segurança da sua cabana de verão de paredes finas e janelas de vidro, embora os recursos estejam a escassear e já não haja caça, Josephine dá-se ao luxo de recusar a carne de morsa crua oferecida por Allaka. Faz mal, porque assim que chega o inverno polar, a tal noite sem fim, Josephine começa a sofrer de escorbuto. Uma tempestade de neve com fortes rajadas de vento destrói completamente a cabana e Josephine não tem outro remédio senão abrigar-se dentro do iglu de Allaka, a única estrutura que resiste.
A comida acabou-se e receei que se seguisse o canibalismo. Tal não chegou a acontecer, mas por muito pouco.
Esta é a história da amizade improvável entre duas mulheres em condições extremas, onde apenas importa a sobrevivência por todos os meios. Duas mulheres que se colocaram propositadamente naquela situação: uma por arrogância, outra por fatalismo. O Árctico não respeita motivações, nem berço ou dinheiro, nem os nativos da terra, nem sequer os animais. Como se diria em “O Terror”: este sítio quer ver-nos mortos.
Aconselho este filme a toda a gente, apesar de poder e dever ser chocante.

15 em 20

 

domingo, 10 de dezembro de 2023

The Haunting of Hill House (2018)


“The Haunting of Hill House” é uma série baseada no romance homónimo de Shirley Jackson de 1959. Seria difícil não gostar da série porque “The Haunting” é um dos meus filmes de terror preferidos de todos os tempos (o de 1963, não o de 1999 que não interessa nada). Não li o livro e não consigo avaliar qual é a melhor adaptação, mas deduzo que a narrativa televisiva não possa ser igual à cinematográfica.
Na verdade a série devia antes chamar-se “The Hauting of the Family Crain” porque a assombração persegue esta família durante décadas. Um dos personagens até diz que “a casa considera a família uma refeição inacabada” (ipsis verbis).
A acção passa-se no início dos anos 90, mas todo o ambiente foi pensado para dar uma ideia de intemporaralidade: podia ser nos anos 60, 70 ou 80. A família Crain compra a Mansão de Hill House, na sequência da morte da última herdeira dos Hill, no intuito de a reabilitar e voltar a vender o mais depressa possível para poderem então construir a casa dos seus sonhos. Nunca é dito mas está implícito que Olivia Crain, a mãe, é arquitecta (foi ela quem desenhou esta casa de sonho) e que Hugh, o pai, é o mestre-de-obras. Os Crain têm cinco filhos: Steve, Shirley, Theodora, e os gémeos Nell e Luke. (Só isto é um terror: cinco filhos!) A casa tem uns 100 anos e foi construída à vontade dos Hill a imitar um edifício vitoriano, algo entre um castelo e uma abadia, um verdadeiro horror estético de estilos e gostos duvidosos por dentro e por fora. Mas a casa é grande, espaçosa, ideal para uma família abastada com apetência por residências retro e uma grande sala de bailes, por isso os Crain pretendem passar lá apenas uns dois meses para a remodelar e pôr no mercado. Estes planos vão por água abaixo quando Hugh descobre um problema de bolor negro desde o terceiro andar até à cave (bem-vindos ao meu inferno, família Crain).
Hugh não desiste (até porque empatou todo o dinheiro na casa), mesmo quando coisas suspeitas começam a acontecer. Nell e Luke queixam-se de ser assombrados durante a noite mas ninguém os leva a sério. Mais grave ainda, Olivia começa a agir de forma estranha e a ter enxaquecas e sonhos muito vívidos em que fala com antigos habitantes da casa.
Quem se lembra de “The Haunting” de 1963 vai reconhecer alguns elementos que fizeram deste um grande filme de terror e que têm sido inclusivamente utilizados em filmes posteriores:
O casal Dudley, os caseiros que vivem na extremidade da propriedade e se recusam terminantemente a permanecer na casa de noite. É Clara Dudley quem diz, e repete, o aviso que ninguém ali deve ficar “in the night, in the dark” que nos arrepiou em “The Haunting”.
Os cães a ladrar que os miúdos ouvem à noite mas nunca se vêem.
A escadaria de ferro forjado em espiral na biblioteca.
As pancadas nas paredes e nas portas.
A cena em que alguém aperta a mão de uma das irmãs adormecida, que esta julga ser a irmã mais nova, mas não está ninguém na cama.
O berçário, chamado em “The Haunting” “o coração da casa” e aqui apelidado antes de “estômago” – bem apanhado!
A intenção, desta vez expressa pelo pai, de queimar a casa e salgar o terreno.

Todas estas passagens se encontram em “The Haunting”, mas “The Haunting of Hill House” não é apenas uma série de terror com assombrações e sustos e quem esperar isso vai ficar desapontado. Pelo contrário, existe uma componente dramática muito forte que me recorda outra grande série, “Six Feet Under” (se não viram deviam ver urgentemente!), sobre os problemas de uma família dona de uma agência funerária (uma das irmãs, Shirley, também é agente mortuária). E se há drama nesta família! Olivia, a mãe, suicidou-se em Hill House, atirando-se do patamar superior das icónicas escadas de ferro. O pai, Hugh, nunca quis explicar exactamente o sucedido, embora tenha perdido a custódia das crianças que cresceram com a tia materna. Steve julga que a mãe enlouqueceu e que o pai é culpado de não lhe ter prestado os cuidados devidos. Shirley tornou-se uma controladora ao extremo. Theodora tem o dom de captar vibrações sobrenaturais com o toque e anda sempre de luvas para o evitar. Luke tornou-se toxicodependente. Nell também tem problemas psicológicos, terrores nocturnos e provavelmente stress pós-traumático. Tudo remete para a casa embora ninguém lá more há mais de 20 anos. Hill House continua a assombrar os Crain, apesar das vidas normais que eles tentam levar. Como disse o pai, “uma refeição inacabada”.
A primeira a sucumbir ao apelo da casa é Nell, que se “suicida” nas escadas de ferro da mansão abandonada e vazia. (Peço desculpa pelo spoiler, mas é o que provoca todo o desenlace; ademais, acontece logo nos primeiros episódios e não é exactamente um suicídio…) Gosto tanto do drama desta série que um dos meus episódios preferidos é quando toda a família se junta para o velório e tem uma discussão “das antigas”, com toda a gente a apontar as culpas uns dos outros, a falar nas costas uns dos outros, a atirar à cara quanto dinheiro uns devem aos outros, etc, tudo sem qualquer necessidade de assombrações. É delicioso.
Mas isto é “The Haunting of Hill House” e não fica por aqui, evidentemente. O terror está apenas a começar.
A série tem as incontornáveis influências de clássicos como “Amityville” (o original) e “The Shining”, embora neste último caso seja mais ao contrário (Stephen King chegou a escrever sobre o livro de Shirley Jackson).
Não posso revelar qual é a verdadeira assombração da casa, mas começa tudo com um quarto fechado que ninguém consegue abrir. É de arrepiar os ossinhos. Adorei o puxador em forma de leão e o efeito especial dos créditos de abertura.
Curiosamente, tal como em “American Horror Story: Hotel”, quem morre na casa fica lá para sempre como fantasma. Algumas pessoas, por vários motivos, decidem morrer na casa de propósito por essa razão. Pergunto-me se a ideia também está no livro original? Tenciono ler o mais depressa possível. “The Haunting of Hill House” é uma série a não perder pelos amantes de terror.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes

PARA QUEM GOSTA DE: Six Feet Under, Amityville, The Shining, casas assombradas

 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

The Dead Don't Die / Os Mortos Não Morrem (2019)


Comecei a ver “The Dead Don't Die” no canal SyFy à espera de uma comédia com zombies que não me fizesse pensar, e muito menos escrever uma crítica porque já tenho muitas para publicar e dão trabalho. Saiu-me um filme satírico de Jim Jarmusch, o mesmo realizador do excelente “Only Lovers Left Alive”, com cameos de Tom Waits e Iggy Pop e um enredo a puxar para o surrealista. Não é todos os dias que isto acontece!
Na pacata cidade de Centerville, “a real nice place” como diz o cartaz de boas-vindas, coisas estranhas começam a acontecer. Devido ao fracturamento hidráulico nas regiões polares em busca de gás natural, também conhecido por fracking, as notícias informam que a Terra saiu do seu eixo. Os dias estão mais longos, as noites caem subitamente. Todos os animais domésticos desapareceram dos donos. Até os animais de quinta, como galinhas e vacas, fugiram para a floresta.
A terrinha tem três polícias, e o mais novo observa os acontecimentos e diz umas três vezes “isto não vai acabar bem”.
De facto, os mortos começam a levantar-se do cemitério, mas não querem apenas comer os vivos. Continuam a desejar aquilo que mais ambicionavam em vida: os miúdos que morreram há mais tempo querem doces e brinquedos, alguns zombies do sexo masculino cercam a loja de ferragens, uma rapariga zombie quer ser modelo, alguns zombies mais jovens andam com um telemóvel na mão a murmurar “wi-fi, wi-fi”. O que não quer dizer que não comam os vivos quando os apanham; é que têm outras prioridades. Lembram-me os zombies músicos do coreto de “Land of the Dead”, que apesar de zombies continuavam a tentar tocar os instrumentos (muito mal, mas tentavam). Este sim, “Land of the Dead”, tem aspectos muito cómicos e satíricos. Já não foi isso que senti com “The Dead Don't Die”, apesar de o filme se assemelhar em temáticas e inclusivamente quebrar a quarta parede (termo usado no teatro quando os actores se dirigem directamente ao público) na minha opinião sem necessidade e sem o pretendido efeito cómico, o que ainda é pior.
Além desta homenagem a George Romero, noto aqui também vibrações de “Fargo” (os polícias da cidade em que nada acontece que se deparam com um apocalipse zombie que não têm capacidade de enfrentar). Mais do que apenas “vibrações, na verdade, já que o actor de “Fargo” Steve Buscemi (o da trituradora, lembram-se?) entra neste filme. Já a cangalheira-samurai Zelda (Tilda Swinton, a vampira de “Only Lovers Left Alive”) foi muito desaproveitada e sinceramente não percebi o que é que o realizador quis dizer com aquilo.
Já que é um filme sério, vamos falar a sério. O problema foi mesmo esse. Não percebi porque é que Jim Jarmusch, em 2019, achou relevante fazer um filme de zombies como metáfora da sociedade consumista, algo que Romero e os outros todos andam a fazer desde os anos 70 ou 60 (se contarmos o primeiro “Night of the Living Dead”, embora eu não o considere exactamente sobre consumismo). Jarmusch vai ao ponto de pôr Tom Waits a verbalizar “eles já estavam todos mortos”, como se a gente ainda não tivesse percebido. Não encontrei aqui um rasgo de originalidade que pudesse granjear pontinhos ao realizador, por muito que o procurasse. Nem consegui achar piada, o que é mais grave numa comédia. Penso que Jarmusch queria realmente fazer algo único que nunca saiu do papel. Mesmo assim, recomendo a todos os amantes de zombies.

14 em 20

domingo, 3 de dezembro de 2023

Regression / Regressão (2015)

O Mal existe e o Diabo tem as costas largas.
Uma rapariga de 17 anos acusa o pai de abuso sexual, no que parece um caso vulgaríssimo. O pai assume a culpa, garantindo que a filha Angela “nunca mente”, mas ao mesmo tempo diz não se lembrar de nada. É chamado um psicólogo que tenta entrevistá-lo através de um método chamado regressão. Subitamente, tanto o pai, como o irmão da rapariga, que há muito saiu de casa, começam a recordar pormenores de rituais satânicos que incluem missas negras, mutilação, ameaças de morte, sacrifício de animais e bebés e até canibalismo.
O caso chega aos media e o pânico instala-se na sociedade. Pior que isso, o medo alastra também aos polícias encarregues do caso. O próprio detective principal, Bruce Kenner, começa a ter pesadelos vívidos com missas negras e rituais e decide usar sempre uma cruz e rezar, apesar do seu agnosticismo. Ao mesmo tempo, também ele começa a sentir-se vigiado por cidadãos sinistros que o olham fixamente em todo o lado, e recebe chamadas a meio da noite em que ninguém fala. Tudo isto o convence de que está realmente perante uma rede de cultos satânicos e que tanto ele como Angela correm risco de vida. A avó de Angela, por exemplo, que também não se lembra de ter participado em qualquer ritual, acaba por ficar tão convencida de ter sacrificado um bebé (como Angela diz que ela fez) que se atira da janela de casa.
O que me custa a acreditar é que este filme tenha sido realizado por Alejandro Amenábar, o mesmo realizador de “The Others”, um dos melhores filmes que já vi na vida. Se não tivesse lido, não acreditava. “The Others” é tenso e arrepiante do princípio ao fim, e mantém-nos no mistério até o decidir revelar. Nicole Kidman faz um dos melhores papéis da sua carreira, mas não vou culpar os actores pelo desastre que é “Regression”. Não, vou culpar mesmo a realização. Lamento, mas descobri tudo a meio do filme, numa cena que não vou mencionar para não cometer spoilers. A partir daí, seguiu-se apenas a confirmação das minhas suspeitas, ainda o detective andava a caçar diabos. O que me espanta mais é que é um filme de 2015, em que os espectadores (principalmente os espectadores deste género thriller / suspense) já não vão em qualquer cantiga ou sugestão.
Decepcionante é dizer pouco.

13 em 20