domingo, 7 de julho de 2024

Interview With The Vampire (série TV, 2022 - ?)

Toda a gente que lê este blog há alguns anos sabe que sou uma FANÁTICA das Vampire Chronicles. Li todos os livros pelo menos duas vezes (excepto o último), vi os dois filmes várias vezes. Há cerca de 15 anos que ouvi falar na produção de “Interview With The Vampire” numa série televisiva e não podia ter ficado mais entusiasmada: finalmente íamos ver a história COMPLETA, com todos os PORMENORES dos livros que fascinaram milhões de fãs em todo o mundo. Falo dos verdadeiros fãs, não daquelas pessoas que viram um filme ou dois e não sabem mais nada da história.
Da mesma forma, não podia ter ficado mais decepcionada, abismada, irritada com a série de que falo aqui e que pode ser tudo menos “Entrevista Com o Vampiro”. Isto não é uma adaptação, isto é fan fic. O que me leva a maior desapontamento ainda com Anne Rice, que sendo produtora executiva teve forçosamente de aprovar todas as alterações. Para quem não sabe, Anne Rice sempre foi contra toda a produção de fan fic (ficção escrita por fãs) do seu trabalho, alegando que deturpavam a história. Mas aparentemente se há dinheiro envolvido já não existe “deturpação”.
O outro problema é: porquê? Porque é que se criou todo um enredo alternativo às Vampire Chronicles quando o original é tão bom e nunca foi adaptado como só uma série de televisão permitiria? Porque é que se quis desiludir milhares de fãs com uma história inferior que atenta contra os elementos mais importantes do original?

Louis de Pointe du Lac
A história começa em 1910. (Porquê, mãezinha, porquê? Porque é que tivemos de perder todo o encanto do século XIX, o século do vampiro?)
Aqui, Louis de Pointe du Lac é crioulo e um proxeneta (dono de bares, casas de prostituição e actividades ilegais em geral). Um Louis crioulo podia ser uma boa ideia, mas a própria questão da raça (incluída por motivos de “diversidade”, algo que nunca teve qualquer relevância no original) coloca contradições gritantes. É Louis quem nos diz que as ruas mal-afamadas de New Orleans eram o único lugar onde um negro podia ser alguém. Por outro lado, o pai dele era dono de uma plantação de açúcar (como no original) que faliu. A família de Louis (mãe, irmã e irmão) é negra e rica. E o pai? Seria branco? Poder-se-á sequer imaginar historicamente que uma família negra pudesse ser dona de uma plantação na Louisiana da altura? * É Louis quem nos diz: não. Então como é que é possível? Mais valia terem retirado completamente a parte da plantação e as coisas faziam mais sentido: Louis de Pointe du Lac, proxeneta, ponto final. (O verdadeiro Louis de Pointe du Lac deve andar às voltas no caixão. Nunca tal criatura sombria e depressiva podia alguma vez estar ligado a negócios de prazer. Aliás, foi esse desprazer com a vida que atraiu Lestat.)
* No segundo visionamento, notei que Louis diz isto sobre a plantação: “Capital acumulado de plantações de açúcar e o sangue de homens que se pareciam com meu bisavô, mas não tinham a sua posição”. Então, a plantação passou para descendentes de escravos? Considerando que seria possível, mesmo assim não invalida a contradição: “as ruas mal-afamadas de New Orleans eram o único lugar onde um negro podia ser alguém”.
Peço desculpa, eu disse que a história começa em 1910. Referia-me ao ano em que Louis conhece Lestat. A série começa nos nossos dias, num dos anos da pandemia, quando Louis, agora instalado no Dubai, convida o jornalista veterano Daniel Molloy para lhe dar uma segunda entrevista 50 anos depois da primeira. Daniel Molloy, que no original também foi transformado em vampiro, está muito mais velho e cínico e sofre de Parkinson. (Esta alteração, por exemplo, não me incomoda muito porque Daniel Molloy nunca foi importante para a história em geral.) Louis, ao que parece, quer corrigir o que disse há 50 anos porque também está mais velho e… mais sábio? Porque mudou de ideias? Porque quer comer Daniel Molloy depois da entrevista? Eu também não sei. A certa altura ambos queimam as gravações em cassete da primeira entrevista, o que não podia ser mais simbólico do que estão a fazer ao trabalho de Anne Rice (com o consentimento da própria). Então este Louis (recuso-me a considerá-lo o “verdadeiro”) começa a contar a história de como era libertino e de como se assumiu como homossexual quando fez sexo com um homem (Lestat). Ui! Isto é mesmo pôr no lixo todos os livros das Vampire Chronicles e deitar-lhes fogo.
Os vampiros de Anne Rice não fazem sexo. O que não quer dizer que não se envolvam em actividades sexuais, mas o êxtase está todo no sangue. Isto não é uma nota de rodapé e não é um pormenor, faz parte da identidade do vampiro de Anne Rice: a imortalidade vem com o preço da perda do prazer sexual, mas o êxtase do sangue supera-o sobremaneira.
Em certos casos, nas Chronicles, alguns vampiros envolvem-se em actividades sexuais com outros vampiros e mortais, o que é sempre representado como uma união profunda, rara, de amor platónico e transcendente, de uma tentativa de voltar a sentir vida. Por exemplo, Lestat e Rowan em “Blood Canticle”. (E sim, temos muitos pormenores bastante explícitos de como estas relações ocorrem, do princípio ao fim. Anne Rice nunca foi exactamente uma púdica.) Transformar isto no mais comezinho da experiência humana é retirar aos vampiros de Anne Rice tudo o que os torna seres únicos e fascinantes, para sempre afastados da humanidade perdida mas nostálgicos por ela, imortais mas amaldiçoados pelo peso da eternidade.
Aliás, a homossexualidade nunca foi escondida nas Chronicles, bem pelo contrário. Muitos vampiros, entre eles Lestat e Marius, assumem-se como bissexuais com todas as letras. Mas Louis nunca o fez e nada nos deu a entender que a sua relação com Lestat não fosse puramente platónica (até ao momento em que Louis o começou a odiar, isto é). A série põe Lestat e Louis a dormirem no mesmo caixão como qualquer casal gay. Isto sim, é fan fic da pior, como certos desenhos que circulam online e que quase me fazem dar razão a Anne Rice quanto à imaginação púbere dos fãs.

Lestat de Lioncourt
Falando no diabo, Lestat é a única personagem que escapa mais ou menos incólume às abominações do enredo. Sam Reid, o actor, consegue personificar o demónio de cabelos loiros como toda a gente o conhece, apesar de o quererem remeter ao papel de marido rabugento que não tem sexo em casa e vai ter com uma amante quando Louis não lhe liga. Isto também é problemático. Lestat nunca se envolve com uma qualquer só pelo sexo. Como no caso de Rowan, o que o atrai a alguns humanos que ele considera extraordinários é um profundo respeito, fascínio e admiração em que o vampiro dá prazer em troca de sangue (ou, no caso contrário, acontecem coisas desagradáveis como em “The Tale of The Body Thief”). Geralmente a amada ou amado são transformados em vampiros também. Não me parece que ele tenha esse respeito imenso pela cantora com que se envolve nesta série.

Claudia
Claudia não é a criança-vampiro de causar pesadelos. É uma miúda de 14 anos, mais ou menos a idade de Armand quando foi transformado. No entanto, com a chegada de Claudia a série começa finalmente a assemelhar-se à dinâmica do original, pelo menos durante uns episódios. Quando a primeira temporada termina, Claudia ainda está viva e o mundo está em plena Segunda Guerra Mundial. Já não são tempos de um Théâtre des Vampires, uma das melhores passagens do livro e do filme. Isto significará que Claudia não morre de todo, o que foi o momento mais dramático e o ponto de não retorno entre Louis e Lestat, já para não falar em Armand? Por outro lado, nesta versão, Armand já não teria razões para destruir Claudia por ser “contra as regras, demasiado nova e dependente para ser um vampiro”. Esta Claudia é bastante auto-suficiente e passa bem por adulta com o vestuário e a maquilhagem apropriada. Aliás, a certa altura ela zanga-se com os “pais” e foge de casa. Nas suas peripécias, conhece outro vampiro de quem se torna amiga e que, tudo dá a entender, a viola de seguida. NÃO! Vampiros não violam vampiros (nem sequer humanos). Primeiro, NÃO CONSEGUEM e não têm prazer sexual. Segundo, a única coisa que lhes interessa noutro vampiro é talvez a amizade, a partilha de um sangue mais potente (como em “Queen of The Damned”), ou a aniquilação do outro por causa do “território de caça”. Obviamente esta gente não leu as Vampire Chonicles e Anne Rice concordou em destruir toda a obra de uma vida. É triste.
Sinceramente, não sei o que estou a ver mas não é “Entrevista Com o Vampiro” de certeza. Pelo menos falaram em Nicholas e Magnus, muito de passagem. Foi pena não terem seguido os livros. Eu teria querido ver o Lestat humano preso na torre, o jovem actor Lestat, e todos os vampiros e vampiras que existiram muito antes de Louis aparecer em cena. O que não queria nada ver era esta abominação. Estou a torcer para que a segunda temporada leve com uma estaca no coração e não apareça à luz do dia. Os verdadeiros fãs fazem melhor em ver o filme do Tom Cruise e do Brad Pitt outra vez.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: NUNCA!

PARA QUEM NÃO GOSTA DE: Anne Rice, The Vampire Chronicles, O Vampiro Lestat, o Vampiro Armand, etc, etc


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