domingo, 27 de fevereiro de 2022

The Golem / A Lenda de Golem (2018)

No século XVII, uma pequena aldeia judaica, isolada e auto-suficiente, escapa a um surto de peste. Os vizinhos acusam os judeus de causarem a peste com “feitiços”. Um dos lordes da região, com uma filha às portas da morte, ameaça-os de que os matará todos se não lhe curarem a filha.
Hanna, uma das mulheres da aldeia que estuda a Cabala em segredo, conjura um Golem do pó da terra com o objectivo de este os proteger. É um mito do judaísmo que a Cabala conteria o segredo com que Deus criou Adão do barro. O que o Golem não possui, no entanto, é uma alma, e só obedece à ama que o criou.
A princípio o plano resulta. O Golem conjurado tem uma aparência de rapazinho como o filho de Hanna que morreu nessa idade. E é tão mortífero que consegue manter a aldeia em segurança da ameaça. Mas depressa o Golem se vira também contra todos os que fazem Hanna sofrer, quer ela queira quer não.
Avisada para destruir a criatura, Hanna forma com ele um laço maternal tão forte que tudo acaba por ir longe demais.
Mais do que um filme de terror, eu diria que “A Lenda de Golem” é um drama interessante com elementos fantásticos, ou lendários, do folclore judaico, e uma pitada do mito de Frankenstein: não cabe ao Homem fazer de Deus.

15 em 20

 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Música gótica − origens − presente − futuro


Ao longo do tempo, durante a existência do blog Gotika, muita gente me perguntou o que é a música gótica. Também vou dar um link para esclarecer todas as dúvidas, mas antes vamos falar dos precursores da música a que, no período pós-punk, se começou a chamar gótica.
Vem de longe, de muito mais longe do que se pode pensar. Durante o período pandémico e o lockdown, o DJ Cyberpagan foi um dos DJs que começaram a emitir streams no Twitch (para nosso deleite). Este stream que vos trago aqui é uma obra de mestre, reunindo todas ou quase todas as influências que, em conjunto, se cristalizaram mais tarde em algo diferente do punk, entre a vanguarda de uns Bauhaus e a melancolia de uns Joy Division, só para citar alguns dos pioneiros. Esta é uma playlist para conhecedores e amantes do gótico que me surpreendeu por ser tão completa (não me consigo lembrar de uma influência que não esteja aqui representada). Para ouvir, descobrir e reflectir, AQUI.

Mas a partir de agora, quando alguém me perguntar o que é “música gótica”, vou responder com este outro stream da DJ Mortasha Kinski, gótico tradicional que cobre muitos dos grandes em duas horas (fantástico!), e não me perguntem mais vez nenhuma.
AQUI

Mas o gótico não acabou nos anos 80, longe disso. A pandemia teve o efeito positivo de impulsionar uma comunidade internacional no Twitch. Todos em casa e todos juntos, unidos pelo prazer da nossa música.
Passados alguns meses a explorar e descobrir, decidi partilhar os meus streams góticos preferidos, onde se ouve o que de melhor se faz na cena actual (gótica e afins, porque sempre foram os góticos a decidir qual era a música que queriam ouvir, e não o contrário, e quem não compreende isto não compreende nada do movimento). O gótico está muito vivo e em permanente evolução.
Aqui estão os meus preferidos. Espero ver-vos por lá.
Em primeiro lugar quero destacar o único DJ português que emite gótico no Twitch (que eu saiba, e geralmente acompanhado pelo DJ Exploding Boy):


Undead Decadance Party
www.twitch.tv/undead_decadance_party
Descrição: post punk, alternative 80s, goth, darkwave, electro
Festa ocasional. Bandas portuguesas actuais.

DJ Exploding Boy e Dj Yggdrasil

Feita a distinção do DJ da casa, seguem-se, em ordem alfabética:

DJ Acidbitter
www.twitch.tv/acidbitter
Descrição: dark alternative music, goth, post-punk, darkwave, industrial, EBM, synthpop, coldwave, ethereal, shoegaze, dark folk, neoclassical, etc
Este é um stream virado para as novidades que privilegia o vídeo, embora passe clássicos com frequência. O ambiente é bem-humorado e descontraído.




DJ Cyberpagan
www.twitch.tv/dj_cyberpagan
Descrição: goth, death rock, post punk, new & (c)old wave, indie
Assistir a um stream do DJ Cyberpagan pode ter a solenidade de uma aula universitária. Pode ser bastante obscuro, podemos não conhecer a maioria das bandas, mas aprendemos sempre alguma coisa. Até hoje, ainda não aconteceu eu não conhecer uma única banda tocada, mas esteve perto. Aconselho a melómanos que querem descobrir música recente e que não têm medo dos “lados B”. Não aconselho a iniciantes.

 

DJ Cyberpagan e a sua gata Pavučina


Dead Souls Gothic Lounge
www.twitch.tv/dead_souls_gothic_lounge
Descrição: goth rock, darkwave, post punk, industrial, coldwave, minimal synth, death rock, ethereal, neoclassical, shoegaze, witch house, dark 80s and 90s
Possivelmente o stream onde se pode ouvir o gótico / alternativo / etéreo / neoclássico mais obscuro que existe, com tendência igual para as novidades. Não é o único stream que passa post punk sul-americano (incluindo brasileiro) mas é o único onde se passa Mão Morta! Clássicos são raros, e grandes hits muito menos. Recomendo a quem já tenha um bom conhecimento do tipo de música. Não recomendo a iniciantes.


 
Dead Souls Gothic Lounge: DJ Naggaroth e o seu gato Phantom

 

DJ Miz Margo
www.twitch.tv/djmizmargo
Descrição: proto-goth, goth, death rock, dark punk, classic industrial, grave wave, batcave, gothabilly, etc
Miz Margo é uma experiência 100% gótica, quer passe as bandas mais recentes ou os clássicos. Quem gosta de Sisters of Mercy, Fields of the Nephilim, Mission, Christian Death, Cure, Bauhaus, Joy Division, Dead Can Dance, Siouxsie, e os outros todos, é aqui que deve ir primeiro e não será desapontado. Mas conte-se com bandas menos conhecidas e muita música nova.

DJ Miz Margo e o seu gato Squeeks


DJ Mortasha Kinski
www.twitch.tv/mortasha_kinski
Descrição: early 80s, new romantic, post-punk, goth, old industrial and dark wave
Mortasha Kinski passa vários géneros, mas escusado será dizer que prefiro os streams sobretudo inclinados para o gótico e anos 80. Para comprovar, nada como ouvir o link acima.

DJ Mortasha Kinski e o seu morcego (de peluche) Batty

 

The New Order Melb
www.twitch.tv/thenewordermelb
Descrição: gothic, post punk, new wave, industrial, death rock, alternative, dark electronic, the rest
Como o nome indica, este é um stream australiano onde o mundo vai acabar a noite, sábado de manhã, devido à diferença horária. Além do gótico puro e duro e das bandas mais recentes, The New Order Melb faz muitos especiais e tem sempre muitas surpresas. É essencialmente um stream divertido, descontraído e descarado, para os DJs e para nós. A melhor maneira de acabar a sexta-feira ou de começar o fim de semana.

The New Order Melb: DJ Wolf, DJ Anarki e DJ Eris


Xiled Radio
www.twitch.tv/xiledradio
Descrição: industrial, techno, powernoise, goth, shoegaze, synthpop, post-punk, ethereal, IDM, dark ambient, pagan folk, etc
Este é um stream virado sobretudo para novidades onde eu vou para ser desafiada, para ser exposta a música de que geralmente não gosto particularmente tirando alguns temas aqui e ali. O objectivo, como melómana que sou, é conhecer música nova e fora da minha “zona de conforto”, mas bastante dentro do espectro da música alternativa. O stream é muito relaxante e descontraído. 


Xiled Radio e o seu gato Ben


Estes são apenas os meus streams preferidos. Há muitos mais que eu sigo ocasionalmente e mesmo regularmente, e uma infinidade deles dentro do gótico e do alternativo em geral. Os streams de música foram o melhor que aconteceu durante a pandemia e são o sítio ideal onde descobrir música nova para quem não se contenta com os clássicos.


domingo, 20 de fevereiro de 2022

The Witcher (2019 - ?)


Eu queria muito gostar desta série. Uma mistura de “Sobrenatural” com “Guerra dos Tronos” e “Senhor dos Anéis”, como é que é possível não gostar? Eu também pensei assim, mas infelizmente fiquei decepcionada. E é mesmo infelizmente, porque os cenários, o world building, o guarda-roupa, tudo isso é grandioso e efectivamente enche o olho. Mas “The Witcher” lembra-me aquelas pessoas muito atraentes (muito bonitas, muito estilo) que depois não têm nada na cabeça. Uma vez disse aqui que “The Man in the High Castle” podia ser visto só pelos cenários, embora não seja o caso, e após duas temporadas de “The Witcher” chego à conclusão de que este é mesmo o caso. Para entreter e encher o olho, mas falta o fundamental: personagens cativantes.
A série é o meu primeiro contacto com o mundo Witcher. Não li os livros, não joguei os jogos. A história começa com as aventuras do caçador de monstros Geralt of Rivia, o tal Witcher. (Sam e Dean Winchester iriam adorá-lo: que pena que “Sobrenatural tenha acabado porque daria belas piadas.) Geralt of Rivia faz parte de uma espécie (a que chamam mutante) de caçadores de monstros possuidores de alguma magia que vendem os seus serviços. Ao mesmo tempo, em paralelo, o reino de Cintra é invadido e destruído por um exército inimigo, e a jovem princesa herdeira Ciri é a única a escapar. Sozinha e perseguida, é-lhe dito que tem de encontrar Geralt of Rivia para a proteger. Ficamos depois a saber que Geralt tem um dever antigo para com ela, e é assim que os dois se encontram um ao outro. Em resumo, as duas primeiras temporadas são isto. Porque é que são só isto? Porque a série segue um tipo de estrutura de monstro-da-semana que, na minha opinião, não se ajusta muito bem ao género Fantasia e só serve para atrasar a história, especialmente quando temos um mundo completamente novo a ser explicado e uma intriga política ao nível de “Guerra dos Tronos”. Ou, pelo menos, não resultou aqui pelas razões que vou apontar.
O grande problema foi mesmo esse. Dificuldade em explicar o mundo de forma natural. A cada episódio temos mais um info dump, e mais outro, e mais outro. Meia dúzia de episódios depois eu já tinha perdido o fio à meada. Para complicar ainda mais, nos primeiros três ou quatro episódios a linha temporal e espacial não se percebe, o que causa alguma perplexidade e ainda deixa o espectador mais confuso e incapaz de acompanhar o que está a acontecer, quanto mais a história de cada reino e quem são as catadupas de personagens novas que aparecem em cada episódio. Para exemplificar, no primeiro episódio Geralt chega a uma aldeia (ou vila ou cidade?) para tratar dos assuntos dele. Nas cenas seguintes, assistimos ao que se passa na corte de Cintra antes da destruição. Como nada nos diz o contrário, e como o espectador, ao contrário de todas as personagens nesta série, não é bruxo nem adivinho nem tem poderes mágicos, parte-se do princípio de que isto se está a passar ao mesmo tempo e no mesmo sítio. Isto é, que Geralt se encontra em Cintra. Este equívoco permanece durante mais dois ou três episódios, e, embora se comece a suspeitar, só temos efectivamente a certeza de que as coisas se passam em linhas temporais diferentes quando Cintra é destruída e Geralt, afinal, não está lá. Ou seja, os episódios iniciais são consumidos nesta incerteza, e entretanto o espectador tem dificuldade em perceber as conversas sobre o passado porque nem imagina que são sobre o passado. Esta seria uma confusão fácil de evitar com uma simples legenda “há X anos atrás, em Cintra”. A partir daqui fiquei na dúvida sobre tudo o que estava a ver. Passado, presente, futuro? Não sei, não li os livros e não sou adivinha. Se não me disserem, não me ponho a especular. Entretanto, a cada episódio é despejado mais um balde de informação sobre outros sítios e pessoas do passado, e mais uma catadupa de personagens novas. Foi demais, e desisti de acompanhar.

Personagens bidimensionais
Este seria o momento de ver a série de novo para apanhar todos os pormenores que perdi, mas isso não vai acontecer porque não houve uma única personagem que me cativasse o suficiente. O que é o outro grande problema da série, e ainda mais grave. Os personagens são bidimensionais, quando não são unidimensionais, o que é difícil de conseguir.
Geralt of Rivia é um tipo durão, que se expressa por grunhidos e pela palavra “fuck”. Tentam dizer-nos que os Witchers não têm emoções, mas afinal têm e Geralt até é um homem decente. Aqui está a personagem: durão com bom coração, ponto final. Quando ele fala, não é brilhante. Aliás, todos os diálogos são fracos, básicos e previsíveis, com tentativas de piadas “inteligentes” ao nível de filme de acção reles. “The Outpost”, ao lado de “The Witcher”, é uma obra-prima nos diálogos e caracterização das personagens. Pelo menos conseguiu interessar-me por algumas logo na primeira temporada.
Ciri, a princesa em apuros, é apenas isso: a donzela em apuros. Nem tem idade para ser outra coisa, porque Ciri é quase uma criança. Depois de encontrar os Witchers, Ciri decide aprender a combater, porque, é claro que sim. O que dá início às aborrecidas cenas de treino que ninguém nunca quer ver. Mas, afinal, parece que Ciri até nem precisa de aprender a lutar, porque pelos vistos ela tem a magia mais poderosa de todas. Isto vai abrir o buracão negro chamado “personagem demasiado poderosa” que vence sempre e sem surpresas. Não é promissor.
Yennefer, uma rapariga de origens tristes que se tornou a maga mais poderosa lá do sitio, devia ter sido a personagem mais simpática de todas. Infelizmente, Yennefer só pensa em poder e é capaz de traição para o conseguir, o que anula toda a simpatia que se pudesse ter para com ela. Pior um pouco: quando tentaram dar-lhe alguma humanidade, não conseguiram. Na primeira temporada, Yennefer é capaz de tudo para ter um filho, uma vez que teve de abdicar do útero em troca de beleza. Na segunda temporada Yennefer esquece-se completamente disto, sem qualquer motivo que o justifique. Geralt pergunta-lhe simplesmente, “ainda queres ter um filho?”. “Não”, responde ela. Não?! WTF, então e a temporada anterior, Yennefer, já te esqueceste? Alguém esqueceu. Lá se foi o desenvolvimento de personagem por água abaixo.
Outras personagens são tão pálidas que quase não se vêem. Como os magos da tal estrutura de poder lá do reino, todos tão iguais que não os distingo. Todos com a mesma agenda, unidimensionais. Até o bardo Jaskier, que só pensa na fama (mas neste caso conseguimos perceber alguma evolução lá para o fim da segunda temporada).
Personagens egoístas, até mesmo detestáveis, são muito comuns na Fantasia Grim Dark, como é o caso, mas, como eu digo sempre, pelo menos dêem-me uma de que gostar. Não conseguiram.
Talvez acidentalmente, a única que me interessou minimamente foi um personagem secundário, Cahir, comandante do exército que ataca Cintra. Também ele só pensa no poder, mas por motivos religiosos. O homem é um fanático, capaz de morrer por uma causa. A causa pode não ser boa, mas o importante é que ele é sincero. Pode não ser uma personagem simpática, mas achei-o algo cativante e promissor, se o tivessem desenvolvido. Como é um personagem secundário, só o tivemos esporadicamente.

Demasiada magia
A nível da história propriamente dita, as partes que mais me entusiasmaram foram aquelas que reflectem a nossa realidade. Estes invasores lembram os cristãos do tempo das Cruzadas, que querem “conquistar para libertar” e levar a verdadeira religião aos ímpios (o que é sempre interessante de ver). A perseguição aos elfos lembra obviamente a perseguição aos judeus, com as pessoas que arriscam a vida para os esconder e transportar para segurança. (É aqui que a humanidade do bardo Jaskier finalmente brilha, o que só lhe fica bem).
De resto, o excesso de magia irritou-me. Toda a gente possui alguma forma de magia que lhe facilita a vida. Neste mundo não precisam de inventar nada porque a magia faz tudo. Não precisam de inventar a electricidade, porque põem tudo a funcionar com magia. Não precisam de inventar transportes, porque se teletransportam. Até o jantar aparece feito por magia. (Onde é que se arranja isto, que dava tanto jeito?) Já é magia a mais para o meu gosto e resolve muitos problemas de forma irrealista, o que ainda me faz empatizar menos com os personagens. É tudo demasiado fácil para eles.
E depois temos incoerências. Os elfos teriam sido os possuidores originais da magia e quem a ensinou aos humanos. Se são tão poderosos, porque é que não usam a magia quando são perseguidos? Porque é que não abrem portais e se teletransportam, se toda a gente o faz? Parece que a magia só existe quando é conveniente.

O bardo
Se a “Guerra dos Tronos” nos torturava com porno-tortura, “The Witcher” consegue torturar-nos com o bardo Jaskier. Foi doloroso passar pela experiência de o ouvir cantar. Não estou a exagerar, foi doloroso para os tímpanos. Nem sequer era possível passar à frente porque as canções acontecem ao mesmo tempo da acção: não há como escapar. Jaskier deve ter sido imaginado como personagem comic relief, mas a verdade é que não tem graça nenhuma e só irrita. Na segunda temporada, até algumas personagens começam a passar-se da cabeça quando ele canta, e isso foi de facto engraçado. Um carcereiro ameaça cortar-lhe a língua, e eu estava a pedir "sim, por favor, cala-me esse gajo". É insuportável. Não sei se o actor Joey Batey (Jaskier) canta mesmo assim tão mal ou se faz de propósito. Seja como for, há que dar-lhe os parabéns. Conseguiu dar vida a uma personagem que realmente me afecta, se bem que ao contrário do pretendido (?).
A única vez que Jaskier é engraçado é quando faz uma piada aos primeiros episódios de “The Witcher”, exactamente a tal coisa de a linha temporal não se perceber. Isto significa, pelo menos, que os criadores da série deram ouvidos às críticas. Nota-se realmente alguma evolução para melhor da primeira para a segunda temporada. Era bom que tivessem conseguido o mais importante, fazer-nos interessar pelas personagens. Comigo, falharam.
“The Witcher” foi interrompido por causa da pandemia. Sinceramente, e depois daquele episódio em que Ciri é possuída por um demónio, mais um monstro-da-semana e a história a arrastar os pés quando devia andar para a frente, não me importava nada que a série simplesmente acabasse aqui. Se voltar, vou assistir por causa dos cenários e do world building, que é deveras impressionante. Não espero nada do resto. Seria uma óptima surpresa estar enganada.
Se a série regressar e eu nunca mais escrever sobre ela, já sabem o que isso significa. Fuck.


domingo, 13 de fevereiro de 2022

In the Heart of the Sea / No Coração do Mar (2015)

O filme começa quando Herman Melville (futuro autor de “Moby Dick”) procura o último sobrevivente do estranho naufrágio de um baleeiro. O objectivo? Melville está obcecado pela baleia que terá afundado o navio, embora a versão oficial diga que o baleeiro encalhou. “Receio que se não escrever esta história nunca mais consiga escrever nada na vida, mas receio mais, se a escrever, não a conseguir escrever bem”, confessa o escritor ao antigo marinheiro, agora de idade avançada. Muito traumatizado, a princípio o sobrevivente recusa-se a falar do assunto. Só a pressão da esposa para que aceite as moedas que Melville oferece (e para que o marido finalmente desabafe) o faz finalmente contar.
“Não há nada de especial nesta história. É a história de dois homens”, relata o sobrevivente, que na altura da viagem malograda era ainda um rapaz de 14 anos.
A história que ele conta é a mais velha do mundo: um marinheiro experiente, mas de família humilde, julga que será desta vez que vai conseguir ser nomeado capitão, quando é ultrapassado por um novato de boas famílias. Uma história bastante conhecida, infelizmente, e que tem sempre os seus méritos quando é contada. Mas uma história vulgar quando de repente surge uma baleia branca de 30 metros que dá uma lição de humildade a quem se julgava amo e senhor da Natureza.
No século XIX, e o filme explica bem o contexto, o óleo de cachalote era necessário para tudo, desde a indústria à iluminação das ruas. Isto levou à caça excessiva que quase extinguiu o cachalote (e nós aqui fomos bem culpados).
Este filme lembra-me um pouco “The Terror” porque também é um conto de húbris, de arrogância e ganância perante a Natureza. Quando já não havia cachalotes nas águas conhecidas, o capitão do baleeiro aventurou-se pelas desconhecidas. Encontrou cachalotes, sim, e a baleia branca descomunal que atacou e afundou o barco. O filme não tentou dar à baleia sentimentos de “vingança” irrealistas, apenas reacção ao que já sabia ser um inimigo mortal. Toda ela foi arpoada muitas, muitas vezes, e escapou. É claro, eu estava a torcer pela baleia. Bem feita!
Os poucos sobreviventes têm de recorrer aos horrores dos náufragos, a “lei do mar”.
Gostei desta adaptação de “Moby Dick”, mais realista e ecológica. Esta vertente moderna acaba com ironia, quando um dos personagens diz que descobriram o petróleo, logo, já não era preciso matar e morrer no mar pelo óleo de baleia. Ou seja, da exploração de um recurso finito para outro. Recomendo vivamente.

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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Interview with Ashes Fallen − “Not fighting is not an option”

[Originalmente publicado no Pórtico]
 

Ashes Fallen are a post punk / gothic rock band from Sacramento, California. Their second album, “A Fleeting Melody Out of a Fading Dream”, released last year, is a powerful collection of well crafted serious songs, from the lyrics to the catchy melodies to the superb guitar work. Pórtico talked to Ashes Fallen’s James and Michelle Perry about the band’s work so far.

Thank you very much for the interview. It’s a pleasure!
First things first, the band’s influences. The press release mentions goth, rock and metal. What are your favourite bands? But I’m also interested in other type of cultural influences that impact an artist. What subjects, books, movies, people, have influenced you all as a band? Social issues, for instance, like inequality or religion, are very present in your songs.


James: Thanks so much for interviewing us! Let's go back to the beginning. I grew up in a house where my father was always listening to classical music, and I'm sure that's rubbed off in my music over the years. I have more favorite bands than I can possibly list, but offhand, I love The Damned, Iron Maiden, The New York Dolls, The Sisters of Mercy, Opeth, Devin Townsend, The Chameleons... I'm real excited about a lot of newer music too, there's just so much good music happening lately! IAMTHESHADOW, Black Rose Burning, Pilgrims of Yearning, Ariel Maniki and the Black Halos, The Kentucky Vampires... although the new music business is fragmented and confusing, there's so much creativity and excitement right now.

Michelle: When I was growing up in New Zealand, I had one brother listening to Motörhead, another brother listening to Dire Straits, and then I was in my room listening to Duran Duran and The Cure and Echo and the Bunnymen! I also loved the Thompson Twins when I was young, and I thought it was so cool that this chick from little old New Zealand like me, Alannah Currie, was up there on stage on Top of the Pops! Since James and I got together, I've discovered Gary Numan, we just love his newer stuff. I've also always loved The Church, Alice In Chains, A Perfect Circle, and Joy Division. I've been fascinated by vampires ever since I was a little girl, and not so long ago I read Anne Rice's entire Vampire Chronicles from front to back. I love classic films and period films. I love set design and costuming. I'd love to work on a film someday, even if it's just fetching the coffee! James and I have been watching a lot of Film Noir from the 40s and 50s. So much artistry and atmosphere. You just don't see that in today's films.

James: As for social issues, we couldn't help but react to everything happening in the world around us when we wrote this album. When we started the album, Michelle and I were still living in Sacramento, which is the state capital of California, meaning there were lots of protests. You had the Black Lives Matters protests clashing with the police, and then you had the Trumpers and the Proud Boys and the anti-maskers running around with guns, it was a crazy time. And then of course there was the pandemic, and our government's response to it at all levels was a farce and further exposed the failures and hypocrisy of the system, and the growing gap between the rich and the poor. How could we not talk about that?

 

Michelle, I’m a big fan of Anne Rice myself. And I hope to see you one day in one of my favourite TV shows, if only as an extra… for starters!
James, you once said that your later work is a better representation of what the band is doing right now. I will concur that there’s a noticeable evolution since the first album “Ashes Fallen”, released in 2019, even though that’s a great début album. I’ll point out songs like “Blood Moon”, “Nothing Left To Say” or “Morning Breaks”, just to mention my personal favourites. On the other hand, “A Fleeting Melody Out of a Fading Dream” takes it to the next level. Songs like “We Belong Nowhere”, “Thy Will Be Done” and “Vampira - The Ballad of Maila” are instant classics, if I may say so. And I just did.
What are your thoughts on the band’s previous and more recent work? What, do you think, helped you grow?


James: Thanks so much! When we recorded that first album, we'd only been a band for a few months. Some of the songs were songs I'd already been doing as a solo artist. We kind of rushed that one so we'd have something to show people and something to sell on our first tour. I'm still really proud of a lot of it, and some of the last songs written for it were some of my favorites, but to me, it's uneven and unfocused. I think it's just taken us awhile to really figure out what Ashes Fallen actually is. Jason and I have played in bands together on and off for over 20 years. Michelle is an incredibly creative, talented, hard-working person full of ideas, but was her first time being a musician, and she's really come into her own and it's made all of us raise our game. She's so good at helping to point me in the right direction, like, "do more of this, but don't do that!" She brings somewhat of an "outsider perspective" unlike Jason and I who have been doing this for a long time, so she can help tell us what works and what doesn't.

“A Fleeting Melody Out of a Fading Dream”, album cover

 

Speaking of “Vampira - The Ballad of Maila”, I have a funny story to share. Funny and surreal. (Welcome to the world inside my head.) The first time I heard it play on a Twitch stream I was positively convinced it was an 80s classic, much like The Meteors' "My Daddy Is A Vampire", and I was absolutely shocked and ashamed that I didn’t know it before. Worst: that I didn’t recognize the name Ashes Fallen, a band that must have been around for 40 years, probably extinct by now like so many others. How could I have missed “Maila” all these years? I was so embarrassed! Now imagine my shock when I saw you stroll into a Twitch chat and I realised that “Maila” is a very recent song indeed! Coming from me, that’s the biggest compliment I can pronounce about a song. Such a classic had to be around forever. Goes without saying, it was all very funny but it was also a good surprise: I had to know this new band that makes such a classic sound!

[People, if you haven’t heard “Vampira - The Ballad of Maila” yet, go to Ashes Fallen’s Bandcamp and listen to it now.]

Later I looked up Maila Nurmi and learned about her personal story. I wasn’t familiar with the actress or the show. There have been many young stars, men and women, who haven’t been treated fairly by Hollywood. Many sordid stories to tell. So, why Maila? What was so striking about her?

James: We'll take that as a compliment, thank you! Michelle and I wrote that song together. She wanted that song to have somewhat of a "retro" sound and energy since the Vampira show happened in the 50s, around the same time as the birth of rock and roll and everything.

Michelle: I've been fascinated by the story of Maila Nurmi for a long time, ever since I watched the documentary "Vampira and Me". I don't think people realize what an important figure she is, not just in our scene, but in pop culture in general! She was in amongst it with all these incredible people, like Marlon Brando, Anthony Perkins, Orson Welles, and James Dean. She created this completely original Vampira character back in the straight-laced "Leave it to Beaver" 50s. You can go to any goth night anywhere in the world and you'll see so many people emulating that look that she came up with! And then she lost everything and never got the credit she deserved because she refused to play the game and give up control of her creation, and all these other people exploited her creation and got the fame and the money and the glory. There have been so many stories over the years of people doing the hard work and creating something original, but then someone else comes along and makes it successful and gets all the recognition. She was a true original and an icon, and she led such an amazing but tragic life, and we're just proud to help tell her story!

 

I think that the way people react to your songs will depend on how they view the proverbial glass: half-full or half-empty. I don’t consider myself a pessimist or an optimist, but merely realistic. Some people may find some of your songs to be pessimistic. I kind of find them utopian, even, and I sense vibes of the “fight the system” punk current. I was always the “no future” current. I’ll quote “Bear Witness”’ lyrics:

Citizens of a dying empire
Tell me, how lucky are we
We were chosen to bear witness
To the collapse of our society

For the lies, they shall rise
Never ever compromise
Soup kitchen lines are growing
While bull market profits rise

(...)

So muster all you've got within
We can’t let the bastards win


So, truly, you believe there’s any way to fight the system and win?

James: Truly, I don't know. But not fighting is not an option. I believe human-made climate change is an existential threat to life as we know it. Racism and classism and sexism, it's all so disgusting, and so many people suffer needlessly. This whole system that demands continuous, exponential growth of profit when the planet has finite resources, and cost of living goes up so much faster than wages, and more and more people fall through the cracks while the rich keep getting richer, it's simply unsustainable and unjust. And it's so frustrating how at least in America, it seems like empathy and caring for one another is seen as a weakness now, and it's all about "looking out for number one" and neglecting that we're all one people and we're all connected. We've all got to pull together and do better. Vote, demonstrate, contribute money to organizations fighting for a better world, be a conscious consumer, and just be a good person. Everyone is struggling right now and we've all got to be kind.

“Thy Will Be Done” was inspired by the Orlando nightclub shooting of 2016. I always find it very ironic that organised religion, which purpose is supposed to be to reconnect us with God and Good, is responsible for some of the biggest atrocities in the History of mankind. What are your thoughts on that?

James: You nailed it. And yes, I was horrified when I heard about that. It chilled me to the bone. But right then, that guitar line the song is based around just appeared in my head, and I wrote out that first verse, imagining the mindset of someone praying to their twisted idea of God while preparing to do something horrible. I was raised with religion. Religion can be quite wonderful and beautiful and every faith talks about being good and kind, but it is so often horribly twisted by the hateful and the corrupt. It's just so perverse how the hardline religious people chase after fundamentalism and yet they seem to completely miss the point, and embrace the very thing they claim to oppose in the pursuit of power.

 

James, I agree with your every word.
I can’t help but ask this. Your “romantic” songs, in both albums, are a bit… gloomy. Is this how you view romance in general, or is it only a matter of what you were inspired to write at the moment? After all, you do say, in “Human Condition is Terminal”:

And yet this life could be beautiful
If you just let it be


James: I'll say that our songs are generally autobiographical. I believe in writing what's real and what moves me to write. For the first album, a lot of what I was singing about was the few years leading up to Michelle and I getting together. Ten years ago I was in a marriage that wasn't right and never was right and it ultimately fell apart and I nearly lost myself in the process, but I had to go through all of that to rebuild my life and come out smarter and stronger. "Start Again" was the last song we wrote for the first album, and it's one of my favorite things we ever did, and that's what it's all about, overcoming all that negative stuff. Same thing with "Human Condition is Terminal". For so much of my life, I was crippled by insecurity and self-doubt, and that song is just about trying to overcome the voices in your head that tell you you're not good enough.

Michelle: "Just Let Go" is a song I think anyone can relate to. Each of us has had people in our lives that just couldn't let go of the past and it all turned toxic. 

 

Michelle, indeed, that’s a very relatable song.
Back to religion, on a lighter note. Your “base of operations”, including a recording studio, is now a 19th century converted church that you call “The Chapel”. Does it have good acoustics? It must provide an unique ambience. What has been your experience in these new musical dwellings?


James: The Chapel has wonderful acoustics! But we only use the church portion of the building for rehearsal and livestreaming performances. Our recording studio is in one of the old offices. But living here has been great for us creatively. Having our own mini venue to rehearse in and perform online from was great during the pandemic, when it wasn't possible for us to play shows in clubs. It's not just that we live in an old church, either. We moved out of the big city into a small, quiet town. It's given us the quiet and space to focus more on our lives and on our art.

Michelle: Sacramento just got too crazy during the pandemic. We could hear the rioters and see the police helicopters standing out in our backyard! I've always wanted to be able to decorate our stages when we perform, but for most shows we just can't because it's all rush rush rush, get on the stage, get off the stage, get out of the way of the next band. I've loved being able to dress the stage at The Chapel. Like I said, I've always wanted to work on films, but now we have this amazing space that I can do anything with.

It must be a very interesting space to work, for sure.
What are Ashes Fallen’s plans for the near future? In the long run (pandemic permitting), have you considered touring Europe and, especially, playing in Portugal? Any ideas yet for new songs/albums, or is this a “cool down” moment of reflection? Tell us all.


James: We'd love to tour Europe someday! That's not in our immediate plans though. Right now, we've got a few things in the works. We recently swapped remixes with our friends The Axiom Divide and we're real excited for them to put out our remix of "Generations", which I think will happen very soon. We're preparing for a series of live shows this Spring across the west coast of the United States. Aside from one show in October of last year, we haven't performed for a live audience in almost two years, and we haven't traveled at all, so we're really restless and I want to get out there and do this thing live, and bring it to the people! We're also working on our first recorded cover: "No New Tale to Tell" by Love and Rockets. Our friend Greg Rolfes approached us to be part of a compilation of covers of Love and Rockets and Tones on Tail songs from Unknown Pleasures Records, and we jumped on the opportunity. That song's been a lot of fun to work on and we might even play it live. Other than that, I've been recording riffs and sketches, and Michelle and I have been talking about ideas for new songs. We may put out a remix EP later this year, and depending on how things go, maybe a single or two of brand new material later in the year.

Michelle: I've got another music video in my head I've been meaning to make for a long time, but we keep getting busy with other things!

Looking forward to those new releases. "No New Tale to Tell" has always been one of my favourite songs.
Again, thank you very much for the interview!


Ashes Fallen are husband and wife James (lead vocals, guitar) and Michelle Perry (keyboard, percussion, backing vocals, visual presentation), and Jason Shaw (guitar).
Ashes Fallen’s releases so far can be found on their Bandcamp, here:

ashesfallenmusic.bandcamp.com


domingo, 6 de fevereiro de 2022

The King in Yellow, de Robert W. Chambers

Esta foi uma das minhas leituras mais decepcionantes dos últimos tempos. O título do livro devia ter sido antes “The King in Yellow and Other Stories”, e a decepção não seria tanta.
Chambers começa muito bem, com uma série de contos à volta de um misterioso livro (“The King in Yellow”) que supostamente levaria os leitores à loucura. Com “passagens” do livro e tudo. Daqui, o leitor é inclinado a esperar um horror cósmico do tipo Lovecraft, só que foi ao contrário: Lovecraft é que se inspirou em Chambers, seu antecessor.
A primeira história é muito boa. O personagem principal é o típico “narrador não confiável” (parece que Chambers foi dos primeiros a fazer isto) e à medida que o conto decorre apercebemo-nos de que estamos a ler as palavras de um doido varrido e nada do que ele diz é de acreditar. O que sabemos ao certo é que este personagem, depois de ler o livro “The King in Yellow”, está completamente convencido de que é herdeiro indirecto do trono dos Estados Unidos da América. Sim, leram bem. Só que para complicar as coisas na mente desta alminha, o herdeiro directo seria um seu primo, primo este que não faz a mais pequena ideia de que tem direito à coroa dos USA. Deste modo, o personagem principal decide que o primo (o herdeiro) tem de morrer para ser ele o rei.
O segundo conto também é muito bom e uma história de terror arrepiante. Um escultor (que também leu “The King in Yellow”) inventa um líquido que transforma coisas vivas nas mais belas “esculturas”: uma rosa, um coelho… Só que têm de ser imersos no líquido ainda vivos. O que é horroroso!
Mais uma ou duas histórias à volta do perigoso livro e… e depois o autor “esquece-se” do tema, e as histórias seguintes já não têm nada a ver com “The King in Yellow”. Foi aqui que me questionei retoricamente se ainda estava a ler o mesmo livro, que veio do Projecto Gutenberg. Não, não é erro de edição, é mesmo assim, e o título é mesmo este. Continuei a ler na esperança de que no fim todos os contos estivessem interligados, mas na verdade não estão. O livro é mais uma antologia do que outra coisa. Mas como o título não o diz, tenho o direito de me sentir defraudada. Por exemplo, os últimos contos são histórias vulgares sobre as vidas de privilégio de alguns estudantes de pintura em Paris. Nem vou falar das descrições exaustivas da cidade, porque naquele tempo escrevia-se assim. (E ainda bem, porque à data de publicação, 1895, não havia o benefício da imagem que temos hoje em dia. Muitas vezes estas descrições na narrativa de ficção são um autêntico documento histórico, aborrecidas que sejam de ler, especialmente para o leitor moderno.) São contos realistas ao gosto da época, que me lembraram das deambulações dos personagens de Eça de Queirós. Mas nada de sobrenatural, muito menos de terror, e nada mesmo de “The King in Yellow”. Parece que o autor não se conseguia decidir sobre o que queria escrever, ou que abandonava as ideias quando se fartava delas. Aliás, como na sua própria vida.
Se valeu a pena? As primeiras histórias são boas e tudo vale a pena se inspirou H. P. Lovecraft. Mas não chegou para me convencer.