Então, afinal Athelstan existiu mesmo! Eu sempre pensei que fosse uma personagem ficcional de "Vikings", tal foi a falta de verosimilhança com que o retrataram. O mesmo se pode dizer de todas as personagens e até do enredo de "Vikings", algo que oscilava nas ondas da incoerência como um barco viking nas ondas do mar sem rota traçada.
O mesmo não se pode dizer de "The Last Kingdom", uma história com cabeça, tronco e membros. "The Last Kingdom" é a odisseia de Uhtred de Bebbanburg, um nobre nascido saxão e criado por vikings, no objectivo de recuperar o título usurpado pelo seu tio. Apesar de todas as proezas militares ao serviço dos reis de Wessex, Alfred e Edward, isto não foi tarefa fácil porque Bebbanburg se situa no norte da (actual) Inglaterra e os reis de Wessex não arriscavam dar-lhe o apoio necessário numa época em que eram acossados por raides vikings nas suas próprias terras.
Só tenho bem a dizer de "The Last Kingdom", uma história que me viciou desde o princípio. É verdade que o enredo foi "manobrado" para haver sempre uma grande batalha no início e no fim de cada temporada, mas numa série centrada à volta da conquista/invasão viking é natural que assim seja. No ínterim, temos drama, romance, humor, momentos filosóficos e passagens dignas de Shakespeare se Shakespeare tivesse escrito para a televisão (só dois exemplos na última temporada: o discurso de Lord Aethelhelm e o pranto de Lady Aelswith). Acredito mesmo que seja esta a maior diferença entre "The Last Kingdom" e "Vikings", duas séries sobre o mesmo tema, a primeira da perspectiva dos saxões, a segunda da perspectiva dos vikings. "The Last Kingdom" é uma série muito mais convencional, com personagens e circunstâncias históricas e religiosas que nos são mais familiares. Se "Vikings" era mitológico, "The Last Kingdom" está bastante mais ancorado na História como esta chegou até nós e focado na construção da futura Inglaterra. Basta dizer, sem querer entrar em muitos spoilers, que a derradeira batalha é entre saxões, embora envolvendo nórdicos instalados há gerações em terras britânicas.
Aproveito para falar já das batalhas propriamente ditas. Costumo queixar-me de batalhas em que não se percebe nada do que está a acontecer, em que não se distingue quem está a fazer o quê e onde. Só tenho a dizer o contrário de "The Last Kingdom". As batalhas estão excepcionalmente bem filmadas, com perspectivas aéreas que nos permitem ver a posição dos adversários, com destaques nos confrontos entre personagens principais sem fazer parecer que a guerra parou toda para se poder ver este ou aquele duelo (outra coisa que acontece muito nos filmes de acção), sem que a importância dada a estes confrontos nunca torne a batalha lenta ou irrealista. Vindo de mim, é um elogio: nunca me senti perdida, percebi sempre o que estavam a fazer, onde se situavam os exércitos, qual era a posição e a força numérica de cada um, qual era a estratégia de defesa e ataque, quem estava a ganhar ou a perder e porquê, e quem eram os protagonistas decisivos. Todos os filmes de acção deviam pôr os olhos nisto. É assim que se filmam batalhas.
A última batalha, no último episódio da última temporada, é a mais épica de todas, uma das coisas mais arrepiantes que já vi numa batalha de espadas, e não pelos horrores habituais que se podem esperar deste tipo de conflito. Recomendo a todos os verdadeiros amantes de acção que não percam isto por motivo nenhum.
Mas o que gostei mais em "The Last Kingdom" foram mesmo as personagens de carne e osso, tridimensionais, com as suas forças e fraquezas, virtudes e defeitos, e motivações bem estabelecidas mesmo quando a personagem muda completamente de ideias. Por exemplo, foi penoso assistir a como Brida, uma rapariga aguerrida mas pragmática, se foi transformando numa fanática religiosa e sanguinária para justificar o seu ódio a Uhtred, quando na verdade era evidente que permanecia em negação quanto aos seus próprios erros. Estas são personagens sólidas, complexas, humanas, que nos despertam a empatia. Quando alguma morria, conseguia mesmo afectar-me, até no caso de alguns vilões.
Não quero dizer quem morre, mas vou dar o exemplo de Haesten, porque sei que desde o início toda a gente vai querer ver Haesten morrer, o mais brevemente possível e o mais lentamente possível. A melhor maneira de descrever Haesten é que é um merdas. Haesten é um guerreiro viking mais cobarde do que guerreiro, sempre mais disposto a fugir do que combater, sempre a pendurar-se nas vitórias dos outros e a gabarolar-se das suas "proezas" inexistentes, um intriguista capaz de trair tudo e todos para satisfazer a cobiça e a ambição, e, pior do que tudo, por várias vezes Haesten tenta tomar mulheres à força, especialmente as prisioneiras de guerra como a princesa Aethelflaed, por quem chega a desenvolver uma obsessão muito para além das práticas normais dos vikings a ponto de arruinar tudo o que já tinha conquistado para a perseguir. Haesten personifica tudo o que há de mais baixo, egoísta, fanfarrão, ganancioso e desleal. Para que a morte dele nos afectasse, uma série menor teria recorrido a um fim agonizante ou a uma redenção-instantânea de um só gesto de compaixão. Mas "The Last Kingdom" começa a preparar a coisa mais cedo. Anos mais velho, Haesten salva a Lady Eadith de uma situação periclitante sem ter nada a ganhar com isso (embora lhe dê a entender que a queria ter como amante, mas nada que garantisse que tal ia acontecer) e tenta mesmo salvar Aelfwynn, filha da própria Aethelflaed, numa circunstância em que podia antes ter-se salvado a si próprio, o que faz dele quase uma pessoa decente. Eu sabia que Haesten tinha os dias contados (melhor gente do que ele morreu por muito menos), mas nunca me passou pela cabeça ter pena deste merdas. Aliás, quem gostou de "A Guerra dos Tronos" vai apreciar as mortes abruptas, muitas delas no momento e da maneira que menos esperávamos. Mas, ao contrário de "A Guerra dos Tronos", muitas destas mortes não valem apenas pelo efeito de choque, algumas fazem-nos mesmo sentir falta do personagem (incluindo alguns vilões, como disse acima).
Resta-me falar dos momentos de humor, alguns muito subtis, como o homem que leva o porco à taberna (quase nem se dá por ele), ou aquela cena em que uma viúva cinquentona, casta como uma monja, acompanhada da neta adolescente e bonita, recebe as atenções indesejadas de um bêbedo que prefere fazer-lhe olhinhos sem ligar nada à rapariga, deixando a senhora bastante incomodada.
E por falar em viúva, foi impressionante como a rainha Aelswith, mulher de Alfred, se transformou de beata fanática em mulher engenhosa e pragmática, exactamente o contrário do percurso de Brida.
Como já salientei antes, "The Last Kingdom" é também uma grande produção em termos de cenários, guarda-roupa, interiores e exteriores da época. Uma delícia para quem é apaixonado por História.
Uhtred, o protagonista, acaba por ser o personagem menos tridimensional, curiosamente. Tornaram-no demasiado "herói de acção" que vence sempre no fim (ou quase sempre), por muito que tenha de passar para lá chegar. Uhtred também tem virtudes e fraquezas (o orgulho e a teimosia são as que o prejudicam mais) e uma mania embirrante de culpar o destino por tudo (o célebre "destiny is all"), afirmando mesmo que nunca teve escolha, para o bem e para o mal, quando nós vemos perfeitamente que teve e que efectivamente escolheu. No entanto, compreendo que tinham de o fazer heróico. Uthred é uma personagem inesquecível e ninguém queria seguir tamanha odisseia para o ver fracassar no fim. Resta saber se consegue recuperar Bebbanburg ou se o destino lhe reserva outras recompensas. Destiny is all!
Uma última palavra para a excelente banda sonora de Eivør e John Lunn, motivo mais do que suficiente para aguardarmos ansiosamente pelo princípio e fim de cada episódio:
https://www.youtube.com/watch?v=WT65X0eBTEA
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes
PARA QUEM GOSTA DE: Vikings, drama histórico
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