Vi o filme de 82 na adolescência e fiquei aterrorizada. Nunca mais me lembrei dele até ler “Danse Macabre", de Stephen King, em que o autor menciona o “Cat People” de 1942 como uma grande referência do terror no cinema (eu nem sabia que “Cat People” de 1982 era um remake). Curiosamente, “Cat People” (1982) estava a passar num dos canais de televisão e gravei-o logo. “Cat People”, com Nastassia Kinski e Malcolm McDowell, é uma metáfora clara sobre a sexualidade. Irena (Kinski) e Paul (McDowell) são dois irmãos criados em separado, mas ambos sofrem da mesma maldição: quando fazem sexo transformam-se em panteras negras e matam os seus amantes. Para impedir isso, Paul quer que Irena “acasale” com ele, e também é ele quem lhe revela que os pais de ambos eram igualmente irmãos. Esta solução de relações incestuosas impede a mortandade que os torna perseguidos. Irena não acredita em Paul, acha a proposta repugnante e, além disso, está apaixonada por Oliver, curador do jardim zoológico de New Orleans. No entanto, Irena receia no seu íntimo que Paul tenha razão e tenta evitar Oliver a todo o custo.
Confesso que fiquei desapontada porque desta vez o filme não me meteu medo. Isto pode dever-se a várias razões. Primeiro que tudo vejo muitos documentários sobre vida selvagem e sei que os leopardos são animais tímidos e solitários, que evitam o ser humano como a peste, que estão em vias de extinção, e que por serem solitários são bastante frágeis: tal como as chitas, qualquer ferimento pode impedi-los de caçar e não têm um grupo que cace por eles como os leões. Muitas vezes deixam as presas para as hienas e outros predadores sem dar luta para não correrem o risco de ficarem feridos. Isto fez-me simpatizar com os leopardos em vez de ter medo deles.*
* O que não quer dizer de maneira nenhuma que eu não tenha um medo racional de grandes felinos predadores (só se estivesse doida varrida é que não teria, especialmente de leões machos – já viram aquelas bocarras?), mas é um medo racional e não irracional como o medo de lobisomens, que não existem.
Por falar nisso, as “panteras negras” propriamente ditas também não existem, são apenas leopardos de pêlo preto, mas se calhar um leopardo fofinho às bolinhas não causava o mesmo efeito.
A ideia de “cat people” também foi usada em “True Blood”, na forma cómica e satírica típica da série, quando Jason Stackhouse, irmão de Sookie, se envolve com uma família de traficantes de metanfetaminas, white trash de trailer park, também incestuosos e com muitos uncle-daddies, a quem ele chama were-panthers. Não tenho muitas dúvidas de que inspiração tenha vindo deste filme. Em bom português, “True Blood” adorava avacalhar coisas sérias. Mas vou aproveitar a deixa para lhes chamar lobis-panteras também.
Depois disto tudo, não admira que o choque que o filme me causou se tenha diluído. Desta vez prestei mais atenção à parte metafórica em si, completamente sexual (o despertar, os receios, a virgindade, a transformação que tal acarreta, etc), e não consegui achar o filme tão interessante. Pelo contrário, julgo algumas cenas de sexo demasiado gratuitas e sado-maso, e alguns nus integrais de Nastassia Kinski (embora agradáveis de ver, não discuto) incluídos por motivos de “picante” para o público masculino (e feminino) e totalmente dispensáveis. Da mesma forma, o filme é longo demais e muitas outras cenas podiam ter sido cortadas sem se perder nada.
Também não digo que “Cat People” não conserve algumas passagens que me pareceram mais arrepiantes na altura do que agora, mas continuam arrepiantes, como os restos de jantar do lobis-pantera Paul, que não eram antílope… Já quanto às transformações propriamente ditas, podiam ser muito assustadoras em 1982 mas já não me convenceram agora.
O fim é mais triste do que trágico, na minha opinião. Apesar de tudo isto, aconselho a quem nunca viu e faço votos de que fiquem tão aterrorizados como eu da primeira vez.
Cat People (1942)
Ao ler críticas do filme de Nastassia Kinski (sejamos francos, o filme é dela), encontrei elogios rasgados ao original de 1942 e fiquei tão curiosa que fui arranjar o filme. “Cat People” de 1942 é uma obra completamente diferente, e tinha mesmo de ser porque na época certos temas eram proibidos no cinema (e cenas de sexo nem pensar!). Aqui temos uma metáfora muito mais subtil, isto é, subtil à altura, porque agora é clara como água. Irena é uma emigrante sérvia na América que vive aterrorizada por histórias de infância da aldeia onde nasceu sobre bruxas adoradoras do Diabo que tinham o poder de se transformar em panteras quando se exaltavam, excitavam ou zangavam. Irena apaixona-se por Oliver, a quem conhece igualmente no jardim zoológico junto à jaula de um leopardo negro, e eventualmente até chegam a casar, mas Irena recusa qualquer tipo de intimidade com o marido, nem sequer um único beijo. Oliver começa por ser bastante compreensivo e paciente, mas acaba por se apaixonar por uma colega de trabalho, Alice. E é aqui que Irena se passa dos carretos ou, neste caso, vira onça!
Fiquei bastante curiosa porque a senhora que fez a crítica aos dois filmes (que ela viu de seguida, primeiro o de 1942 e depois o de 1982) está completamente convencida de que Irena é lésbica porque não tem intimidade com homens e só se transforma em lobis-pantera quando persegue Alice, mas eu não me precipitaria quanto a isso. Ao contrário do filme de 1982, estas lobis-panteras também se transformam quando se zangam, e a ira até se vê nos olhos de Irena quando ela sabe da amiguinha do marido. Irena pode muito bem não ceder ao marido por medo de o matar, mas pelo fim do filme até está disposta a experimentar uma vida normal, aconteça o que acontecer. Logo, é melhor não ver o que não está lá. O que está neste filme é a completa submissão da mulher ao homem, que, condescendente, a manda para um psiquiatra para a “curar” e que chega a decidir interná-la. Se há um comentário a fazer é este: a sexualidade feminina dependia dos humores masculinos e tudo o que fugia à norma era considerado insanidade. Irena não só pode não ser lésbica como pode ser assexual, isto é, não querer intimidade com ninguém.
Para um filme de 1942 com um orçamento reduzido, “Cat People” tem uma realização de mestre. O jogo de luz e sombras, a preto e branco, é digno de um manual sobre como fazer cinema. Mas a mim agradaram-me sobretudo as cenas das perseguições.
A primeira é tão tensa, mas tão tensa, quando Irena persegue Alice por um parque solitário à noite, que eu provavelmente nem teria reparado que é tudo filmado num cenário de estúdio se Stephen King não tivesse chamado a atenção para esse pormenor (porque na altura não havia tecnologia para filmar à noite no exterior). Sente-se que a qualquer momento Alice vai ser devorada.
A segunda cena, magistral, é a da piscina. Nunca vemos a pantera, mas vemos a sua sombra e ouvimos os seus rugidos. Acredito que a audiência de 1942 deve ter arrancado os braços às cadeiras, de tanta tensão, ou agarrado os braços dos namorados e eles os delas. A cena é completamente arrepiante, até para uma espectadora de 2024.
O fim é duplamente trágico e triste.
O filme está por aí na internet, tentem encontrá-lo. Sim, é um filme datado, mas de qualidade extraordinária.
15 em 20 para ambos os filmes
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