[contém spoilers]
“Son of the Shadows” é o segundo livro da trilogia Sevenwaters de Juliet Marillier. Há muito tempo que um livro não me agarrava tanto, ainda mais do que o primeiro, “Daughter of the Forest”, em que os seis irmãos são transformados em cisnes.
Até parece que a autora leu a minha crítica de tal forma se evita os plot holes e os anacronismos. (Estou a brincar, é claro. O livro foi escrito muito antes da minha crítica. Mas talvez críticas semelhantes lhe tenham chegado aos ouvidos…) Obrigada, leitores que comentaram, por me terem aconselhado a não desistir. Não desisti e descobri um livro melhor do que o primeiro.
Mas não sem fragilidades. Depois de um início muito promissor, o fim revela-se decepcionante. Talvez Marillier melhore em obras posteriores, mas a sensação geral com que fiquei é de uma autora que vale mais pela sua escrita, e é de facto uma escrita lindíssima, do que pelos seus enredos.
E tal como disse em “Daughter of the Forest”, continua a haver aqui momentos em que a bota não bate com a perdigota, embora menos, mas Marillier ainda não se consegue livrar deles neste segundo livro. O que é pena. Ao contrário do que se costuma dizer, que uma boa história merecia melhor escrita, aqui é caso para dizer que a escrita merecia melhor história.
O que mais gosto em Marillier é que as histórias são tristes, ou, no mínimo, melancólicas. Logo no primeiro capítulo, somos informados de que dois dos irmãos morreram na guerra pelas ilhas sagradas. Isto era de prever, tendo em conta a personalidade de ambos, mas não deixamos de pensar se não teria sido melhor terem permanecido cisnes. Logo a seguir, sabemos que Sorcha está a morrer. Este sim, foi um grande choque, porque Sorcha sempre foi demasiado nova. Aqui é-nos dito que Liam tem 36 anos, o que significa que ela não pode ter mais do que 30.
SPOILER
Não era necessário. Não era mesmo. Sorcha podia ter continuado na série durante muitos mais anos, em pano de fundo, só intervindo ocasionalmente na vida dos filhos e dos netos. Não gostei.
A minha maior crítica ao primeiro livro foi mesmo essa: Sorcha era demasiado nova. Em “Son of the Shadows” a acção começa quando os filhos de Sorcha e Red já são crescidos. A mais velha, Niamh, tem 17 anos, e os mais novos, Liadan e Sean, gémeos, têm 16. Com estas idades já são perfeitamente credíveis, o que não acontecia com uma Sorcha de 12 anos.
A história é contada pela perspectiva de Liadan, uma perfeita réplica da mãe. Tal como esta, Liadan também é curandeira e também tem a Visão. Não gostei que esta personagem parecesse uma substituta da protagonista de “Daughter of the Forest”, confesso. Mas a história mais interessante, a história que me manteve agarrada, nem sequer é a dela. Bom, o melhor será dizê-lo de uma vez. Achei Liadan uma sonsa, uma menina do papá e da mamã, a filha preferida, e ainda por cima burra que nem uma porta. (Já justifico.)
Mas quem sai aos seus não degenera. A burrice parece ser genética em Sevenwaters, ou não tivessem os seis irmãos e a irmã ido confrontar a Lady Oonagh sem um plano que os protegesse caso esta decidisse transformá-los novamente em cisnes e desta vez fazer empadas com eles. As personagens de Sevenwaters não são exactamente brindadas pela inteligência, e este segundo livro vem apenas confirmar o primeiro.
A história
O que me manteve agarrada à história foi uma suspeita, vinda do livro anterior, que depressa se tornou certeza. Um dos “filhos das trevas”, porque o livro se refere a dois, é o filho da Lady Oonagh com Lord Colum, Chiaran, o oitavo irmão. Lady Oonagh levou-o quando saiu de Sevenwaters mas Colum foi à procura dele, encontrou-o, e trouxe-o de volta. O que, como pai, só lhe fica bem.
E que fizeram os irmãos, na morte do pai? Mereciam ser todos transformados em escaravelhos pela porcaria que fizeram, Sorcha incluída. Acharam melhor criar o miúdo junto dos druidas e do irmão Conor, sem lhe dizerem quem era. Chiaran cresceu e conheceu Niamh, sua sobrinha, que também não sabe que Chiaran é seu tio. E aqui está, Tragédia da Rua das Flores. Isto só se “revela” na terceira parte do livro, mas é mais do que óbvio desde o início para quem leu “Daughter of the Forest”.
Não contentes com a porcaria que fizeram, ao descobrirem este affair já consumado, tanto os tios como o pai de Niamh a tratam como a uma galdéria emporcalhada, e arranjam-lhe um casamento sem amor com um nobre qualquer, contra a vontade dela.
O que é curioso, porque à filhinha querida, Liadan, Red diz que nunca a obrigaria a casar contra a sua vontade. Mas isto ainda fica pior.
Ao acompanhar o séquito da irmã, no regresso da boda, Liadan é raptada por um bando de mercenários. Mas não fiquem já assustados porque estes mercenários são uns cavalheiros do melhor que há (é preciso querer acreditar nisto). O mais cavalheiro de todos é mesmo o homem a quem eles chamam o Chefe e a quem Laidan chama Bran, por ele se recusar a dizer o seu nome. Os mercenários raptaram-na porque um deles, serralheiro, sofreu um acidente horrível e precisa de cuidados, e os dotes de Liadan como curandeira (por se saber que aprendeu com Sorcha, sem dúvida) são sobejamente conhecidos. Só querem que ela trate o homem, o que é comovente.
O género de Juliet Marillier é apelidado de Fantasia Romântica, mas fiquei desapontada por Liadan ter conhecido o seu interesse romântico logo à primeira. Esperava mais voltas e reviravoltas antes disso, como em “Daughter of the Forest”, mas aqui vai-se logo aos finalmentes. Liadan apaixona-se por Bran, o líder dos mercenários (e o outro “filho das trevas”), e percebemos logo isso da maneira como os dois embirram um com o outro e discutem como adolescentes (e até são, ou quase). Tanta discussão acaba na cama, ou melhor, nas ervas do campo à chuva. Mas então acontece algo que só pode deixar um leitor de “Daughter of the Forest” completamente boquiaberto. Quando Liadan lhe conta quem é, Bran rejeita-a. Acusa o pai dela, Red, de ser o causador da grande desgraça da sua vida, e Sorcha de ser uma sedutora que desencaminhou um homem fraco. Mostrando a sua misoginia, só falta a Bran chamar prostituta a Liadan (mas acaba mesmo por chamar, indirectamente) antes de a mandar embora.
Ora, quem leu “Daughter of the Forest” fica chocado ao ouvir isto, porque sabe que Red e Sorcha seriam incapazes de fazer mal fosse a quem fosse. As acusações de Bran são muito graves, o que se reflecte na maneira como trata Liadan. Começamos logo a especular o que se teria passado em Harrowfield, na Bretanha, que a gente não sabe. Ter-se-á Simon, irmão de Red, voltado para o mal? Passa-nos tudo pela cabeça. E como gostamos destes personagens do primeiro livro, sentimos que quase nos estão a insultar os amigos e não podemos descansar enquanto não soubermos o que aconteceu ao certo. Eu já estava agarrada às minhas suspeitas de que Chiaran era o filho da Lady Oonagh, e ainda fiquei mais agarrada por causa destas acusações.
Liadan regressa a casa grávida. Desta vez não há censuras, como aconteceu à pobre Niamh, só amor e carinho e aceitação. Filhinha dos papás. A própria Liadan diz várias vezes que é injusto que a tratem melhor do que trataram a Niamh, e que não percebe porquê.
Eu também queria muito saber, e quanto mais ia percebendo mais me parecia que deviam ter sido todos transformados em escaravelhos. Liadan acaba por descobrir que a irmã está a ser espancada e violada pelo marido, completamente sozinha e sem se atrever a pedir ajuda. Culpa dos pais e dos tios. Liadan ajuda-a a escapar e obtém assim uma ajuda mais ou menos inesperada: Chiaran, filho da feiticeira, está a seguir na peugada da mãe, mas tem para com Liadan uma dívida de gratidão. Talvez Chiaran não se torne o génio do mal que os irmãos temiam dele.
Há uma ideia subjacente a todo o livro que me irrita profundamente: que os filhos acabam por ser forçosamente iguais ao que foram os pais. Chiaran, filho de feiticeira, tem de ser maléfico também. De Liadan, filha de Sorcha, espera-se que seja um espelho da mãe. (O próprio Red o diz.) Niamh, porque não saiu à mãe, foi desde sempre a filha enjeitada. (Escaravelhos, Chiaran, transforma-os em escaravelhos porque merecem!) Bran, filho de gente boa, tem de ser gente boa também. Eamonn, filho de um traidor, tem de ser igualmente malvado.
Por falar em Eamonn, pretendente a Liadan a quem esta rejeita, vamos lá então explicar a burrice da personagem. Só houve uma coisa que esta Liadan fez no livro todo com que eu concordei, que foi mandar a Senhora da Floresta às urtigas. (Exactamente! E eu gostei porque já me tinha parecido que a Senhora da Floresta é uma grande sádica.) Não, minto: também gostei que Liadan fosse a única a ter verdadeira compreensão para com o romance entre Niamh e Chiaran. Mas Liadan estraga tudo quando vai confrontar Eamonn, um homem que ela já sabe que é perigoso, que até já traiu Sevenwaters, e leva com ela o bebé. Lembrou-me aquele momento de “Homeland” em que Carrie Mathison leva a filha para um encontro de terroristas, e até um simpatizante de terrorista lhe pergunta: “Mas a senhora é doida? Trouxe para aqui uma criança?” Carrie Mathison é mesmo doida, mas Liadan é simplesmente burra. Quem é que leva o seu bebé para um conflito que pode correr muito mal, quando o bebé não faz lá falta nenhuma e podia tê-lo deixado em segurança?
Só há um personagem inteligente nesta história toda. Não vou dizer quem é para não criar mais spoilers, mas quem se lembra da minha crítica anterior sabe quem é o meu personagem preferido. E nada mais digo.
O fim decepcionante refere-se às acusações monstruosas que Bran faz a Red e Sorcha. Como dizer isto?... Afinal, ele estava completamente enganado. Ouviu mentiras, repetiu mentiras. Foi tudo uma construção artificial para o manter afastado de Liadan até ao fim do livro, porque não podiam ser “felizes para sempre” tão cedo. Não gostei mesmo nada. Como leitora, senti-me defraudada.
Senti-me ainda mais defraudada quando Red diz que tem alguma culpa no assunto, para justificar o truque baixo do livro. Nem Red, e muito menos Sorcha, nem sequer Simon, têm qualquer influência no que aconteceu a Bran. Não era preciso pôr Red a assumir culpa que não tem ao serviço de um enredo mal amanhado. Havia outras maneiras de chegar ao mesmo objectivo. Desta forma, Bran também me pareceu um idiota misógino que se queixa sem razão e acusa quem não deve. A certa altura ele diz a Liadan que ela é uma “mulher perigosa e uma estratega subtil”, e eu fartei-me de rir. Ele também não é muito esperto, por isso estão bem um para o outro. Bran é um personagem atormentado por uma infância de abuso, compreendo perfeitamente, mas, chamem-me insensível à vontade, ou talvez porque conheça casos muito piores em que as pessoas deram a volta “mais por cima”, acho que ele não tinha razão para aquela revolta toda. Até parece que foi o único no mundo a sofrer, ou, pior, é tão focado em si próprio que não sabe que outros sofreram mais. Talvez este personagem ainda melhore, porque, afinal, ele também é muito novo. Bran é quem verbaliza uma das ideias mais filosóficas do livro: “As histórias são perigosas, porque fazem os homens sonhar com o que não podem ter”. Às vezes é verdade, outras vezes é o contrário: em vez de perigosas, as histórias podem ser inspiradoras. Mas como personagem auto-destrutivo e sem auto-estima que é, Bran só consegue ver o lado cínico da vida.
Ainda assim, viciante
Então, do que é que eu gostei tanto neste livro, porque efectivamente gostei de alguma coisa que me manteve agarrada do princípio ao fim? A escrita é muito boa. A autora consegue das melhores descrições que já li na vida, embora eu não seja grande amiga de descrições. (Às vezes dá-me a entender que a autora prefere as descrições e os pormenores a essas chatices de manter o enredo coerente.)
Gostei da história de Niamh e da história de Chiaran, e de como ambas as histórias podem vir a dar uma continuação empolgante. Porque, a verdade é esta, estou em pulgas para ler a terceira parte, “Child of the Prophecy”.
Queria ter gostado mais deste livro, sim, queria. Queria ter-lhe dado 5 estrelas no Goodreads e só lhe pude dar 4 porque o fim me pareceu artificial. Conhecendo as fragilidades da autora, passei o livro todo a temer que isto acontecesse, nomeadamente quando se questionou a integridade de Red e Sorcha (não podia ser verdade!). Infelizmente, os meus piores receios vieram a concretizar-se, ou a autora não me conseguiu convencer das razões de Bran. Aliás, todo o personagem Bran faz pouco sentido, eu é que não quis estar aqui a debicar que nem abutre.
A escrita de Marillier é francamente agradável, mas precisa de enredos mais sólidos. Vou continuar a ler a trilogia na esperança de que a experiência melhore estas fragilidades até elas desaparecerem.
E continuo a querer saber a resposta à questão que ficou a pairar no primeiro livro: porque é que a Lady Oonagh se foi embora sem mais nem ontem quando já tinha conquistado tudo. A questão volta a ser abordada em “Son of the Shadows” e a resposta promete. Resta saber se a trilogia cumpre a promessa. Por esta altura falha-me a esperança, mas se “Son of the Shadows” supera “Daughter of the Forest”, pode ser que o terceiro livro me satisfaça completamente. A ver vamos.