terça-feira, 31 de outubro de 2023

The Sisters of Mercy – Lisboa ao Vivo – 26.Outubro.2023 - Lisboa – crítica ao concerto / The Sisters of Mercy – Lisboa ao Vivo – October 26th 2023 – Lisbon – a review

Originalmente no Pórtico

Os Sisters of Mercy são a minha banda preferida. Depois de muitos anos sem poder vê-los devido a motivos profissionais, aproveitei a oportunidade do passado dia 26 no Lisboa Ao Vivo.
Às 21h já a sala estava cheia. Encontrei-me com o DJ Asura Sunil, que conheci no Twitch (procurem-no!) e que se tornaria no meu parceiro de infortúnio dessa noite. Pontualmente, a banda de abertura Virgin Marys começou a tocar. Os Virgin Marys definem-se como uma amálgama de punk/grunge/rock, o que eu considero uma excelente definição. Infelizmente não é o meu tipo de som (nem a sonoridade que me levou ao concerto) e não consegui gostar.
Os Virgin Marys tocaram cerca de 45 minutos. Depois seguiu-se uma longa espera.
Entretanto, foi a minha primeira vez no Lisboa ao Vivo, que mudou de local para a zona de Cabo Ruivo. A sala é interessante para bandas de pequena dimensão, o que não era o caso dos Sisters of Mercy (que costumavam encher Coliseus) mas parece que agora é.
Não posso avaliar muito bem a acústica do espaço porque não conheço os Virgin Marys. O som pareceu-me um bocadinho alto demais (e eu estava bem atrás) mas pode ser da sonoridade da banda.
No que reparei é que não há lugares para sentar em lado nenhum. Ao fim de uma hora de pé a ciática já estava a matar-me e tive de me sentar num dos degraus das escadas para a mezzanine, o que não se deve fazer. Portanto, este vai ser o meu primeiro e último concerto no Lisboa ao Vivo e daqui para a frente vou-me restringir ao Coliseu.
Por volta das 22h30 os Sisters of Mercy ainda não tinham começado. A minha percepção extra-sensorial já me estava a sussurrar ao ouvido que não ia haver concerto, mas não quis acreditar nela. Dez minutos antes das 23h alguém da organização veio ao palco e anunciou que o concerto estava cancelado. Os presentes começaram a sair. Um deles expressou a impressão geral: “Que banhada!”
Mais tarde viemos a saber que Andrew Eldritch saiu do local de ambulância, mas que os Sisters of Mercy tocaram no Porto na noite seguinte.
Não estou zangada, simplesmente desapontada. Esta seria a minha última oportunidade de ver a minha banda preferida. Terei de me contentar com as memórias de tempos mais felizes.

***

The Sisters of Mercy are my favourite band. I haven’t been able to see them for many years due to professional reasons, so I took this opportunity to see them last October 26th at Lisboa ao Vivo.
By 9pm the venue was already full. I joined DJ Asura Sunil who I met on Twitch (look him up!) and who would become my partner of misfortune for the night. Right on time, the opening band Virgin Marys started playing. The Virgin Marys define themselves as an amalgamate of punk /grunge/rock, which I consider an excellent definition. Unfortunately it’s not my type of music (nor the type of sound that took me to this concert) and I was not able to enjoy.
The Virgin Marys played for around 45 minutes. Then a long waiting ensued.
Meanwhile, this was my first time at Lisboa ao Vivo, which changed its location to the Cabo Ruivo area. It’s an interesting venue for small bands, which wasn’t the case of the Sisters of Mercy (who used to sell out Coliseus) mas it seems it is now.
I cannot accurately evaluate the space acoustics since I don’t know the Virgin Marys. The sound seemed a bit too loud to me (and I was away at the back) but that can be the band itself.
What I did notice is that there aren’t any seating places anywhere. After an hour standing up my sciatica was already killing me and I had to seat on the steps leading to the mezzanine, which shouldn’t be done. So, this will be my first and last concert at Lisboa ao Vivo and from now on I’ll stick to Coliseum.
Around 10:30pm the Sisters of Mercy hadn’t yet started. My ESP was already whispering in my ear that there would be no concert, but I didn’t want to believe it. Ten minutes before 11pm someone from the organisers came to the stage and announced that the concert was cancelled. The attendants started to leave. One of them expressed the general feeling: “We were stood up!”.
Later we came to learn that Andrew Eldritch had left the venue on an ambulance but that The Sisters of Mercy played in Porto the following night.
I’m not angry, merely disappointed. This would be my last opportunity to see my favourite band. I’ll have to hold on to the memories of happier days.

domingo, 29 de outubro de 2023

Das Boot / O Submarino [terceira temporada]

Fiquei felicíssima quando vi recentemente a terceira temporada de “Das Boot” (na AMC). Não estava mesmo a contar com ela. Na verdade, estava completamente convencida de que a série tinha acabado, para meu desgosto porque há muito tempo não via uma série dramática, não-sobrenatural e europeia com tanta qualidade. Eu até nem aprecio Dramas de Guerra, mas “Das Boot” é muito mais do que isso.
“Das Boot” foi uma das muitas séries prejudicadas pela pandemia. Convencida como estava de que tinha acabado, até porque o final foi bastante coeso, confesso que esqueci tudo e nunca mais pensei na história. Por exemplo, já não me lembrava mesmo se o comandante Klaus Hoffmann tinha morrido ou não depois de ser baleado nos Estados Unidos (onde ele foi parar na sequência de um motim a bordo). Para ser franca, julguei que tinham morrido todos excepto o agente da Gestapo Hagen Forster. Esse, devido à sua vilania, é difícil de esquecer.
Acabámos a segunda temporada exactamente com Hagen Forster a ter de tomar uma decisão. Devido aos seus serviços exemplares ao Partido Nazi foi-lhe oferecido um posto de direcção num campo de concentração na Polónia, uma daquelas ofertas que “não se podem recusar”. No início da terceira temporada Hagen Forster chega precisamente a Lisboa para investigar o caso de um colega da Gestapo que apareceu morto. Infelizmente, só sabemos o que aconteceu a Forster entre temporadas no último episódio e é bastante importante, portanto não posso revelar o spoiler.
Mas vamos lá ao que nos interessa mais nesta temporada. Acreditem ou não, o submarino vem a Portugal! Mas não sem antes passar por muitas aventuras.
Na Alemanha, dois rapazes menores, um deles órfão de guerra, andam a roubar carteiras. Apanhados, são obrigados a inscrever-se como “voluntários” para os submarinos (a Alemanha já não tinha homens suficientes no exército) para não irem presos (ou pior).
Entretanto, um personagem sobreviveu, afinal, das temporadas anteriores: o engenheiro naval Robert Ehrenberg, que também participou no motim que expulsou Klaus do submarino para o lançar à deriva no oceano. Tudo isto foi muito bem falsificado no diário de bordo, mas o pai de Klaus, o comandante veterano Wilhelm Hoffmann, altamente respeitado como herói de guerra, percebe que o diário de bordo é uma falsificação e exige saber o que aconteceu ao filho.
O que aconteceu ao filho é que foi parar aos Estados Unidos, onde divulga segredos técnicos sobre os submarinos em troca de exílio. Uma vez que foi descoberto, a família Hoffmann está a passar um mau bocado na Alemanha, mas tudo tem sido escondido do comandante reformado (devido, lá está, à sua condição venerada). Todos lhe dizem que o filho morreu no mar, ninguém se atreve a dizer-lhe que o filho é um traidor à pátria.
Ora, daquilo que percebi, são exactamente estes segredos técnicos que estão a inverter a batalha naval no Atlântico. Os U-Boots eram o terror dos mares, mas actualmente os aliados desenvolveram uma tecnologia que os detecta a grande profundidade e os submarinos do Reich têm sido sistematicamente dizimados pela Armada inglesa. É aqui que entra o comandante Jack Swinburne (um dos últimos papéis do falecido Ray Stevenson), um verdadeiro assassino de submarinos, que está a usar a guerra para se vingar da morte do filho, não importa os meios para atingir os fins. O seu filho, empregado na marinha mercante, pertencia a uma frota de navios que deviam ser escoltados por vasos de guerra, mas assim que chegaram os submarinos alemães os navios tiveram ordens para retirar e abandonar os barcos de mercadorias à sua sorte porque os britânicos não podiam dar-se ao luxo de perder mais navios. (Segundo as críticas que li, algo parecido com este episódio aconteceu mesmo na vida real.) Com a nova tecnologia, a dinâmica da batalha naval do Atlântico muda e agora são os navios ingleses que andam à caça de submarinos, o que Swinburne vai aproveitar por falta de outra missão na vida.
Na Alemanha, o engenheiro Robert Ehrenberg, devido às falcatruas com que pactuou no diário de bordo de Klaus, escapou a outro destacamento, mas apercebe-se de que o novo Comandante do submarino U-949 é um jovem imberbe acabado de sair da escola naval que não tem competência para comandar. Ehrenberg também sofreu uma tragédia pessoal: a sua casa foi bombardeada e a mulher e o filho morreram. Agora vive no seu próprio barco, atracado no cais. Uma coisa leva à outra e Ehrenberg voluntaria-se para um novo destacamento no U-949, onde acaba por ser ele a comandar uma tripulação inexperiente e mal preparada. Devido à incompetência do novo comandante, o submarino parte para o mar depois de sofrer um acidente indesculpável que não o deixa nas melhores condições. O leme não funciona muito bem e o U-949 tem tendência a ziguezaguear. É nestas circunstâncias que o U-949 se cruza no oceano com o implacável Swinburne que acaba de afundar uma frota de U-Boots, mas com a sua grande experiência Ehrenberg escapa-lhe por um triz. Swinburne consegue identificar o submarino fugitivo e chama-lhe jocosamente Herr ZigZag, empreendendo de seguida uma perseguição que recorda o capitão Ahab atrás da Moby Dick, o que não passa despercebido ao imediato do navio que o recorda precisamente de Moby Dick e que tenta devolver a razão ao comandante cego de vingança. Aliás, os confrontos entre o submarino U-949 e o navio de Swimburne (vai haver mais) estão muito bem filmados e dão-nos uma perspectiva muito nítida do que está a acontecer. Eu nunca mais olharei para um simples jogo de Batalha Naval da mesma maneira! Aproveito para realçar como “Das Boot”, não se focando em nazis mas nos soldados alemães recrutados para a guerra, nos consegue fazer torcer por ambos os lados. Estes marinheiros não são nazis, a maioria nem queria lá estar, e são igualmente vítimas da guerra, carne para canhão.
Entretanto, em Portugal. Lisboa, com a sua neutralidade, é um antro de espiões e o destino de toda a gente que quer fugir da guerra e obter um visto para a América. Forster chega a Lisboa para investigar um caso aparentemente simples quando descobre uma conspiração para roubar ouro alemão que vem do Japão para Portugal para comprar volfrâmio. Forster é traído e incriminado, e acaba por ter a ajuda da última pessoa no mundo que se esperava que aparecesse em Lisboa, mas não posso mesmo contar mais nada.
Aqui vou fazer outro aparte. Toda a vida ouvi falar com desdém das “fortunas à custa do volfrâmio” que se fizeram em Portugal na altura sem chegar a perceber muito bem a questão, aliás, uma questão de que se fala muito baixinho. Portugal só era neutro porque lhe dava jeito e, sim, colaborou com o regime nazi ao vender volfrâmio necessário à construção dos submarinos. Ah! Então era essa a razão da corrida ao volfrâmio. Sempre se aprende alguma coisa na televisão, até nas séries de ficção.
A série está tão bem feita que quase me enganavam, a uma alfacinha de gema, mas “Lisboa” foi filmada em Malta. A parte que quase me enganou foram umas arcadas que parecem mesmo a Praça do Comércio, mas se repararmos bem as paredes são amareladas e Lisboa resplandece de brancura (embora às vezes não pareça). O que contribui muito para esta “ilusão” de que estamos mesmo em Portugal é a presença de actores portugueses a sério, e não daqueles que aprendem umas linhas em português à pressa antes das filmagens. Aliás, um dos trunfos de “Das Boot” é que a série é falada na língua das personagens: alemão, francês, inglês e, agora, português nativo de Portugal. Gostei, gostei mesmo!
Lamento não poder explicar melhor porque é que esta série merece ser vista mas tudo o resto que podia acrescentar são spoilers. Direi apenas que não acredito no final de Forster, um final à fado, afinal, coincidente com os humores de Lisboa. Mas não penso que Forster fosse do tipo de agir assim. Por falar nisso, também não acredito que o Reich admitisse de volta um traidor, fosse por que motivo fosse. Mas se ajuda a história da próxima temporada...
Outra coisa que me incomodou as “memórias” foi a maneira como as pessoas do povo andavam vestidas em Lisboa em plenos anos 40. Isto é, andavam demasiado bem vestidas. As crianças tinham agasalhos e sapatos e tudo. Não falo dos ricos que frequentavam o casino (cônsules, embaixadores, diplomatas, espiões, empresários, amigos de Salazar, reis de Espanha no exílio…), falo da malta que se via na rua, do “povo que lava no rio”. Ora, a minha memória mais antiga é dos anos 70 e nem nessa altura o povinho andava tão bem vestido. Mas onde a minha memória não chega tenho as fotografias de família. Acho que “Das Boot” subestimou muito a miséria flagrante que se passava em Portugal (até em Lisboa), mas são realizadores alemães, que se pode esperar? Varinas a vender peixe na rua de pés descalços não lhes entra na cabeça, e isto foi 30 anos mais tarde. Mas, enfim, assim a série ficou mais bonitinha.
Piquinhices à parte, obviamente que adoro esta série. Não faço ideia se a história continua ou acaba aqui, mas com esta qualidade que venham mais temporadas.

Parece ou não parece a Praça do Comércio, assim de repente?


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes

PARA QUEM GOSTA DE: Das Boot, dramas de guerra, dramas históricos, espionagem, II Guerra Mundial

terça-feira, 24 de outubro de 2023

The Book of Eli / O Livro de Eli (2010)

Contém MUITOS spoilers. Quem gosta de filmes pós-apocalípticos e ainda não viu este deve parar de ler imediatamente e voltar depois. O aviso está feito.

O filme até começa bem. No género “pós-apocalíptico”, um viajante solitário é obrigado a sobreviver como puder. Trinta anos depois de uma guerra nuclear que destruiu o planeta (a palavra “nuclear” nunca é dita mas aquelas crateras e os fumos radioactivos não terão outra explicação…?) a água potável é rara e valiosa e já se acabaram os produtos de higiene como champô e sabonete. A cinematografia é espantosa e coloca-nos imediatamente neste mundo devastado, o que teria muito mais impacto se o género “pós-apocalíptico” não se tivesse tornado uma moda que vimos todos os dias…
Logo nos primeiros minutos do filme percebemos que este Eli é um durão. (Na verdade não temos a certeza se ele se chama Eli, apenas que tem um crachá na mochila a dizer “Olá, eu sou o Eli”, por isso vamos chamar-lhe assim.) Neste mundo há canibais e salteadores, e Eli é atacado por um gangue de 5 ou 6 que o querem roubar e possivelmente comer. Eli, armado apenas com uma catana, dá cabo deles todos, mesmo tendo um deles uma serra eléctrica a funcionar! (Vai ser importante mais à frente.)
Como acontece neste tipo de história, Eli sobrevive do que caça e do que encontra em locais abandonados. À noite, depois de procurar abrigo, gosta de ler um livro “misterioso” e de ouvir música num dispositivo electrónico. É este último “vício”, quando a bateria descarrega, que leva o solitário Eli a procurar uma povoação do tipo faroeste onde a recarregar. (Nota curiosa: o dono da loja de engenhocas é Tom Waits, o músico!)
É aqui também que aparece o vilão, o chefão lá do sítio, que tem todos os capangas à procura de um livro “misterioso”. Obviamente, este é o livro raro que Eli traz na mochila.

Último aviso: SPOILERS!!!
O chefão diz que este não é apenas um livro mas uma arma. Que com as palavras deste livro, que ele recorda de antes do apocalipse mas não lembra de cor, vai conseguir controlar toda a gente desesperada que ainda resta no mundo.
É aqui que está o “spoiler”. O filme quer fazer disto uma grande revelação. Que livro “misterioso” é este? Vou dar umas pistas. Logo nos primeiros minutos do filme, Eli faz citações bíblicas. O livro é grosso. Tem uma capa preta. Na capa tem uma cruz dourada. Qual livro será, qual será? Eu, sinceramente, tive esperança de que fosse o Necromicon de H. P. Lovecraft ou algo ainda mais obscuro. Mas não, é apenas a Bíblia. Acontece que após a guerra apocalíptica os sobreviventes queimaram todas as Bíblias por acharem que esta tinha contribuído para a guerra, ou que tinha sido mesmo a sua causa (e não podemos dizer que estivessem muito enganados…). As poucas Bíblias que escaparam são raras, e Eli tem uma. Assim que se apercebe disto, o chefão decide fazer tudo para lhe deitar as mãos, a bem ou a mal.
Cá está a metáfora, senhores e senhoras: a Bíblia é uma arma porque a religião é uma arma. Nem sequer é uma metáfora implícita porque o chefão verbaliza estas palavras aos capangas: este livro não é só um livro; é uma arma.
Aqui, comecei a ficar apreensiva. Estávamos num filme apocalíptico que de repente começa a virar no sentido evangélico. Mas vamos lá ver no que vai dar.
Bem, vai de mal a pior. Eli recusa entregar o livro, e diz mesmo a uma aliada que faz pelo caminho que ouviu “uma voz”, uma voz que o mandou ir para Oeste e proteger o livro até encontrar um lugar onde o possa deixar em segurança. Voz de Deus, alucinação? Preferi acreditar na alucinação porque já não estava a gostar nada da direcção em que o filme teimava em ir.
Perseguido pelo chefão e os capangas, mas auxiliado pela nova aliada, Eli continua a dirigir-se para Oeste. Entretanto temos umas cenas de porrada e tiroteio na estrada, à Mad Max, e Eli acaba por perder o livro. Mas, aleluia!, o final é tipo “Farenheit 451” e Eli, afinal, não precisava da Bíblia porque a tinha decorado toda! Assim, quando encontra novamente a civilização, exactamente onde a Voz lhe disse para ir, consegue recitar todas as palavras, versículo a versículo, qual Moisés apocalíptico.
Sim, leram bem, o objectivo deste filme é salvar a Bíblia, dê por onde der.
Mas há pior!



O pior
Ainda bem que não me apercebi disto. Quando li as críticas até me caiu o queixo. Então não é que Eli é supostamente cego? E não é que eu não dei por nada? E não dei por nada porque o filme quer fazer disto uma outra “revelação” chocante, e tenta por todos os meios enganar-nos para não o percebermos até à “grande revelação” de que a Bíblia de Eli sobreviveu à queima porque… está em Braille! Logo, Eli é cego.
Este é o gajo que dá conta de 5 ou 6 marmanjos, um deles com uma serra eléctrica. Este é o gajo que anda a direito numa estrada sem precisar de bengala. (Como é que ele sabe se não há um buraco no asfalto?) Sim, reparei que Eli dá muita importância à audição e ao cheiro, mas também o fazem todas as personagens de “The Walking Dead”. Certas vezes Eli segue algo com o olhar, e até espreita por uma janela, algo que nenhum cego precisa de fazer. E quanto à Bíblia em Braille, há pessoas não cegas que sabem ler Braille. Por exemplo, professores ou pessoas que têm invisuais na família. A Bíblia em Braille não quer dizer nada.
Até encontrei comentários sobre isto mais papistas do que o Papa (indo para além do filme), especulando que Deus teria dado visão a Eli enquanto este cumpria a sua missão e retirando-lha quando já não era necessária. Tudo isto para explicar porque é que Eli, sendo cego, era tão durão e eficiente. Sim, bem seria preciso intervenção divina porque não há maneira nenhuma de que alguém cego conseguisse fazer o que Eli faz. Ainda bem que não percebi que o homem era supostamente invisual (o filme não me convenceu da cegueira) ou teria achado isto tudo uma palhaçada descomunal.
Só faltou pregarem o Evangelho abertamente, mas implicitamente até o fazem à mesma. Eu pensava que estava a ver uma história sobre um sobrevivente pós-apocalíptico e saiu-me um super-Moisés da ala Republicana americana e religiosa, um filme cheio de armas e Bíblia como eles gostam. Oh, que desperdício de efeitos especiais e cinematografia! Que desperdício de actores! Que desperdício de ideias e cenários pós-apocalípticos!
Volta Mad Max, estás perdoado!
(Mas pelo menos percebi onde foram buscar a ideia do super-Morgan e das bombas nucleares em “Fear the Walking Dead”. Ah! Aquilo sempre me pareceu que caiu do céu aos trambolhões. Agora já sei.)

12 em 20

 

domingo, 22 de outubro de 2023

The Circle / O Círculo (2017)

[Facto irrelevante: esta foi a primeira vez que vi a Hermione (Emma Watson) depois de crescida.]

Mae é uma jovem com um curso de História que trabalha no atendimento ao cliente da Companhia da Água lá do sítio, um emprego ingrato e sem perspectivas. Quando uma amiga lhe arranja uma entrevista na empresa The Circle, Mae fica super entusiasmada e consegue o emprego, a princípio no Apoio ao Cliente também, mas que diferença! The Circle é uma empresa do tipo Facebook/Google/Apple com tiques de culto (se não mesmo um culto), com toda uma liturgia empresarial, palavreado e frases próprias. Os empregados são constrangidos a passarem lá o dia de trabalho, as horas de lazer e os fins-de-semana.
Vou fazer um parêntesis para explicar como é que estas monstruosidades surgiram, e aproveito para contar uma das minhas histórias de terror. Começou tudo com um inocente convívio empresarial para “reforçar os laços entre equipas”. Eu trabalhei numa produtora de televisão, nos anos 90, que pura e simplesmente não percebia que as pessoas tinham vidas para além do trabalho. Como estagiários sem grande escolha, éramos insidiosamente obrigados a ficar lá depois do trabalho (porque nos pagavam o jantar, porque nos pagavam o táxi se fosse preciso e fora de horas), a “conviver” com colegas e patrões por quem não tínhamos a mínima simpatia, quando a gente só queria ir para casa como pessoas normais. Entrávamos lá às 10h da manhã e podíamos sair depois da meia-noite, conforme os jantares de convívio se prolongassem e os patrões decidissem contar histórias e abrir mais uma garrafa. Todos nós, estagiários, tínhamos de os aturar de sorriso amarelo para conseguirmos o emprego. Só os mais velhos na empresa se podiam dar ao luxo de ir para casa a horas decentes. Era tortura. Penso mesmo que aquilo tudo era uma rampa de lançamento para o assédio sexual futuro: Agora ficam os estagiários todos, mais tarde ficamos só “tu e eu”. Obviamente, aquilo tudo me cheirava mal. O objectivo era que fôssemos uma “família”. Família o caraças. Na primeira semana de trabalho tive o azar de precisar de ir ao dentista de urgência para uma desvitalização e de ficar o dia em casa para recuperar (porque dói como o caraças e exige medicação que nos impede de funcionar). Mandaram-me embora por causa disso apesar de eu ter conseguido compensar o meu trabalho todo. Filhos da mãe! Só lhes desejo as dores que eu tive e que a produtora vá à falência (se calhar até já foi). Ainda por cima não me pagavam mais do que o ordenado mínimo, e a recibos verdes.
Mas este não é o caso de Mae, regressando ao filme, que recebe um ordenado chorudo bem como um plano de saúde. O pai de Mae sofre de esclerose múltipla e não tem meios para pagar a assistência de que necessita. A empresa é tão boazinha que inclui os pais de Mae no plano de saúde dela, o que a princípio os pais consideram um milagre. Mas, para ter direito ao plano de saúde, Mae tem de engolir um chip que, durante algumas horas, faz com que se consiga monitorizar tudo o que faz e por onde anda.
Mas isto não é nada. A empresa tem uma rede social, TruYou, que permite fazer movimentos bancários, compras e autenticações noutras plataformas que não têm nada a ver com redes sociais. Imaginem, por exemplo, que se podiam autenticar no vosso banco, fazer compras online, marcar consultas, matricular-se na escola, tudo com a conta do Facebook. (Que o Costa não leia isto, Céuzinhos, porque aquela da app COVID andou bem perto!)
Isto já é suficientemente arrepiante, mas há pior. The Circle já tinha desenvolvido um chip com geolocalização para ser implantado nos ossos das crianças dos empregados de modo a mantê-las “sempre controladas e seguras”.
De seguida, The Circle inventa uma mini-câmara esférica, pouco maior do que um berlinde dos grandes, que se pode colar onde se quiser. No “new speak” da empresa chamam-lhe SeeChange, uma maneira de manter uma vigilância permanente sobre os cidadãos sem que estes saibam que estão a ser vigiados, a princípio com a desculpa de detectar “criminosos e terroristas”. Mais uma vez a desculpa da segurança a sonegar liberdades e garantias. Eu chamo-lhe BIG BROTHER IS WATCHING YOU. A empresa diz que pode colocar as câmaras onde quiser, sem licença. (Não sei como é nos Estados Unidos, mas aqui não pode não senhor. Só as forças de segurança podem colocar câmaras de vigilância em lugares públicos. Os particulares só as podem colocar na sua própria propriedade. Ainda não chegámos à China.)
Parece que nenhum daqueles millenials que trabalha no The Circle, inclusive a licenciada em História, alguma vez leu “1984”, porque acharam uma excelente ideia. Ou, se não acharam, calaram-se. Afinal, é um bom emprego e um bom ordenado. É preciso não esquecer isso também.
The Circle faz-se paladino de causas nobres como a “transparência”, e convence Mae a dar o exemplo (a mesma Mae que precisa do plano de saúde para o pai). Mae vai passar a andar 24 horas com uma câmara SeeChange, e qualquer pessoa da rede social TruYou, em todo o mundo, a pode seguir/ver/comentar durante essas mesmas 24 horas, até a lavar os dentes.
Isto já me parece um filme de terror, especialmente porque é sub-repticiamente imposto aos empregados com uma lavagem cerebral progressiva, ao contrário dos concorrentes do “Big Brother” que estão lá porque querem. (Mas a gente devia pensar a sério no que anda a fazer com estes precedentes apresentados como diversão.)
Um dos followers de Mae faz um comentário engraçado: “Isto é o princípio de um filme-catástrofe?” Bem, que é o princípio de um filme de terror, é, e nem sequer original.
The Circle não fica por aqui. Com uma lógica retorcida, salienta que 80% dos americanos têm conta no TruYou, o que é muito menos do que os americanos que votam. E se, pelo bem da democracia, bastasse a conta TruYou para votar? E se, indo ainda mais longe, toda a gente fosse obrigada a ter uma conta TruYou e a votar? O processo de votação ficaria a cargo de The Circle, é claro, porque seria muito caro de implementar para o governo. Mas The Circle já tem a tecnologia, é só fazer com que o governo dê o aval.
E aqui temos, filme de terror completo. Imaginem votar pelo Facebook. Imaginem o Facebook a gerir as eleições de todos os países do mundo. Imaginem-nos a eleger quem eles quiserem. É aterrador.
Aconselho este filme a toda a gente que pensa que entregar a tecnologia das eleições a privados podia ser uma boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que abdicar da privacidade em prol da segurança (ou seja do que for) é boa ideia. Aconselho a toda a gente que pensa que não tem nada a esconder e pode (e deve) mostrar tudo, seja qual for a razão que o move. Aconselho a toda a gente que apoiou a app COVID. Aconselho a quem não leu “1984”. Aconselho a quem não leu “1984” que faça um favor a si próprio e vá já correr a ler.
Voltemos novamente a “The Circle”. Havia aqui muitas consequências catastróficas a explorar, mas o filme não cumpriu a promessa. Sim, vemos uma das consequências, mas os resultados podiam ser (e seriam) muito piores. No fim, parece que o filme nos quer dizer “a tecnologia veio para ficar, não há volta a dar, mas os passos têm de ser bem medidos”. Lamento que “The Circle” não tenha sido mais ambicioso. Tinha tudo para o ser.

13 em 20


domingo, 15 de outubro de 2023

Chucky [série TV] (2021 - ?)


Admito que não me lembro de ver Chucky (“Child's Play”) o filme e as suas muitas sequelas. Sei que vi alguma coisa, não me lembro de quanto ou quando. Já foi na outra encarnação. Também confesso que achei que uma série de TV sobre Chucky ia ser um completo desastre. E enganei-me. Talvez o realizador tenha pensado, devido ao sucesso de “Annabelle” que já vai na segunda sequela, que era altura de ressuscitar o Boneco Assassino mais assassino de todos, até porque Chucky não gosta de ficar para trás em coisa nenhuma.
Vou ser muito franca. Só há duas maneiras de ver isto: a sério ou às gargalhadas. Eu pertenço ao segundo campo. A certa altura Chucky entrevista (não perguntem!) uma boneca chamada Belle que fica ali muda e estúpida. Se isto não é uma farpa não sei o que será. Aliás, principalmente na segunda temporada, temos homenagens/paródias a “Halloween”, “Apocalipse Now”, “A Laranja Mecânica”, “O Silêncio dos Inocentes”. “O Exorcista” e “Texas Chainsaw Massacre”.
Mas já me estou a adiantar. A série começa quando o adolescente Jake Wheeler compra um boneco Good Guy (Chucky) numa venda de garagem no intuito de o desmantelar para uma exposição de arte. O pai de Jake não aprova as actividades artísticas do filho, e chega mesmo a destruir a peça em que Jake andava a trabalhar, porque são pobres e a arte não paga a universidade. O pai dele tem razão, devo dizê-lo, mas nota-se nele muita raiva e amargura, agravada pelo facto de que o seu irmão gémeo está muito bem na vida.
Chucky apercebe-se disto tudo, “apresenta-se” a Jake como o seu “melhor amigo até ao fim” e começa a tentar convencê-lo a matar o pai. Quando não consegue, Chucky trata do assunto ele próprio. Quanto ao gato de Jake, teve de morrer porque era um “parvalhão”. É assim que Jake e Chucky se mudam para a casa do tio de Jake, onde não há problemas de dinheiro.
Os outros protagonistas são Lexy, uma rapariga mazinha que está prestes a ter uma grande lição, e o namorado de Jake, Devon. Os três descobrem a personalidade assassina de Chucky mas têm medo de contar a alguém “porque não quero ser internada”, como diz Lexy. Em poucas semanas, Chucky destrói a vida aos três.
Devo dizer que fico embasbacada com aquilo que a saga Chucky consegue fazer:
1) consegue convencer-nos de que ele existe
2) consegue convencer-nos de que ele é perigoso!
Já as piadas de Chucky podem não ser para todos. Por exemplo, “vou matar a tua irmã, queres vir?”.
Qualquer pessoa consegue acompanhar esta série mas não tenho dúvidas de que “Chucky” será muito mais satisfatório para quem viu as sequelas. Por exemplo, a certa altura temos flashbacks dos anos 80 (quando Chucky ainda era o serial killer Charles Lee Ray, antes de este, através de vudu, ter espalhado a sua alma/essência (?) pelos bonecos Good Guy e por algumas pessoas também...!!!) que me deixaram completamente perdida. Quem era aquela gente?! Quem é Nica, quem é Tiffany?
Mas se calhar o melhor de “Chucky” é que o enredo é de loucos e não interessa muito perceber. Por exemplo, Chucky tem um filho que também era um boneco, mas agora é uma pessoa de carne e osso não-binária e tão não-binária que são duas pessoas! Falta-me aqui um filme qualquer para perceber isto. Convenhamos, é de loucos!
Mas voltando aos miúdos, os três apercebem-se de que Chucky os está a tentar convencer a matar alguém, o que é estranho porque Chucky não precisa de ajuda. Que plano maquiavélico anda ele a engendrar que precisa de sujar as mãos de inocentes?
Volto a dizer que “Chucky” não é para se ver “a sério”, mas os fãs do Boneco Assassino não vão sair daqui insatisfeitos. Annabelle, põe-te a pau porque Chucky regressou e não gosta de concorrência.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: Chucky, bonecos assassinos, humor negro, sangue que se farta

 

domingo, 8 de outubro de 2023

Orphan / Órfã (2009)

O que eu gosto mais neste filme de terror é que não implica o sobrenatural. Não há aqui nenhuma criança possuída pelo diabo, filha do diabo ou com poderes maléficos. É tudo tão realista que eu diria mesmo que é educativo: toda a gente devia ver este filme com muita atenção e descobrir que conhece pelo menos uma Esther, se não duas ou três. É útil conhecer as Esthers desta vida para não fazermos o papel de parvos que os pais adoptivos fizeram. Quando se conhece uma Esther a única solução é fugir.
Esther é uma órfã russa adoptada por um casal americano já com outros dois filhos pequenos. Este casal perdeu o último filho, nado-morto, e para superar o desgosto decide adoptar uma terceira criança a quem pretende dar o amor que teria dado ao filho falecido. Mas assim que Esther chega a casa, coisas más começam a acontecer. Algumas coisas teriam sido evitadas se os pais não tivessem uma política de não trancar as portas. Eu sou uma grande crente em portas trancadas, já por causa das Esthers. Como diz o ditado americano: boas vedações fazem bons vizinhos. Não é que uma porta trancada consiga impedir uma Esther de entrar, mas dissuade muito.
É impossível não empatizar com Esther. Ela tem 9 anos, é bonita, talentosa, precoce, inteligente, pinta e toca piano, e veste-se como uma bonequinha gótica (versão criança). Adorável, na verdade. As Esthers são sempre adoráveis. E, no fundo, pensamos: pobre criança, sabe-se lá o que já sofreu na vida, se calhar foi isso que a tornou assim. Não é claro que traumas de infância tenham tanta influência na formação de um sociopata, mas bem não podem fazer. E é tudo o que posso dizer do enredo.
“Órfã” é um daqueles filmes de terror raros, baseados num drama realista e interpretações brilhantes de grandes actores. Até nos papéis secundários, por exemplo, em que CCH Pounder (a detective Claudette Wyms de “The Shield”) brilha nos seus dez minutos como Irmã Abigail. Aqui, todos os actores deram o máximo.
Mas as melhores interpretações vão sem dúvida para os miúdos, especialmente as duas meninas, sempre no centro do enredo. Confesso que julguei que Isabelle Fuhrman (Esther) fosse daquelas adolescentes de 12 ou 13 anos que conseguem passar por mais novas e caiu-me o queixo quando pesquisei que a actriz tinha apenas 10 anos à altura. Uma interpretação verdadeiramente arrepiante para alguém desta idade e uma actriz a ter debaixo de olho. Li que entrou nos “Hunger Games” mas não reparei nela. Gostaria muito de a ver num papel a sério hoje em dia.
E depois temos Vera Farmiga, a força da natureza, no papel da mãe. Já aqui falei de Vera Farmiga e de como esta actriz me surpreendeu como Norma Bates em “Bates Motel”. Foi de ficar apaixonada. Curiosamente, já tinha visto este filme mas não me lembrava, e não dei por Vera Farmiga aqui porque, boa actriz como ela é, Farmiga sabia muito bem que este não era o espectáculo dela, mas de Fuhrman. Agora que conheço o talento de Vera Farmiga consegui apreciar todos os pormenores, todas as subtilezas e a sobriedade que lhe exigia o enredo. Vera Farmiga devia fazer mais filmes de terror, com aquele seu ar às vezes tão inocente e às vezes tão perturbador. Mas gosto tanto dela que até a podia ver em comédias românticas e musicais se me aparecessem à frente (a actriz canta muito bem, ainda por cima!).
Quase dava um 20 em 20 a este filme, excepto por uma coisinha no desfecho que achei algo implausível. Isto é uma opinião minha, muito pessoal, daquilo que conheço da experiência. Penso que uma sociopata tão inteligente já devia ter “resolvido” a sua vida de uma maneira mais engenhosa. Mas não posso explicar esta última frase sem cometer spoilers, por isso…

19 em 20

 

domingo, 1 de outubro de 2023

Child 44 / A Criança nº 44 (2015)

“Child 44” é um filme ambicioso, uma mistura de “1984” com “Mentes Criminosas”, que nem sempre está à altura da ambição. Leo Demidov é um órfão e herói de guerra na União Soviética. Nos anos 50, trabalha para um ministério do regime que se dedica a prender dissidentes (uma pré-KGB, imagino). Na vertente “1984”, um dos subalternos da mesma equipa de Leo prepara-lhe uma armadilha: denuncia-lhe a esposa, Raisa, como traidora. Na União Soviética de Estaline ser acusado era já ser culpado, e Leo só tem uma solução para se salvar a si próprio: incriminar a mulher. Mas não o faz, mesmo sabendo que se condena a ser “culpado por associação”. Como consequência, é despromovido e enviado para uma terrinha do interior. A mulher, professora, também é despromovida a contínua e obrigada a executar trabalhos menores como lavar o chão.
Entretanto, a parte “Mentes Criminosas”. O filho de um dos outros caça-dissidentes, ainda rapazinho, aparece morto junto à linha de comboio com lacerações suspeitas no corpo. Mas na União Soviética de Estaline não pode haver homicídio (Estaline considera o homicídio um “pecado capitalista”), e por isso a morte do rapaz é considerada um acidente, para grande revolta do pai do miúdo que sabe de certeza que o filho foi assassinado. Mas, para não arranjar mais problemas à família, até o pai revoltado concorda em fingir que acredita na versão oficial.
Leo é transferido, mas não consegue parar de investigar. Descobre que não foi caso único e que já há mais de 40 rapazinhos mortos da mesma maneira ao longo da linha de comboio, todos atribuídos a causas acidentais e/ou com vários inocentes punidos por algo que não fizeram. Leo percebe que existe um assassino (serial killer, se eles usassem a palavra) que opera utilizando as linhas de comboio e faz tudo para o deter, mesmo tendo de lutar igualmente contra o regime que nega as evidências. É que o filho do amigo foi a criança nº 44.
Tudo isto parece muito interessante, um serial killer num regime distópico tipo “1984”, e ambas as histórias prendem a atenção. De tal maneira que acabam por se atrapalhar uma à outra. É caso para perguntar, o que achamos mais arrepiante? Um regime em que se podia ser abatido a tiro só por causa de uma denúncia falsa, ou um serial killer que mata rapazinhos?
Mas o filme não fica por aqui em termos de drama. Ao mesmo tempo, Leo descobre que a sua esposa, Raisa, não se casou com ele por amor mas porque tinha medo de represálias se o recusasse. Inclusive, fingiu-se grávida para que ele não a incriminasse quando a denunciaram injustamente. Ui, isto deve doer! Por outro lado ainda, Leo confronta-se com o que fez quando era ele o perseguidor e não o perseguido, e questiona-se se não será um monstro. Encontrar o assassino dos miúdos torna-se a sua missão de vida, a sua redenção. Conseguirá redimir-se? Conseguirá conquistar a esposa, desta vez pelo amor e não pelo medo?
O problema do filme é estar demasiado recheado de pontos de interesse que acabam por não ser desenvolvidos como mereciam. Mal nos começamos a interessar por um, aparece logo outro. O fim, infelizmente, não faz jus à premissa. Acredito que a ideia soava muito bem no “papel”, mas falhou na execução.

13 em 20 (porque a ideia era boa)