Este vai ser filosófico.
Sempre me disseram, na escola, que o homem é um animal social, um animal gregário. Gregário, só se for como o lobo.
Começou tudo no tempo das cavernas, quando éramos caçadores/recolectores. O homem pensou que sozinho caçava um coelho ou um veado, mas em equipa podia caçar um mamute e a tribo toda tinha carne para muito tempo. Lógica de alcateia. Colaborar para encher a barriga.
Com a chegada da agricultura, o homem tornou-se sedentário. Depois de uma vida inteira a trabalhar o solo, a construir uma casa, a crescer um vinhedo, o homem chegava à velhice e pensava: quando eu morrer tudo isto se perde, o que me deu tanto trabalho a conseguir, o que passei anos de enxada a labutar, todo o meu trabalho, todo o meu valor. Para que não se perdesse, o homem arranjou uma família. Mulheres e muitos filhos que lhe mantivessem vivo o nome e dessem continuidade ao seu legado. Mais do que isso, o homem abastado doaria grão para os sacerdotes do templo, metal para fazer um novo ídolo, para que alguém lhe escrevesse o nome num pergaminho como “Fulano, muito rico em grão e metal, doou isto”. Não podendo ser imortal, o homem quis que ao menos a sua labuta lhe imortalizasse o nome. E que o imortalizasse perante quem? Perante a sociedade. Quem mais lhe recordaria os feitos e o valor? A sociedade serve o homem porque lhe espelha a vaidade. O que é o homem abastado sem uma sociedade que o reconheça? Não é ninguém. É o lobo solitário que morre bem alimentado, mas sozinho.
Chegamos aos nossos tempos. Agora as vaidades são outras, as necessidades são outras. Mas continuamos os mesmos lobos de sempre. Vivemos em sociedade para encher a barriga e alimentar a vaidade. O carro, o emprego, o curso, a viagem, os amigos que tem de se ter, a família que fica bem nas redes sociais. Ninguém quer morrer sozinho e ignorado, por muito bem alimentado.
E de repente chega um vírus mortal. No outro homem, onde antes se via um membro de equipa e um espelho da própria vaidade, vê-se agora a morte. A sociedade já não serve o homem, pelo contrário, torna-se uma ameaça à sua sobrevivência. O homem foge do homem. Foge da alcateia para as montanhas e regressa ao seu lugar de lobo solitário. Quando a sociedade se desagrega e tudo escasseia, o homem ataca-se entre si pelos bens que ainda restam: é o homem lobo do homem.
Vêm estas considerações a propósito de um filmezinho despretensioso de 2009, “Carriers” / ”Pandemia", que algum canal de televisão foi repescar na certeza de que os espectadores iam logo querer vê-lo nos tempos que correm. Além deste ainda tenho outro para ver, chamado “Contágio”, sem contar com o outro do Dustin Hoffman, que também tem passado muito frequentemente.
Em “Pandemia”, um vírus mesmo muito mortal, com efeitos muito rápidos semelhantes ao ébola ou à lepra, mata todos os hospedeiros e transmite-se por inalação de partículas. Dois irmãos, a namorada de um deles e a amiga do outro, fogem dos centros urbanos para se refugiarem numa estância balnear isolada onde os irmãos passavam férias quando eram miúdos. Por esta altura a sociedade já se desagregou. A estrada está deserta. Já não há gasolina para abastecer. A maioria da população já morreu. Não se vê ninguém. É quase o pós-apocalipse, mas ainda não chegaram lá. O intuito é sobreviver o tempo suficiente até que a doença desapareça, isto é, que todos os infectados morram e o vírus deixe de se transmitir por falta de hospedeiros. Para sobreviverem, os quatro concordam num conjunto de regras implacáveis: quem está infectado é como se já estivesse morto, deixa-se para trás.
O ambiente despovoado do filme lembrou-me muito de “The Walking Dead”, mas sem zombies, só com mortos, e trouxe-me esta outra reflexão: até no apocalipse zombie a sociedade continua a servir o homem. Os zombies são uma ameaça. A união em grupos coesos permite combater essa ameaça e a de outros grupos hostis. Em “Pandemia”, nem para isso a sociedade serve. É o completo regresso à sobrevivência do mais apto. Os quatro jovens são aptos, saudáveis, e querem sobreviver a todo o custo. E do ano de 2021, especialista que me tornei sem querer, até digo que eles estavam a fazer tudo bem: o uso correcto de máscaras, luvas e desinfectante, o que me surpreendeu porque geralmente estes filmes acabam sempre por desleixar os pormenores.
Na estrada, encontram um pai com uma criança infectada, e deixam-nos para trás. A namorada fica infectada, e deixam-na para trás. Um dos irmãos é mais impiedoso do que o outro, uma espécie de Shane de “The Walking Dead” que já percebeu que para sobreviver pode ser preciso matar. E mata. Logo da primeira vez que precisa de gasolina, mata duas inocentes num carro que só querem o mesmo que ele: fugir e sobreviver. O outro irmão parece condenar, mas vai tolerando porque também quer sobreviver. Todavia, nota-se na personagem uma crescente desilusão, um crescente nojo e antipatia. Já nem os laços de sangue os unem. Quando o irmão impiedoso também fica infectado e se recusa a dar-lhes as chaves do carro para continuarem sem ele, o outro irmão dá-lhe um tiro. Só fez, afinal, como lhe disse o irmão mais velho: “Fui eu que te ensinei tudo”.
No fim, este irmão e a amiga conseguem chegar à estância da praia, completamente abandonada. Já não se falam, já nem conseguem sequer olhar um para o outro depois das atrocidades que cometeram para chegar ali. Vai cada um para seu lado. Um homem e uma mulher jovens, dos poucos sobreviventes no mundo, e nem sequer se suportam de modo a fazer sexo e continuar a espécie. Mas por esta altura a gente questiona-se: e esta espécie de animais sem escrúpulos merece continuar?
O que distingue o homem do animal é a consciência moral. Talvez o outro irmão, o que não tinha escrúpulos nem remorsos, conseguisse continuar a viver com a namorada como se nada tivesse acontecido, como animais, como lobos. Se tivessem ambos sobrevivido. Mas sobreviveram os que tinham consciência, os que se repugnam do que fizeram. E agora nota-se-lhes nos rostos que se perguntam também: valeu a pena? Somos os mais aptos, somos os sobreviventes, mas sobrevivemos para quê se nem nos conseguimos olhar no espelho que é o rosto um do outro?
Todas estas reflexões não vêm deste filme em particular, “Pandemia”. Não é um filme assim tão bom, embora seja melhor do que as críticas o pintam. Estas reflexões vêm de muitos outros filmes como este, cenários apocalípticos que nos convidam a questionar o que é que nos distingue de uma alcateia de lobos. O que é verdadeiramente importante na existência humana. A vida, e não apenas a sobrevivência. Lembrou-me também as sábias palavras bíblicas: de que importa ganhar o mundo e perder a alma? Estes dois personagens podem ser as últimas pessoas vivas no planeta, mas perderam a alma pelo caminho. Tanto queriam sobreviver a todo o custo que agora a vida já não lhes interessa. Irónico, não é?
14 em 20 (o filme não é assim tão bom)