“O Céu e o Inferno” é o quarto livro de Allan Kardec na explanação da doutrina Espírita, seguindo “O Livro dos Espíritos”, “O Livro dos Médiuns” e “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.
[Aproveito para fazer desde já o disclaimer do costume: não conheço nem jamais tive contacto com a religião Espírita dos nossos dias, pelo que não posso ter qualquer opinião sobre esta. Este artigo (tal como os anteriores) debruça-se unicamente sobre os livros e a doutrina neles apresentada sob um ponto de vista filosófico moderno.]
Allan Kardec era um homem de intelecto brilhante e um escritor talentoso. Neste livro, é um verdadeiro prazer como ele prova por A mais B (teologicamente) o absurdo que é o Inferno de fogo onde as almas ardem sem se consumir. Eu até consegui rir-me.
Mas depois Kardec sai-se com esta:
Sem nos remontarmos aos tempos primitivos, olhemos em torno a gente do campo e perscrutemos os sentimentos de admiração que nela despertam o esplendor do Sol nascente, do firmamento a estrelada abóbada, o trino dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, o vergel florido dos prados. Para essa gente o Sol nasce por hábito, e uma vez que desprende o necessário calor para sazonar as searas, não tanto que as creste, está realizado tudo o que ela almejava; olha o céu para saber se bom ou mau tempo sobrevirá; que cantem ou não as aves, tanto se lhe dá, desde que não desbastem da seara os grãos; prefere às melodias do rouxinol, o cacarejar da galinhada e o grunhido dos porcos; o que deseja dos regatos cristalinos, ou lodosos, é que não sequem nem inundem; dos prados, que produzam boa erva, com ou sem Flores.Ò Kardec, ias tão bem! Então o homem do campo é um bruto sem sensibilidade artística que não sabe apreciar o canto das aves, a beleza do nascer do sol, o suave burburinho dos regatos? Nunca ouviste, ò Kardec, as músicas e os poemas da gente do campo, mesmo analfabeta, passados oralmente de geração em geração?
Só por causa disso, ficas já condenado a uma vida no campo para corrigires esse snobismo que só te fica mal. E como a vida no campo até é bem pacata e saudável, de certeza que até vais gostar e não te condeno a nada de desagradável. (Muito boa gente paga férias em quintas, a tratar da galinhada, para descontrair do stress da cidade.)
Mas encontramos este snobismo de classe alta parisiense do século XIX muitas vezes ao longo do livro, uma marca inequívoca da época. Um dos Espíritos que se comunica com a sociedade de Paris, depois de exortar à caridade, diz mesmo algo assim: “abstende-vos de vícios e de luxos no vosso trajar, cingindo-vos ao necessário à vossa posição…” Isto é, quem tem posição social pode gastar mais um bocadinho em roupa, a caridade que se lixe, para não fazer má figura na “boa” sociedade. Já o pobre, que não tem “posição” a manter, pode andar todo esfarrapado que não faz mal. Ó Espírito, Espírito, olha nem sei que te dizer. Há muito bom Espírito aqui encarnado que também acha que a caridadezinha o há-de salvar, com conta peso e medida, que uma pessoa de posição não pode andar por aí de ténis chineses e sem roupa de marca.
Enfim, fica o reparo, e avancemos. O Espiritismo não aceita a ideia de um inferno de fogo (Kardec prova a sua impossibilidade) nem de um Céu de eterna contemplação com anjinhos a tocar harpa.
Sobre o inferno, Kardec diz algo que a minha mãe sempre disse também: “naquele tempo os homens eram tão maus que tinham de ser assustados com o inferno para não fazerem tantas maldades”. É o que Kardec diz, que numa fase anterior de progresso Deus permitiu que as ideias do inferno de fogo se mantivessem porque os homens ainda não tinham capacidade de compreender conceitos mais abstractos.
Segundo Kardec, o Purgatório é aqui na Terra. Permito-me discordar. Isto aqui é mais do que o Purgatório; é o Inferno mesmo. Mas Kardec não viu. Sempre houve horrores, em todas as épocas, mas Kardec não viu as duas guerras mundiais. Não viu os campos de extermínio. Não viu Hiroxima e Nagasaki. Não viu o Vietname e o Cambodja. Não viu a Síria e o Estado Islâmico. Não viu os glaciares a derreter, os fogos na Austrália. Estes sim, verdadeiros infernos, de fogo e tudo.
Depois de ler já bastantes livros de Kardec, confesso que gostaria imenso de ter com ele uma conversa pós-isto-tudo e pós-existencialismo. Os acontecimentos do século XX fizeram muita gente voltar as costas a Deus de forma irreversível. Tenho percebido, dos livros, que Kardec estava convencido de que o Espiritismo ia tornar-se uma doutrina de massas. Não tornou, mas por outro lado nunca antes a ideia da reencarnação (e do karma, por via oriental) foi tão generalizada. O que eu dava para saber a opinião de Kardec sobre isto também. E quem sabe, se a teoria de Kardec é verdadeira, um dia ainda teremos essa conversa.
Em suma, no Espiritismo não existe o inferno de fogo mas existem expiações, no mundo material e no mundo espiritual, consoante as más obras do Espírito, algumas tão difíceis que nada devem às do inferno clássico. Os Espíritos mais aperfeiçoados não vão para um Céu de contemplação e de inércia, antes têm missões e ocupações na manutenção do universo.
Explicados os pontos doutrinais, chegamos à parte mais interessante do livro (direi mesmo de todos os livros de Kardec) que são as comunicações dos Espíritos. Algumas delas davam romances. Uns dizem-se felizes, outros estão em sofrimentos vários, outros estão assim-assim. Mas o que mais me interessa é a condição dos suicidas. O Espiritismo não podia ser mais severo para com eles, quase como se fosse o maior pecado que uma pessoa possa cometer. Se eu fosse de censurar livros, toda esta secção sobre o suicídio podia bem ser extirpada porque se chega às mãos de uma pessoa deprimida ainda lhe inspira o suicídio mais depressa. Temos de entender esta parte à luz da época, antes da Psicologia. O suicida é o mais severamente censurado porque perdeu a esperança, porque não acreditou na Bondade de Deus. É mais censurado, acredite-se, do que o ateu que não acredita sequer em Deus. Porque acreditar em Deus e perder a esperança na sua Bondade é considerada a afronta mais grave ao Altíssimo. (A eutanásia, mesmo em casos de grande sofrimento, é igualmente condenada porque o sofrimento é considerado uma prova a suportar com resignação para que o Espírito consiga expiar faltas passadas e progredir.)
Ora bem, sendo assim, e como já sei que me está reservado um “lugarzinho” no abismo e nas trevas e no isolamento, vou aproveitar para falar agora enquanto me deixam. Se eu acreditasse em Deus à luz desta e de outras doutrinas semelhantes (a católica incluída), também acharia que Deus é um grande sádico. Vejamos, Deus cria uma alma imperfeita já no intuito de a submeter a diversas e dolorosas provações para que esta se aperfeiçoe e atinja a perfeição, sem lhe dar hipótese de abandonar o “jogo”. Enquanto Ele, Deus, assiste. Oh, sim, Deus dá o livre-arbítrio ao homem de se aperfeiçoar ou não. O homem tem toda a liberdade… para fazer o que Ele quer. Se não fizer, leva na cabeça até aprender que Deus é Bom e se submeter à sua Bondade. Malta que não acha que Deus é Bom, malta que acha que Deus não existe ou que não precisa Dele, para o abismo das trevas com eles, que é uma espécie de solitária com privação sensorial. Não, estas ideias de Deus já não fazem sentido nos dias de hoje. Hoje, o homem exige escolher uma determinada via porque a deseja (mesmo que seja a via do Bem) e não admite a imposição de Deus. Pode, inclusive, desejar seguir a via do Bem sem aceitar qualquer deus, cristão ou outro.
A Justiça de Deus é muito bonita quando falha a dos homens, mas nada disto resolve a questão de fundo, que é a de um Criador originar criaturas imperfeitas para as submeter a provas e castigos (com ou sem o conceito do Pecado Original e da Queda, que ao fim de contas vai dar ao mesmo argumento). Nem explica como é que um Deus de Bondade cria um mundo em que tudo o que vive tem de se alimentar de tudo o que vive para sobreviver. Quem é que achou que isto era uma boa ideia? Que mal fizeram os bichinhos para serem comidos vivos, para por sua vez alimentar outros bichinhos? Que Mal fizeram eles a Deus? Outra pergunta que os Espíritas do século XIX não acharam relevante. Como se dizia acima, “os homens eram tão maus, etc”. Os do século XIX ainda tinham muito caminho a percorrer também.
Por outro lado, na altura não se conhecia o que se conhece agora sobre psicopatas sem empatia, e eu adoraria ouvir o que é que os Espíritos “modernos” têm a dizer a isto.
Quanto ao Céu, nesta doutrina, ou melhor, a progressão de um Espírito a um ponto em que já não é obrigado a encarnar, também tenho algumas dúvidas. Este estado só seria atingido quando o Espírito está depurado de todas as imperfeições. Ora, não sendo imperfeito pode ter ganhado qualidades, mas perdeu as imperfeições inerentes à natureza humana. E de facto a doutrina classifica estes Espíritos mais como na categoria dos anjos (ou quase, conforme o depuramento), o que implica o fim da sua humanidade e o começo de uma nova forma de existência. Onde é que fica a individualidade nisto tudo? O que é o Espírito depois de ser humano quando já não o é? Tem ainda livre-arbítrio, na prática, ou só consegue fazer o Bem? E perdendo todas as imperfeições, tem ainda a capacidade de escolher o Mal? E se ainda tem capacidade (livre-arbítrio) para o Mal, poderá mesmo considerar-se perfeito em virtude? É que não é simples.
O Céu segundo o Espiritismo é muito mais apelativo do que o clássico, beatitude e contemplação eternas que, convenhamos, seria uma seca. Tal como existem diversos níveis de expiação, também existem vários níveis de Além “menos mau” onde se agregam os Espíritos em semelhantes fases de progresso. E todos me suscitam dúvidas. Não sei, não sei mesmo, se quero passar a eternidade rodeada de pessoas. Já dizia o outro, “o Inferno são os outros”, e a ideia de sair daqui para continuar rodeada de pessoas, que só servem para me provocar cólicas e cabelos brancos, subitamente faz-me achar o tal “lugarzinho” um local mais agradável. Porque também já dizia o outro, “antes o Inferno contigo do que o Céu sem ti”. O que eu quero mesmo, e muitas outras pessoas também, Deus está farto de saber. Nos dias em que este livro foi escrito isso nem era considerado uma possibilidade. Mas eu confio que as coisas mudaram, e agora que ninguém me venha acusar de falta de Fé e de duvidar da Bondade de Deus.
Mas há dias, confesso, em que desejo que os ateus tenham razão e não haja nada depois da morte, nem Céu, nem Inferno, nem reencarnações. Só o desligar do cérebro e o fim. Eu dou-me bem com esta ideia, mas há quem não a suporte (especialmente se a vida é madrasta) e qualquer religião que forneça esperança é melhor do que a falta dela.
“O Céu e o Inferno” de Allan Kardec, para além de documento histórico valioso, oferece motivos de reflexão às pessoas sem ideias dogmáticas que se interessam por estas coisas da espiritualidade. Às outras, não dirá nada.