Quando eu era miúda tive, durante anos, um velho professor de História que despertou em mim toda a reverência que por ela tenho, mas discordávamos numa coisa, o velho e eu, porque ele dizia que a História não se repetia e eu a ver que sim, mesmo ali debaixo dos nossos narizes. (Agora que penso nisso, ele era daquelas pessoas que, apesar do inegável valor intelectual, não via muita coisa que devia ver, e se pouco via muito menos previa.)
Como eu gostaria agora de lhe telefonar, caso ainda fosse vivo, o que desconheço, e provar-lhe por fim:
- O que é que eu dizia, s'tor?! Ela repete-se! Ela repete-se!
Já sei que ele ia responder:
- Rapariga, a História não se repete! - e depois repetir, com voz mais alta e gutural: - A História nunca se repete! - (ele também se repetia, viram?) - Os tempos não são iguais aos de 1929!
- Ò s'tor, a merda é igual, o cheiro é que é diferente! Deve ser a isso que chamam zeitgeist. Eu não falo a língua mas cheira cada vez pior, como aqueles cadáveres de animais que ficam ao sol e cada vez que lá se passa mais agoniam e menos estranham. Assim está o cheiro da coisa: cada vez mais nauseabundo e nós cada vez mais habituados. Podem dizer que ninguém sabe o que vai acontecer a seguir mas este caldinho devia ser reconhecido à légua. Não dou 10 anos até que todo o mundo se envolva em deflagrações, aqui, ali e acolá, fingindo que não, que não é a Terceira Guerra Mundial tal como Roma se recusava a admitir que havia brechas nas fronteiras bárbaras.
- Qual Roma qual carapuça! Roma caiu devido à corrupção!
(Silêncio.)
- Ò s'tor, o s'tor está morto, não está?
- Como é que sabes, rapariga?... Eu não te disse. Mas sim, já morri há uns anos. Foi o tabaquito...
- Pois. Isso explica que não veja os telejornais. É fácil perceber que está morto. Porque agora a corrupção é tão grande que não digo que seja preciso ir buscar os cestos da Revolução Francesa nem a cave sórdida da Revolução Russa (porque isso faz muita porcaria, e agora até já inventámos injecções que fazem o mesmo serviço sem sujar o chão) mas não acredito que isto vá lá sem rolarem cabeças. Bem em breve da Europa se erguerá a Besta, se não se ergueu já na América, e lá voltamos atrás outra vez.
- A História não volta atrás!
- E, no entanto, ela repete-se!
- Eu acredito na Humanidade e no seu progresso!
- Eu sei, s'tor, foi consigo que aprendi isso. Mas o mundo tem periodicamente uma necessidade autofágica de se alimentar do seu próprio sangue. O mundo, s'tor, é um vampiro.
- Foi depois das maiorias atrocidades que o mundo deu os mais importantes passos do Humanismo!
- Concordo de novo. Venham pois elas, e o mais cedo possível.
- Rapariga, não pode haver uma Terceira Guerra mundial porque os russos e os americanos têm armas nucleares capazes de destruir o mundo...
- Ó s'tor, páre lá com isso, o muro já caiu. Olhe, você ainda era vivo, não se lembra?
- A memória pós-morte fica afectada. Pois foi, já caiu o muro.
- Caiu o muro e agora andam todos ao mesmo, russos, americanos, chineses e até sul-americanos e iranianos: possuir os recursos naturais para vender quinquilharias. Olhe s'tor, isto desde o Cro-Magnon não mudou nada. Nadinha. E quando as tribos se encontram acaba tudo à mocada. No meio disto tudo, só não será a Europa a levar mais porrada se não se erguer a Besta. E ela erguer-se-à do lodo no momento oportuno. Graças aos cegos, s'tor, graças aos cegos e àqueles que pensam que em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Evitei comentar o que se passa nesta terra, porque ele viu com os seus próprios olhos votos serem despejados das urnas para serem queimados no tempo de Salazar, mas não viu Manuel Alegre, companheiro dos 25 de Abris, admitir na televisão que o actual primeiro-ministro fez batota nas eleições internas do partido e achar isso "normal". Com o tempo tudo se torna normal. Queimar judeus, queimar palestinianos... Queimar pretos no Zimbabué, então, não interessa mesmo nada. Mais cólera, menos cólera, de cólera estamos todos a rebentar!
É num ano negro que vamos mergulhar, por isso celebrem bem o que resta deste! Até nos foi dado mais um segundo. Os cientistas, esses novos deuses da Humanidade, acrescentaram mais um segundo ao tempo eterno porque a Terra gira e não usa relógio. E, no entanto, ela gira!
Não vos vou desejar prosperidade porque não vai haver. Nem felicidade porque só pode ser feliz quem não tiver coração. Pensei em desejar paz, muita paz para o mundo, e engoli a hipocrisia.
Para este ano de 2009 desejo-vos, sim, tranquilidade!
Coragem para mudar o que pode ser mudado
Serenidade para aceitar o que não se pode mudar
E sabedoria para distinguir.
Um ano de 2009 com muita tranquilidade, aquela que vem de dentro e é imperturbável.
E deixo-vos também o meu brinde: