(crítica à primeira temporada)
!! CONTÉM ALGUNS SPOILERS, NÃO REVELA O FINAL !!
Às vezes temos surpresas. Quando uma série nos chega muito bem recomendada como uma das melhores da década, senão de sempre, criamos expectativas que por vezes nos desiludem. Ou não. Breaking Bad foi-me apresentada como uma série extraordinária e imperdível, e confesso que não fiquei entusiasmada. Drogados a vender speed? Achei que não era para mim. E no entanto adorei. Também Stranger Things me chegou altamente recomendada e despertou-me logo o interesse. Ambiente e música dos anos 80, um monstro, uma miúda com poderes especiais, experiências ultra-secretas em instalações militares. Isto é mesmo para mim. Ou assim pensei. Infelizmente, a série não me encheu as medidas.
Fiquei desiludida, mas a culpa não é da série. Pensei que era uma história sobre um monstro que por acaso envolvia miúdos. Afinal, é uma história sobre miúdos que por acaso envolve um monstro. Fica o alerta. Isto não é puro terror. Podia ter sido, mas tirando algumas cenas perturbadoras (e muito breves) pode perfeitamente passar como série para ver em família. Seriam mais problemáticas, neste aspecto, algumas passagens de “quase-sexo” entre adolescentes do que o aparecimento do próprio monstro.
Percebe-se melhor quando se sabe que Stranger Things é feita de homenagens. Nem falo de influências, são mesmo homenagens descaradas. A mais evidente de todas é o grupo de miúdos com bicicletas que escondem a miúda com poderes especiais. (E.T.) Muitas das referências são a Spielberg, incluindo “Tubarão” por estranho que pareça. Não sou grande apreciadora de Spielberg, o que explica perfeitamente a minha reacção de enfado. Aliás, é bastante interessante que uma série com tantos momentos de enfado consiga mesmo assim ser viciante. Não vou negar, viciou-me. É um produto feito para binge watching e resulta. É preciso muito auto-controlo para não ver os oito episódios de enfiada.
Mas é curioso, porque achei os dois primeiros episódios aborrecidos e o facto de serem longos (50 minutos ou mais) também não ajuda. Mas depois de ver o segundo episódio só consegui parar ao sexto.
É difícil escrever sobre uma série que vive do suspense para agarrar o espectador sem revelar spoilers, e tentarei não o fazer. Logo no primeiro episódio, um monstro escapa do que parece ser um laboratório militar. Nesse mesmo dia, do mesmo laboratório, escapa também a miúda com poderes especiais. Nesse mesmo dia, um dos miúdos do grupo das bicicletas desaparece misteriosamente. A partir daqui tudo é spoiler.
Os colegas que toda a gente teve
Como não quero revelar spoilers, vou falar antes das personagens. O maior problema para mim, nesta série, é mesmo a incapacidade de me interessar por elas. O que torna a maior parte do primeiro episódio numa seca só entrecortada pelas breves cenas do laboratório e de Eleven (a miúda com poderes). Os miúdos são normais. Sim, são um bocadinho geeks, mas são completamente normais. Vidas normais, pais normais, bicicletas normais, jogos de Dungeons&Dragons normais. Ver estes miúdos 15 minutos seguidos é demais para mim.
Depois temos uma sub-história de adolescentes igualmente normais. Nancy (irmã mais velha do protagonista Mike) namora com um miúdo popular, Steve, que quer ir para a cama com ela. Nancy não quer, mas depois já quer, e depois convida uma amiga (Barbara) para fazer de pau-de-cabeleira numa festa na casa de Steve, mas a meio da festa manda Barbara embora para poder ir para a cama com Steve. Oh Céus, poupem-me! Sei que isto que vou dizer não vai ser consensual porque Nancy se tornou numa das personagens preferidas de muitos fãs, mas eu DETESTO esta sonsa! Nem três dias depois de perder a virgindade com o tal Steve já estava mais interessada no Jonathan (irmão mais velho do miúdo que desapareceu). Ninguém diria ao olhar para ela, com aquela roupinha foleira de menina queque, muito certinha, que não parte um prato. Toda a gente teve uma colega assim naquele tempo, e irra, detesto sonsas. Mas há algo também na actriz. Se calhar até a cara dela me irrita.
A personagem Barbara foi muito maltratada pela série. Talvez nem os próprios criadores tivessem noção do impacto que ela ia ter. Barbara era a típica adolescente dos anos 80 que ainda não se sabia valorizar. Óculos grossos, peso a mais, vestida como se tivesse o dobro da idade. Mas a aparência física é irrelevante fora do mundo juvenil do liceu. Barbara é responsável, sensata, e acima de tudo é uma boa amiga. Uma amiga que não merecia ser tratada como Nancy a tratou. Tudo nela a torna uma personagem simpática de quem conseguimos gostar. Sem querer desvendar muito, Barbara mal apareceu na série e deixou uma impressão inesquecível. Se calhar porque toda a gente também teve uma colega assim e o efeito nostálgico é mais forte.
Mas Jonathan é o adolescente mais interessante. Habituado a uma vida complicada, é o único que transcende a vulgaridade da terrinha em que vive. Jonathan é o tal que ouve Joy Division e que traz a música alternativa para a série. Pena que goste da sonsa da Nancy. Mas é preciso dar tempo ao tempo. O puto só deve ter 18 anos e horizontes ainda muito limitados àquilo que conhece. Merece melhor, mas vai ter de procurar fora daquele buraco de banalidade. Também tive colegas assim. A maioria saiu do buraco.
Os adultos, felizmente, não são aborrecidos. Quando já me estava a passar com tanto drama (e marmelada) adolescente, as cenas com os adultos salvaram-me do tédio total. Os dois protagonistas, a mãe do miúdo desaparecido e o xerife da terra, são personagens profundas e cativantes, com muito passado e bagagem emocional. Por mim, podiam desaparecer todos os adolescentes (menos o Jonathan, para ouvirmos Joy Division) e os miúdos, e a série podia ficar só com adultos. E mais dramática e com terror a sério.
Por esta altura devem estar a perguntar: mas e o monstro? Porque é que estamos a falar desta gente quando há um monstro? Era isto exactamente que eu dizia no início. A série é sobre esta gente e por acaso há um monstro. E como também já estou a bocejar outra vez só de falar nesta gente, vamos mas é falar do monstro.
O monstro
O monstro não me convenceu. Não é um grande spoiler revelar que é uma criatura de outra dimensão. Também fica imediatamente estabelecido, logo no primeiro episódio, que existe uma ligação entre o monstro e Eleven. Não pode ser por acaso que escaparam os dois no mesmo dia. (Eu tenho as minhas teorias quanto a isso, mas este é um mistério que continua na segunda temporada e não me cheira que a série siga pelos caminhos que estou a imaginar. Pode ser que me surpreendam.) A cena inicial, no laboratório, é bastante explícita quanto à natureza predatória da criatura. Mas há uma falha de lógica ainda não explicada que rouba credibilidade a este monstro. Aparentemente, na outra dimensão não existe nada para comer. Absolutamente nada. Se este é um monstro animalesco que precisa de comer, como é que sobrevivia no “outro lado”? E estava lá sozinho? Não havia mais monstros? Pensei, a princípio, que seria antes um “monstro de energia” fabricado pelos militares. Descobrir que era só um monstro “animal” desapontou-me. E como é que descobriu, assim que chegou a este lado, que as criancinhas são saborosas? E como é que aprendeu a farejar sangue à distância, como um tubarão (por causa da tal homenagem, só pode)? Há mais inconsistências destas que nunca são explicadas. Para uma espectadora como eu, que não está a ver a série por causa da nostalgia dos anos 80, as inconsistências foram-se avolumando a ponto de me desiludir. A primeira regra do terror é que tem de nos convencer para meter medo. Se algo mina a credibilidade começamos a desligar as emoções e o efeito perde-se. Não é por acaso que a única cena que me arrepiou foi aquela em que a homenagem é a Alien. Fiquei tensa na cadeira, abri mais os olhos, cheguei-me para a frente. Parei de respirar. Porque o extraterrestre de Alien, o filme original de Ridley Scott, é completamente credível e aterrador. À menor alusão gela-se-nos a espinha. Era este terror que eu esperava de Stranger Things e que de certa forma nos foi “prometido” na cena inicial da série. Pelo sexto episódio percebi que a história ia mesmo ser sobre os miúdos que querem matar o monstro com pedras e fisgas. Pior, comecei a temer que os miúdos o conseguissem. Felizmente, a série não enveredou assim tanto pela fantasia infanto-juvenil que me teria retirado imediatamente do público alvo. As promessas dos primeiros episódios são cumpridas.
Mais negro para a próxima?
Stranger Things podia ter ido mais fundo e mergulhado em águas mais negras. Por opção, não o quis fazer. Isto prejudicou sobretudo a melhor personagem da série, sobre quem mal falei por causa dos spoilers. Eleven é a verdadeira estrela da história. Vítima de condicionamento psicológico, Eleven só quer ser normal num mundo que para ela é alienígena. É por ela que sofremos, é por ela que torcemos, é sobre ela que tecemos teorias. O final da primeira temporada deixa-nos com um sabor amargo que só pode ser remediado na segunda.
Porque, é claro, há uma segunda temporada. E é claro que vou ver porque a série é excelente. Não é o que eu esperava mas é completamente irresistível. Li algures que os criadores prometem que a continuação vai ser mais negra. Será mesmo, ou é só publicidade enganosa? As promessas foram cumpridas mas as minhas expectativas não foram satisfeitas. A única maneira de tornar a série mais negra, como prometem, é sair do conforto family friendly da fantasia infanto-juvenil que tornou a série acessível a um público mais alargado. Pode ser que me engane mas duvido que se atrevam.