março 29, 2004
Pensamento do dia II
"Um pessimista é alguém que olha para os dois lados antes de atravessar uma rua de sentido único."
Laurence J. Peter
Publicado por _gotika_ em 04:11 AM | Comentários: (19)
Pensamento do dia I
"Lançar um osso a um cão não é caridade. Caridade é partilhar o osso com o cão quando se tem tanta fome como ele."
Jack London
Publicado por _gotika_ em 04:09 AM | Comentários: (6)
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Chelsea Quinn Yarbro: "Olivia"
*contém spoilers*
Quem gosta de literatura de vampiros já deve ter ouvido falar de Chelsea Quinn Yarbro, ou pelo menos da sua famosa personagem o Conde de Saint Germain. Foi nos fóruns da especialidade que a saga Saint Germain me foi aconselhada. Pesquisei por onde começar (nestas coisas das sagas tento ser cautelosa) e descobri que havia uma vampira: Olivia. Diz muito de mim que nesse momento tenha imediatamente decidido ler os livros de Olivia primeiro. Até agora li dois: "A Flame in Byzantium", como o nome indica passado em Bizâncio (Constantinopla, hoje Istambul) nos dias em que os bárbaros saqueavam o império romano, e "Crusader's Torch", quinhentos anos mais tarde em plena Idade Média. Isto torna Olivia uma vampira muito antiga. Nunca fiz as contas mas a rondar os 1000 anos, mais século menos século.
A minha expectativa era grande. Confesso que tinha em mente uma outra vampira, a de Anne Rice, de alcunha Pandora e de nome Lydia, a predadora. A amante de Marius, quando eram "novos". Sempre achei que o talento de Anne Rice se gastou demasiadamente nos vampiros do sexo masculino. Apetecia-me uma vampira. Uma Olivia, romana, trigueira, de pêlo na venta e fartos seios, que os sugasse e deitasse fora como quem troca de camisa. Fui avisada para o teor erótico de certos episódios, mas não fazia mal se Olivia os comesse de todas as maneiras. Uma vampira milenar, uma deusa, uma rainha!
Não ponho as culpas em Yarbro, mas não me saiu o que eu estava à espera. Em vez de um hino ao feminismo... saiu-me uma vampira ruiva (ruiva!), doce, boazinha, esfomeada de afecto. Capitães romanos, cruzados, nobres árabes, e mais o que calhar entretanto, não consigo levar a mulher a sério. Mas antes de lhe chamar "oferecida" calhava bem explicar o que já compreendi da mitologia destes vampiros. Não apreendi tudo, o que é natural numa saga quando não se lê do princípio. Os vampiros de Chelsea Quinn Yarbro não são invulneráveis. Ainda não percebi até que ponto os seus corpos imortais podem morrer de golpes fatais. Fico na dúvida porque Olivia tem horror às viagens no mar (da mitologia que os vampiros não podem deslocar-se sobre água), que a enfraquece fisicamente, e uma dos seus maiores terrores é naufragar, terminar no fundo do mar, consciente, incapaz de se mexer, comida pelos peixes. Mas não morta. O sol não os mata mas retira-lhes a força, pelo que podem viver à luz do dia, mas não comem nem bebem alimentos (o que lhes causa o transtorno de tentar arranjar desculpas para o explicar). Precisam, para se fortalecer, da terra natal literalmente sob os pés (como "Drácula").
Agora vamos à parte que interessa, o sangue. Estes vampiros, como Olivia, pelo que percebi, podem sobreviver de sangue de pessoas ou animais, mas não ficam saciados se não o beberem durante um encontro sexual, e agora sim, a parte melhor, mas não um qualquer encontro sexual! Para ficar saciada, Olivia tem de encontrar o amor, a paixão, a entrega, a total partilha de um amante.
Pobre Olivia, bem está condenada a passar fome eternamente, digo eu que sou cínica.
E a autora também não é romântica. Em dois livros, Olivia tem dois amantes, nenhum deles acredita que é vampira por mais que lhes diga, nenhum a compreende, nenhum a ama, nenhum consegue resistir à atracção puramente sexual, ambos a deixam, cada um à sua maneira. Mil anos depois, Olivia ainda escreve cartas apaixonadas ao seu primeiro amante imortal, o Conde Saint Germain, que não a vê há igual tempo e que partiu algures para parte incerta na Ásia.
Como levar a sério esta mulher?! Uma vampira, ainda por cima! A fazer figuras destas! Onde está o teu orgulho, Olivia? Um pouco mais de auto-estima, mulher! És boa demais para eles! Antes morrer de fome, Olivia! Antes morrer de fome!
Olivia tem um mordomo, vampiro de nome grego impronunciável, Niklos Aulirios, uns séculos mais novo, que lhe é leal como um cão. Parece que Saint Germain também tem um lacaio assim. Intriga-me se os prende a pura amizade ou qualquer espécie de servidão vampírica aos seus criadores (um "sire bond", como se diz noutras terras). Parece-me também que Olivia e Niklos, amantes quando este era mortal, não podem, ou não querem, unir-se carnalmente ou sequer de maneira romântica. Porquê é um mistério, se foram amantes em tempos... Talvez a repulsa faça parte das "leis" que regem os vampiros de Yarbro. Ou talvez, muito prosaicamente, se tenham fartado um do outro ou aquilo nunca tenha sido assim tão bom?! Permanece o mistério. Talvez os livros anteriores o expliquem.
É este mordomo o companheiro fiel de Olivia, através dos séculos.
E através dos séculos, é esta a maior perplexidade dos vampiros de Yarbro, não mudam nada. Levam uma vida rotineira e quotidiana, eventualmente têm de deslocar-se de país em país para que a juventude eterna não os traia, e depois é a vida como todos os dias. Nunca passam pela cabeça destes vampiros as angústias existenciais dos séculos após séculos. Nunca lhes passa pela cabecinha qual é o sentido de tal existência.
Diria mesmo mais, há pouco critiquei Olivia pela solicitude com que se entrega aos homens que ama, mas também os esquece igualmente depressa. Parece-me que estes vampiros não conseguem chorar lágrimas, mas Olivia faz uma espécie de luto a cada um dos amantes, por quem daria a própria vida ainda uns dias antes, e aceita que morram, eventualmente, como se fosse normal que uma alma humana conseguisse sobreviver a milénios de perdas sem achar que já bastou.
Esta leveza, esta futilidade, não me entra na cabeça. Observo os vampiros de Yarbro, divirto-me com o realismo cínico da autora, rio-me nas hilariantes cenas eróticas (sem exagero, são hilariantes, e tenho para mim que só lá estão porque o erotismo vende), impressiono-me com o profissionalismo e a competência da pesquisa histórica (que às vezes consegue pecar por excesso), admiro-me com o rigor espartano com que a escritora divide os capítulos em cena/carta cena/carta cena/carta até atingir as trezentas páginas, e aconselho aos amantes de vampiros que procurem uma leitura agradável. Mas leve.
Não quis comentar um só livro para não incorrer em juízos precipitados, e regozijo-me que no segundo as cenas eróticas já não se repitam tanto em número, mas ao fim da leitura de ambos não posso dizer que em qualquer altura me tenha sentido particularmente empolgada.
Minto. No segundo livro, quase no fim, há um episódio interessante que prometia algo de excitante. Olivia, que apesar de vampira não parece ser capaz de matar um ser humano por meios vampíricos (?), cai nas mãos de um cruzado Hospitalário de sádica reputação que entende ter sobre ela vantagem suficiente para a tornar sua escrava sexual. E o que é que acontece? Olivia deita de fora os dentes e suga-o até ficar enxague? Não. Esconde-se debaixo da cama, por sorte deita mão à espada dele, e mata-o de um golpe. (Peço desculpa pelo spoiler do que pode ter sido a melhor leitura do livro.) Boa, Olivia, mas não era exactamente isso que eu esperava!
Que vampiros estranhos, estes!
Recomendo aos amantes de vampiros (aqueles que são predadores, e bebem sangue a sério, e sofrem de angústias existenciais) que se aproximem com uma valente diminuição de expectativas. Para leitura de cabeceira na certeza de sonhos tranquilos, mas sem chegar ao ponto de dar sono.
Quem gosta de literatura de vampiros já deve ter ouvido falar de Chelsea Quinn Yarbro, ou pelo menos da sua famosa personagem o Conde de Saint Germain. Foi nos fóruns da especialidade que a saga Saint Germain me foi aconselhada. Pesquisei por onde começar (nestas coisas das sagas tento ser cautelosa) e descobri que havia uma vampira: Olivia. Diz muito de mim que nesse momento tenha imediatamente decidido ler os livros de Olivia primeiro. Até agora li dois: "A Flame in Byzantium", como o nome indica passado em Bizâncio (Constantinopla, hoje Istambul) nos dias em que os bárbaros saqueavam o império romano, e "Crusader's Torch", quinhentos anos mais tarde em plena Idade Média. Isto torna Olivia uma vampira muito antiga. Nunca fiz as contas mas a rondar os 1000 anos, mais século menos século.
A minha expectativa era grande. Confesso que tinha em mente uma outra vampira, a de Anne Rice, de alcunha Pandora e de nome Lydia, a predadora. A amante de Marius, quando eram "novos". Sempre achei que o talento de Anne Rice se gastou demasiadamente nos vampiros do sexo masculino. Apetecia-me uma vampira. Uma Olivia, romana, trigueira, de pêlo na venta e fartos seios, que os sugasse e deitasse fora como quem troca de camisa. Fui avisada para o teor erótico de certos episódios, mas não fazia mal se Olivia os comesse de todas as maneiras. Uma vampira milenar, uma deusa, uma rainha!
Não ponho as culpas em Yarbro, mas não me saiu o que eu estava à espera. Em vez de um hino ao feminismo... saiu-me uma vampira ruiva (ruiva!), doce, boazinha, esfomeada de afecto. Capitães romanos, cruzados, nobres árabes, e mais o que calhar entretanto, não consigo levar a mulher a sério. Mas antes de lhe chamar "oferecida" calhava bem explicar o que já compreendi da mitologia destes vampiros. Não apreendi tudo, o que é natural numa saga quando não se lê do princípio. Os vampiros de Chelsea Quinn Yarbro não são invulneráveis. Ainda não percebi até que ponto os seus corpos imortais podem morrer de golpes fatais. Fico na dúvida porque Olivia tem horror às viagens no mar (da mitologia que os vampiros não podem deslocar-se sobre água), que a enfraquece fisicamente, e uma dos seus maiores terrores é naufragar, terminar no fundo do mar, consciente, incapaz de se mexer, comida pelos peixes. Mas não morta. O sol não os mata mas retira-lhes a força, pelo que podem viver à luz do dia, mas não comem nem bebem alimentos (o que lhes causa o transtorno de tentar arranjar desculpas para o explicar). Precisam, para se fortalecer, da terra natal literalmente sob os pés (como "Drácula").
Agora vamos à parte que interessa, o sangue. Estes vampiros, como Olivia, pelo que percebi, podem sobreviver de sangue de pessoas ou animais, mas não ficam saciados se não o beberem durante um encontro sexual, e agora sim, a parte melhor, mas não um qualquer encontro sexual! Para ficar saciada, Olivia tem de encontrar o amor, a paixão, a entrega, a total partilha de um amante.
Pobre Olivia, bem está condenada a passar fome eternamente, digo eu que sou cínica.
E a autora também não é romântica. Em dois livros, Olivia tem dois amantes, nenhum deles acredita que é vampira por mais que lhes diga, nenhum a compreende, nenhum a ama, nenhum consegue resistir à atracção puramente sexual, ambos a deixam, cada um à sua maneira. Mil anos depois, Olivia ainda escreve cartas apaixonadas ao seu primeiro amante imortal, o Conde Saint Germain, que não a vê há igual tempo e que partiu algures para parte incerta na Ásia.
Como levar a sério esta mulher?! Uma vampira, ainda por cima! A fazer figuras destas! Onde está o teu orgulho, Olivia? Um pouco mais de auto-estima, mulher! És boa demais para eles! Antes morrer de fome, Olivia! Antes morrer de fome!
Olivia tem um mordomo, vampiro de nome grego impronunciável, Niklos Aulirios, uns séculos mais novo, que lhe é leal como um cão. Parece que Saint Germain também tem um lacaio assim. Intriga-me se os prende a pura amizade ou qualquer espécie de servidão vampírica aos seus criadores (um "sire bond", como se diz noutras terras). Parece-me também que Olivia e Niklos, amantes quando este era mortal, não podem, ou não querem, unir-se carnalmente ou sequer de maneira romântica. Porquê é um mistério, se foram amantes em tempos... Talvez a repulsa faça parte das "leis" que regem os vampiros de Yarbro. Ou talvez, muito prosaicamente, se tenham fartado um do outro ou aquilo nunca tenha sido assim tão bom?! Permanece o mistério. Talvez os livros anteriores o expliquem.
É este mordomo o companheiro fiel de Olivia, através dos séculos.
E através dos séculos, é esta a maior perplexidade dos vampiros de Yarbro, não mudam nada. Levam uma vida rotineira e quotidiana, eventualmente têm de deslocar-se de país em país para que a juventude eterna não os traia, e depois é a vida como todos os dias. Nunca passam pela cabeça destes vampiros as angústias existenciais dos séculos após séculos. Nunca lhes passa pela cabecinha qual é o sentido de tal existência.
Diria mesmo mais, há pouco critiquei Olivia pela solicitude com que se entrega aos homens que ama, mas também os esquece igualmente depressa. Parece-me que estes vampiros não conseguem chorar lágrimas, mas Olivia faz uma espécie de luto a cada um dos amantes, por quem daria a própria vida ainda uns dias antes, e aceita que morram, eventualmente, como se fosse normal que uma alma humana conseguisse sobreviver a milénios de perdas sem achar que já bastou.
Esta leveza, esta futilidade, não me entra na cabeça. Observo os vampiros de Yarbro, divirto-me com o realismo cínico da autora, rio-me nas hilariantes cenas eróticas (sem exagero, são hilariantes, e tenho para mim que só lá estão porque o erotismo vende), impressiono-me com o profissionalismo e a competência da pesquisa histórica (que às vezes consegue pecar por excesso), admiro-me com o rigor espartano com que a escritora divide os capítulos em cena/carta cena/carta cena/carta até atingir as trezentas páginas, e aconselho aos amantes de vampiros que procurem uma leitura agradável. Mas leve.
Não quis comentar um só livro para não incorrer em juízos precipitados, e regozijo-me que no segundo as cenas eróticas já não se repitam tanto em número, mas ao fim da leitura de ambos não posso dizer que em qualquer altura me tenha sentido particularmente empolgada.
Minto. No segundo livro, quase no fim, há um episódio interessante que prometia algo de excitante. Olivia, que apesar de vampira não parece ser capaz de matar um ser humano por meios vampíricos (?), cai nas mãos de um cruzado Hospitalário de sádica reputação que entende ter sobre ela vantagem suficiente para a tornar sua escrava sexual. E o que é que acontece? Olivia deita de fora os dentes e suga-o até ficar enxague? Não. Esconde-se debaixo da cama, por sorte deita mão à espada dele, e mata-o de um golpe. (Peço desculpa pelo spoiler do que pode ter sido a melhor leitura do livro.) Boa, Olivia, mas não era exactamente isso que eu esperava!
Que vampiros estranhos, estes!
Recomendo aos amantes de vampiros (aqueles que são predadores, e bebem sangue a sério, e sofrem de angústias existenciais) que se aproximem com uma valente diminuição de expectativas. Para leitura de cabeceira na certeza de sonhos tranquilos, mas sem chegar ao ponto de dar sono.
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 27, 2004
“O Vampiro Lestat” - o livro
O segundo livro das “Vampire Chronicles” de Anne Rice, escrito em 1985, nove anos após a publicação de “Entrevista com o vampiro”, vem explicar os mistérios deixados no ar pelo relato de Louis e preparar os leitores para a explosão cósmica de “A Rainha dos Malditos”. Nenhum dos livros esgota o tema, pelo contrário, até lança pistas para a sua continuação, de uma forma tão natural e pouco comercial que se diria que as “Vampire Chronicles” não podem acabar enquanto os protagonistas existirem.
A rede de relações entre todos e uns e outros em particular é tão intricada e misteriosa como só a vida pode ser. Muitos dos personagens que falam na primeira pessoa não fazem ideia do que os outros tramam e escondem nas suas costas. Mas nem só de traições e segredos se faz a vida destes vampiros. Os amores falsos e os amores verdadeiros e os amores não correspondidos também lá estão.
Lestat é um jovem fidalgo de uma família aristocrática mas falida do século XVIII, em França, pouco antes da Revolução. Propositadamente ou não, Anne Rice diz-nos que ele foi o 7º filho do marquês, mas é o irmão mais novo dos três sobreviventes. A mãe, Gabrielle, é uma mulher fria que se refugia na leitura, mais uma vítima do seu tempo e de um casamento arranjado e de uma vida que odeia mas da qual não se pode libertar. Num castelo pobre e frio, o jovem Lestat mostra desde cedo uma personalidade invulgar e extraordinária. Sai à mãe e tem jeito para os estudos mas o poder paterno não o deixa ingressar num mosteiro porque ser um humilde monge não é digno da sua condição social. Por exemplo, Gabrielle nem perde tempo a ensinar os filhos a ler. E Lestat ressente-se de ser preterido pelos livros. Na adolescência, alimenta o sonho de ser actor. Chega a fugir com uma companhia de saltimbancos italianos e actuar pelas feiras da região. É apanhado pelos irmãos e obrigado a voltar ao castelo porque ser actor nesse tempo era uma vergonha inconcebível. Na sua frustração e infelicidade, Lestat remete-se a ser o caçador que mais tarde se torna na única fonte de sustento de toda a família.
O seu destino é traçado quando enfrenta um alcateia de oito lobos e consegue matá-los todos. Finalmente conquista o respeito da família e da aldeia, mas este acontecimento é apenas o princípio de tudo. É assim que conhece Nicholas, um jovem violinista que, tal como Lestat, tem sonhos artísticos irrealizáveis. Mas agora estão juntos e conseguem gerar força um no outro para fugirem para Paris e dedicarem-se ao teatro. Gabrielle sabe que está a morrer de tuberculose e num dos seus raros gestos de ternura, incentiva o filho a fugir.
Os dois rapazes de vinte anos partem para Paris e dão asas ao seu sonho. Nicholas toca violino e Lestat consegue um papel principal num pequeno teatro para gente pobre. Nessa altura são felizes.
Aqui termina a curta vida humana do vampiro Lestat. A sua fama de caçador, a sua beleza e o seu talento atraem um velho vampiro que quer fazer dele seu herdeiro. É contra a sua vontade que Lestat é obrigado a tomar a Dádiva Negra. De seguida, o seu criador suicida-se e deixa-o entregue a si próprio, sem fazer ideia das leis que regem o submundo onde acabara de entrar.
Mais uma vez, Lestat é obrigado a desistir dos seus sonhos, a viver nas sombras, longe do palco onde brilhava. É prisioneiro da sua condição.
Mas algo mudou: o seu criador deixou-lhe uma enorme fortuna. Subitamente rico, rodeia-se de todos os luxos que o seu castelo arruinado nunca conheceu e reparte o dinheiro com a família e os amigos. Uma coisa lhe é proibida: o contacto com eles. Até ao dia em que Lestat não suporta a solidão e acaba por voltar, mas Nicholas nunca lhe perdoará ter desaparecido de um momento para o outro. É assim que perde o maior amigo.
Quando Lestat fala da insuportável sede de sangue, não será esta também uma ânsia da vida que o Destino não o deixa viver?
E depois Gabrielle está às portas da morte. E Lestat, que não acredita em Deus, tem tanto pavor da morte como da solidão. Com o consentimento de Gabrielle, transforma-a noutra vampira. Torna-se no criador da sua mãe.
Mas assim que Gabrielle se liberta das condições restritivas da vida, transforma-se no que chamamos agora uma “exploradora de terras desconhecidas”. Tinham em comum, ela o filho, serem prisioneiros de um século feudal e demasiado atrasado para duas pessoas extraordinárias que não se conformavam com a mediocridade das suas existências e com as convenções que lhes eram impostas. Atraída pelos desertos, pelas montanhas, pelo desconhecido, pelos povos primitivos e exóticos, Gabrielle não suporta a sociedade moderna do século XVIII. Aliás, Gabrielle não suporta nenhuma sociedade. Livre como um animal selvagem, é no espaço bravio e desabitado que encontra o seu lugar. Lestat, apaixonado pela vida e pelo amor, jamais a poderia seguir. O próprio admite que espera da mãe o que ela não lhe pode dar. E no entanto, existe amor entre os dois. E no entanto, não podem ficar juntos.
Lestat ainda tenta redimir-se perante Nicholas transformando-o também num vampiro, mas é tarde demais para reconquistar o seu amor. Pior, Nicholas é uma espécie de Louis ainda mais atormentado e acaba por se suicidar numa pira de fogo.
A família aristocrática de Lestat é assassinada durante a revolução, sobrevivendo apenas o velho pai, que se refugia na colónia americana da Louisiana. Confrontado com a necessidade de tomar conta do pai, é Lestat quem se sacrifica. Gabrielle nunca mais quis ver os outros filhos, quanto mais o marido. É a separação definitiva.
Mais uma vez sozinho e sem rumo, Lestat entra na sua primeira depressão vampírica: debaixo da terra, permanece vivo, mas sem vontade de viver. A visita de Marius ensina-lhe alguns segredos que o fazem reagir, mas mais tarde volta a procurar esta hibernação, depois de perder Cláudia e Louis, e como Marius lhe disse, se não fosse esta fuga do mundo muitos imortais não teriam coragem de continuar a viver.
Vampiros muito humanos
É interessante notar a evolução do vampiro Lestat da “Entrevista” para este Lestat que escreve a sua autobigrafia e mais tarde ainda para o Lestat pós-“Queen of the Damned” em “The Tale of the Body Thief”. É o cidadão do século XX que nos fala, como não podia deixar de ser, e já não o aristocrata francês, contemporâneo de Maria Antonieta, que não sabia ler nem escrever, que usava tricórnio e fatos de “todas as cores do arco-íris” (citação) - Consegue-se imaginar um homem elegante de tricórnio cor-de-rosa?... Dificilmente. Grande inteligência, a de Anne Rice, e ao mesmo tempo pergunto-me se o interregno de 9 anos entre o início das crónicas em 76 e a sua continuação nos anos 80 não teve também importância nesse salto qualitativo das personagens.
Como já aqui disse, Louis é que é o gótico mas é de Lestat que eu gosto mais. Lestat é aquela criatura que ninguém nunca conhece completamente, tal é a sua complexidade, e as suas aparentes incoerências só se desfazem quando o próprio explica, com uma inocência mais que convincente, aquele pormenorzinho que os outros ignoravam porque nunca perguntaram, porque Lestat pensava que eles sabiam, ou porque Lestat não podia ou não teve coragem de contar antes.
Por exemplo, a morte de Cláudia. Quem viu o filme e quem leu o primeiro livro, pela perspectiva de Louis, não imagina o que realmente se passou. Só um século depois, quando Lestat lê a interpretação que Louis faz dos factos e da sua personagem (o tal ignorante, cruel, egoísta e vaidoso aristocrata que não tem muitos escrúpulos) é que se revolta e decide contar a sua versão da história. Aliás, como qualquer um de nós faria.
Então, seguir o percurso destas personagens torna-se apaixonante. É preciso, como no jornalismo, ir ouvir a versão de cada um e, como na justiça, não esquecer que todos são inocentes até se provarem culpados. Inevitavelmente, criam-se amores e ódios de estimação.
Já tenho o meu ódio pessoal a Armand. Sedutor e carismático, Armand tem a moral de um tubarão. Não ama ninguém a não ser ele mesmo, isto é, e duvido muito, se é que se ama a ele mesmo. Às vezes a falta de auto-estima leva certas criaturas a encontrarem compensação na sensação de poder que é liderar alguma coisa, manipular as pessoas para benefício próprio, sentir-se importantes aos olhos dos outros mesmo que não gostem deles próprios. (Mal posso esperar por ler “Armand”)
Armand engana Louis, deixando-o pensar durante quase um século que Lestat morreu e, mesmo quando confessa que Lestat está afinal vivo e que foi ele, Armand, a ordenar a morte de Cláudia, não conta que Lestat nunca pediu que o fizesse. A Lestat, Armand também engana e também diz que Louis morreu pouco depois de Cláudia. Chama-se “dividir para reinar”. Graças a isto, manteve os dois afastados até ao século XX e privou da companhia de Louis enquanto lhe apeteceu.
Todos nós conhecemos Armands. O mundo está cheio de Armands. Se calhar por isso o meu ódio de estimação à personagem. Quem não conhece essa personagem intriguista e manipuladora, da família, do escritório, do círculo de amigos?
Só a verdade pode expor a criatura, e é isso que faz Lestat na sua biografia, como a luz que dissipa as trevas. Basicamente é isso que Lestat representa, a luz, e já lhe perguntava o seu amigo Nicholas, “para que serve um monstro cheio de luz”?
O amor de Lestat e Nicholas, por outro lado, lembra-nos que quando o amor se torna em ódio é dos ódios mais fortes que existem. E todos também já vimos isso todos os dias.
O que não vemos todos os dias é uma personagem brilhante e honesta como Lestat, que procura pelo amor. E quem é que pode amar um ser como Lestat? Talvez ninguém. Talvez apenas Louis, à sua maneira, porque partilham da mesma inocência e do mesmo desespero. E mesmo assim, nenhum se consegue adaptar à forma de viver do outro. Este já é o grande problema do século XXI, consciente ou inconscientemente antecipado aqui por Anne Rice. A extrema individualidade e independência dos anos 90, a mesma razão porque Mulder e Scully dos “Ficheiros Secretos” nunca assumem a sua ligação romântica.
Na mãe, Lestat tem uma amiga mas não uma alma gémea. E em relação ao pai, Lestat é implacável. Nada está perdoado. Existe apenas um vago sentimento de obrigação que o faz ficar com ele até ao fim. Os pedidos de desculpa do velho marquês, no leito de morte, já vêm tarde demais. Lestat pede a Louis: “Mata-o!”. Louis responde: “Não posso, é o teu pai!” Ao que Lestat responde: “Eu sei. Por isso não o posso matar eu”. (in “Entrevista com o vampiro”)
Até que ponto a falta de sentir amor na infância pode moldar as pessoas? E se não há almas gémeas, pode haver amor? Como é que os familiares de Lestat poderiam imaginar como este se sentia preso ao destino imposto pela família? A frieza de Lestat no leito de morte do pai, portanto, é completamente natural. Estranho seria se chorasse o homem que o fez tão infeliz. Não havia nada, mesmo nada, em comum entre os dois excepto a casualidade estranha de um ser pai do outro. E viver entre almas estranhas é o inferno da incompreensão. Já dizia Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
Mas não todos os outros. O inferno aumenta na medida em que as almas são diferentes. Porque Lestat e Gabrielle tinham muito em comum mas se ela não compreendia a necessidade de Lestat viver entre as pessoas, muito menos ele poderia compreender que ela preferisse viver entre rochas inacessíveis. Eram almas mais gémeas do que Lestat e o velho marquês, mas ainda não suficientemente gémeas.
Lestat procura desesperadamente reconstruir a família. Ao saber da morte dos irmãos e cunhadas e sobrinhos, sonha que voltou a casa e os transformou a todos em vampiros, desde o pai, passando pelas crianças, até ao bebé de colo - a primeira visão de Cláudia? - porque para Lestat tudo e qualquer coisa é melhor do que a morte.
Vampiro vs anticristo
Nos anos 80, Lestat volta a sair de uma depressão de 50 anos e dedica-se à música. Quer ser, nem mais nem menos, uma estrela rock.
Aqui tenho de sorrir e ser condescendente para com Anne Rice. Nem vou transcrever as letras que ela escreveu para Lestat. Não, são piores que “Black #1” dos Type O Negative. Mas muito piores!!!
Digamos que Anne Rice queria dizer que Lestat se tornou um ídolo internacional à escala de Marilyn Manson, mas sem a polémica de Marilyn Manson porque ninguém acreditava que ele fosse mesmo um vampiro. Pobre Anne Rice, que em 1985 não acreditava que certas pessoas fossem tão estúpidas que pensassem que um cantor rock pudesse mesmo ser um vampiro - ou o Anticristo!!! E, no entanto, em pleno século XXI, ainda há quem veja o Demónio em Brian Warner.
O que é que aprendemos daqui?
1, Que Anne Rice é uma optimista e que as pessoas podem ser mais estúpidas do que nós imaginamos, ou
2, Que nos anos 80 se vivia uma euforia artística e cultural que não deixava antever a regressão dos anos 90?
Aposto na segunda hipótese porque o progresso é mesmo feito de avanços e recuos.
De volta ao vampiro
Na sua existência vampírica, o destino de Lestat repete-se. O próprio acaba por perceber isto não só em relação a ele próprio como aos outros que o rodeiam. Mortais ou imortais, parece que todas as voltas vão dar ao mesmo fim. Ao tentar brilhar de novo num palco e fazer aquilo para que nasceu... a nova “família” insurge-se. Não pode expor-se assim dessa maneira, não lhe é permitido expor os outros. É preciso remeter-se às sombras e ao anonimato. Não admira que Lestat venha a ter um comportamento suicida e auto-destrutivo. Está tão aprisionado pelo destino como mais tarde se vê aprisionado num corpo humano, já em “The Tale of the Body Thief”.
Sozinho, frustrado... e a precisar de muita terapia.
Mal posso esperar por ler “Memnoch, o diabo”.
Mas, antes, vou reler “Queen of the Damned”. Acontece que já li em português e se há pensamentos de Anne Rice que não se percebem em inglês, muito menos noutra língua. Não me queixo dos tradutores nem da escritora. Pelo contrário, muitas vezes a grandiosidade de um escritor está na dificuldade em interpretar e traduzir as suas frases que evocam toda uma corrente de pensamentos e sentimentos associados aos sons, às sílabas, aos jogos de palavras... Isso fica “lost in translation”. É um pouco como traduzir Fernando Pessoa para outra língua sem lhe assassinar a poesia. É daqueles casos em que não basta traduzir mas re-escrever. Não se pode pedir tanto a um tradutor. (Não se pode pedir tanto a ninguém.)
“O Vampiro Lestat” só termina na introdução da “Rainha dos Malditos” Diz ele: “É uma verdade horrível que o sofrimento nos pode tornar mais profundos, dar mais brilho às nossas cores, uma ressonância mais rica às nossas vozes. Isto é, se não nos destrói, se não nos queima o optimismo e abate o espírito, a capacidade de sonhar, e o respeito pelas coisas simples mas indispensáveis. Por favor perdoem-me se vos soo amargo”.
Como não? Afinal, é apenas a destruição da humanidade que Lestat quase provoca com a Rainha dos Malditos... E só queria voltar a ser o jovem actor que fugiu de casa para andar de feira em feira com saltibancos italianos... É lixado sermos nós próprios.
Notas de humor
“Todas as noites quando regressava a Carmel Valley eu pegava nos sacos de correio dos fãs (...) e procurava neles escrita de vampiros (...) mas não havia nada excepto a devoção fervorosa dos mortais.
‘Querido Lestat, eu e a minha amiga Sheryl adoramos-te, e não conseguimos bilhetes para San Fransciso embora tenhamos estado na bicha durante seis horas. Por favor manda-nos dois bilhetes. Nós seremos tuas vítimas. Podes beber o nosso sangue.’”
Delicioso!
Fantástico!
E eu queixava-me do preço dos bilhetes para o Nick Cave.
E há aquela parte em que Louis fala dos bares onde os vampiros se encontram, e de uma certa fauna humana que também por lá anda... Esta, confesso, foi dolorosa. Diz Louis:
“Os mortais que lá vão são um autêntico circo de tipos teatrais - jovens punks, artistas, aqueles que vestem capas negras e dentes de vampiro de plástico. Eles mal dão por nós! Comparados com eles, somos ofuscados!”
Senhor Louis, já é suficientemente mau ter nascido numa época de trajes elegantes - nada de tricórnios e fatos brilhantes cor de malva que são coisas do seu ilustre amigo - e não poder apontar um dedo ao seu bom gosto, e ainda por cima ser um vampiro famoso e quase antigo e aos antigos não se falta ao respeito, não pela hierarquia gótica porque o senhor não é gótico nem percebe nada do assunto (faz de conta!), mas com a respectiva vénia: beba-nos o sangue mas não critique as nossas roupas!
Publicado por _gotika_ em 02:59 AM | Comentários: (6)
“O Vampiro Lestat” - o livro
O segundo livro das “Vampire Chronicles” de Anne Rice, escrito em 1985, nove anos após a publicação de “Entrevista com o vampiro”, vem explicar os mistérios deixados no ar pelo relato de Louis e preparar os leitores para a explosão cósmica de “A Rainha dos Malditos”. Nenhum dos livros esgota o tema, pelo contrário, até lança pistas para a sua continuação, de uma forma tão natural e pouco comercial que se diria que as “Vampire Chronicles” não podem acabar enquanto os protagonistas existirem.
A rede de relações entre todos e uns e outros em particular é tão intricada e misteriosa como só a vida pode ser. Muitos dos personagens que falam na primeira pessoa não fazem ideia do que os outros tramam e escondem nas suas costas. Mas nem só de traições e segredos se faz a vida destes vampiros. Os amores falsos e os amores verdadeiros e os amores não correspondidos também lá estão.
Lestat é um jovem fidalgo de uma família aristocrática mas falida do século XVIII, em França, pouco antes da Revolução. Propositadamente ou não, Anne Rice diz-nos que ele foi o 7º filho do marquês, mas é o irmão mais novo dos três sobreviventes. A mãe, Gabrielle, é uma mulher fria que se refugia na leitura, mais uma vítima do seu tempo e de um casamento arranjado e de uma vida que odeia mas da qual não se pode libertar. Num castelo pobre e frio, o jovem Lestat mostra desde cedo uma personalidade invulgar e extraordinária. Sai à mãe e tem jeito para os estudos mas o poder paterno não o deixa ingressar num mosteiro porque ser um humilde monge não é digno da sua condição social. Por exemplo, Gabrielle nem perde tempo a ensinar os filhos a ler. E Lestat ressente-se de ser preterido pelos livros. Na adolescência, alimenta o sonho de ser actor. Chega a fugir com uma companhia de saltimbancos italianos e actuar pelas feiras da região. É apanhado pelos irmãos e obrigado a voltar ao castelo porque ser actor nesse tempo era uma vergonha inconcebível. Na sua frustração e infelicidade, Lestat remete-se a ser o caçador que mais tarde se torna na única fonte de sustento de toda a família.
O seu destino é traçado quando enfrenta um alcateia de oito lobos e consegue matá-los todos. Finalmente conquista o respeito da família e da aldeia, mas este acontecimento é apenas o princípio de tudo. É assim que conhece Nicholas, um jovem violinista que, tal como Lestat, tem sonhos artísticos irrealizáveis. Mas agora estão juntos e conseguem gerar força um no outro para fugirem para Paris e dedicarem-se ao teatro. Gabrielle sabe que está a morrer de tuberculose e num dos seus raros gestos de ternura, incentiva o filho a fugir.
Os dois rapazes de vinte anos partem para Paris e dão asas ao seu sonho. Nicholas toca violino e Lestat consegue um papel principal num pequeno teatro para gente pobre. Nessa altura são felizes.
Aqui termina a curta vida humana do vampiro Lestat. A sua fama de caçador, a sua beleza e o seu talento atraem um velho vampiro que quer fazer dele seu herdeiro. É contra a sua vontade que Lestat é obrigado a tomar a Dádiva Negra. De seguida, o seu criador suicida-se e deixa-o entregue a si próprio, sem fazer ideia das leis que regem o submundo onde acabara de entrar.
Mais uma vez, Lestat é obrigado a desistir dos seus sonhos, a viver nas sombras, longe do palco onde brilhava. É prisioneiro da sua condição.
Mas algo mudou: o seu criador deixou-lhe uma enorme fortuna. Subitamente rico, rodeia-se de todos os luxos que o seu castelo arruinado nunca conheceu e reparte o dinheiro com a família e os amigos. Uma coisa lhe é proibida: o contacto com eles. Até ao dia em que Lestat não suporta a solidão e acaba por voltar, mas Nicholas nunca lhe perdoará ter desaparecido de um momento para o outro. É assim que perde o maior amigo.
Quando Lestat fala da insuportável sede de sangue, não será esta também uma ânsia da vida que o Destino não o deixa viver?
E depois Gabrielle está às portas da morte. E Lestat, que não acredita em Deus, tem tanto pavor da morte como da solidão. Com o consentimento de Gabrielle, transforma-a noutra vampira. Torna-se no criador da sua mãe.
Mas assim que Gabrielle se liberta das condições restritivas da vida, transforma-se no que chamamos agora uma “exploradora de terras desconhecidas”. Tinham em comum, ela o filho, serem prisioneiros de um século feudal e demasiado atrasado para duas pessoas extraordinárias que não se conformavam com a mediocridade das suas existências e com as convenções que lhes eram impostas. Atraída pelos desertos, pelas montanhas, pelo desconhecido, pelos povos primitivos e exóticos, Gabrielle não suporta a sociedade moderna do século XVIII. Aliás, Gabrielle não suporta nenhuma sociedade. Livre como um animal selvagem, é no espaço bravio e desabitado que encontra o seu lugar. Lestat, apaixonado pela vida e pelo amor, jamais a poderia seguir. O próprio admite que espera da mãe o que ela não lhe pode dar. E no entanto, existe amor entre os dois. E no entanto, não podem ficar juntos.
Lestat ainda tenta redimir-se perante Nicholas transformando-o também num vampiro, mas é tarde demais para reconquistar o seu amor. Pior, Nicholas é uma espécie de Louis ainda mais atormentado e acaba por se suicidar numa pira de fogo.
A família aristocrática de Lestat é assassinada durante a revolução, sobrevivendo apenas o velho pai, que se refugia na colónia americana da Louisiana. Confrontado com a necessidade de tomar conta do pai, é Lestat quem se sacrifica. Gabrielle nunca mais quis ver os outros filhos, quanto mais o marido. É a separação definitiva.
Mais uma vez sozinho e sem rumo, Lestat entra na sua primeira depressão vampírica: debaixo da terra, permanece vivo, mas sem vontade de viver. A visita de Marius ensina-lhe alguns segredos que o fazem reagir, mas mais tarde volta a procurar esta hibernação, depois de perder Cláudia e Louis, e como Marius lhe disse, se não fosse esta fuga do mundo muitos imortais não teriam coragem de continuar a viver.
Vampiros muito humanos
É interessante notar a evolução do vampiro Lestat da “Entrevista” para este Lestat que escreve a sua autobigrafia e mais tarde ainda para o Lestat pós-“Queen of the Damned” em “The Tale of the Body Thief”. É o cidadão do século XX que nos fala, como não podia deixar de ser, e já não o aristocrata francês, contemporâneo de Maria Antonieta, que não sabia ler nem escrever, que usava tricórnio e fatos de “todas as cores do arco-íris” (citação) - Consegue-se imaginar um homem elegante de tricórnio cor-de-rosa?... Dificilmente. Grande inteligência, a de Anne Rice, e ao mesmo tempo pergunto-me se o interregno de 9 anos entre o início das crónicas em 76 e a sua continuação nos anos 80 não teve também importância nesse salto qualitativo das personagens.
Como já aqui disse, Louis é que é o gótico mas é de Lestat que eu gosto mais. Lestat é aquela criatura que ninguém nunca conhece completamente, tal é a sua complexidade, e as suas aparentes incoerências só se desfazem quando o próprio explica, com uma inocência mais que convincente, aquele pormenorzinho que os outros ignoravam porque nunca perguntaram, porque Lestat pensava que eles sabiam, ou porque Lestat não podia ou não teve coragem de contar antes.
Por exemplo, a morte de Cláudia. Quem viu o filme e quem leu o primeiro livro, pela perspectiva de Louis, não imagina o que realmente se passou. Só um século depois, quando Lestat lê a interpretação que Louis faz dos factos e da sua personagem (o tal ignorante, cruel, egoísta e vaidoso aristocrata que não tem muitos escrúpulos) é que se revolta e decide contar a sua versão da história. Aliás, como qualquer um de nós faria.
Então, seguir o percurso destas personagens torna-se apaixonante. É preciso, como no jornalismo, ir ouvir a versão de cada um e, como na justiça, não esquecer que todos são inocentes até se provarem culpados. Inevitavelmente, criam-se amores e ódios de estimação.
Já tenho o meu ódio pessoal a Armand. Sedutor e carismático, Armand tem a moral de um tubarão. Não ama ninguém a não ser ele mesmo, isto é, e duvido muito, se é que se ama a ele mesmo. Às vezes a falta de auto-estima leva certas criaturas a encontrarem compensação na sensação de poder que é liderar alguma coisa, manipular as pessoas para benefício próprio, sentir-se importantes aos olhos dos outros mesmo que não gostem deles próprios. (Mal posso esperar por ler “Armand”)
Armand engana Louis, deixando-o pensar durante quase um século que Lestat morreu e, mesmo quando confessa que Lestat está afinal vivo e que foi ele, Armand, a ordenar a morte de Cláudia, não conta que Lestat nunca pediu que o fizesse. A Lestat, Armand também engana e também diz que Louis morreu pouco depois de Cláudia. Chama-se “dividir para reinar”. Graças a isto, manteve os dois afastados até ao século XX e privou da companhia de Louis enquanto lhe apeteceu.
Todos nós conhecemos Armands. O mundo está cheio de Armands. Se calhar por isso o meu ódio de estimação à personagem. Quem não conhece essa personagem intriguista e manipuladora, da família, do escritório, do círculo de amigos?
Só a verdade pode expor a criatura, e é isso que faz Lestat na sua biografia, como a luz que dissipa as trevas. Basicamente é isso que Lestat representa, a luz, e já lhe perguntava o seu amigo Nicholas, “para que serve um monstro cheio de luz”?
O amor de Lestat e Nicholas, por outro lado, lembra-nos que quando o amor se torna em ódio é dos ódios mais fortes que existem. E todos também já vimos isso todos os dias.
O que não vemos todos os dias é uma personagem brilhante e honesta como Lestat, que procura pelo amor. E quem é que pode amar um ser como Lestat? Talvez ninguém. Talvez apenas Louis, à sua maneira, porque partilham da mesma inocência e do mesmo desespero. E mesmo assim, nenhum se consegue adaptar à forma de viver do outro. Este já é o grande problema do século XXI, consciente ou inconscientemente antecipado aqui por Anne Rice. A extrema individualidade e independência dos anos 90, a mesma razão porque Mulder e Scully dos “Ficheiros Secretos” nunca assumem a sua ligação romântica.
Na mãe, Lestat tem uma amiga mas não uma alma gémea. E em relação ao pai, Lestat é implacável. Nada está perdoado. Existe apenas um vago sentimento de obrigação que o faz ficar com ele até ao fim. Os pedidos de desculpa do velho marquês, no leito de morte, já vêm tarde demais. Lestat pede a Louis: “Mata-o!”. Louis responde: “Não posso, é o teu pai!” Ao que Lestat responde: “Eu sei. Por isso não o posso matar eu”. (in “Entrevista com o vampiro”)
Até que ponto a falta de sentir amor na infância pode moldar as pessoas? E se não há almas gémeas, pode haver amor? Como é que os familiares de Lestat poderiam imaginar como este se sentia preso ao destino imposto pela família? A frieza de Lestat no leito de morte do pai, portanto, é completamente natural. Estranho seria se chorasse o homem que o fez tão infeliz. Não havia nada, mesmo nada, em comum entre os dois excepto a casualidade estranha de um ser pai do outro. E viver entre almas estranhas é o inferno da incompreensão. Já dizia Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
Mas não todos os outros. O inferno aumenta na medida em que as almas são diferentes. Porque Lestat e Gabrielle tinham muito em comum mas se ela não compreendia a necessidade de Lestat viver entre as pessoas, muito menos ele poderia compreender que ela preferisse viver entre rochas inacessíveis. Eram almas mais gémeas do que Lestat e o velho marquês, mas ainda não suficientemente gémeas.
Lestat procura desesperadamente reconstruir a família. Ao saber da morte dos irmãos e cunhadas e sobrinhos, sonha que voltou a casa e os transformou a todos em vampiros, desde o pai, passando pelas crianças, até ao bebé de colo - a primeira visão de Cláudia? - porque para Lestat tudo e qualquer coisa é melhor do que a morte.
Vampiro vs anticristo
Nos anos 80, Lestat volta a sair de uma depressão de 50 anos e dedica-se à música. Quer ser, nem mais nem menos, uma estrela rock.
Aqui tenho de sorrir e ser condescendente para com Anne Rice. Nem vou transcrever as letras que ela escreveu para Lestat. Não, são piores que “Black #1” dos Type O Negative. Mas muito piores!!!
Digamos que Anne Rice queria dizer que Lestat se tornou um ídolo internacional à escala de Marilyn Manson, mas sem a polémica de Marilyn Manson porque ninguém acreditava que ele fosse mesmo um vampiro. Pobre Anne Rice, que em 1985 não acreditava que certas pessoas fossem tão estúpidas que pensassem que um cantor rock pudesse mesmo ser um vampiro - ou o Anticristo!!! E, no entanto, em pleno século XXI, ainda há quem veja o Demónio em Brian Warner.
O que é que aprendemos daqui?
1, Que Anne Rice é uma optimista e que as pessoas podem ser mais estúpidas do que nós imaginamos, ou
2, Que nos anos 80 se vivia uma euforia artística e cultural que não deixava antever a regressão dos anos 90?
Aposto na segunda hipótese porque o progresso é mesmo feito de avanços e recuos.
De volta ao vampiro
Na sua existência vampírica, o destino de Lestat repete-se. O próprio acaba por perceber isto não só em relação a ele próprio como aos outros que o rodeiam. Mortais ou imortais, parece que todas as voltas vão dar ao mesmo fim. Ao tentar brilhar de novo num palco e fazer aquilo para que nasceu... a nova “família” insurge-se. Não pode expor-se assim dessa maneira, não lhe é permitido expor os outros. É preciso remeter-se às sombras e ao anonimato. Não admira que Lestat venha a ter um comportamento suicida e auto-destrutivo. Está tão aprisionado pelo destino como mais tarde se vê aprisionado num corpo humano, já em “The Tale of the Body Thief”.
Sozinho, frustrado... e a precisar de muita terapia.
Mal posso esperar por ler “Memnoch, o diabo”.
Mas, antes, vou reler “Queen of the Damned”. Acontece que já li em português e se há pensamentos de Anne Rice que não se percebem em inglês, muito menos noutra língua. Não me queixo dos tradutores nem da escritora. Pelo contrário, muitas vezes a grandiosidade de um escritor está na dificuldade em interpretar e traduzir as suas frases que evocam toda uma corrente de pensamentos e sentimentos associados aos sons, às sílabas, aos jogos de palavras... Isso fica “lost in translation”. É um pouco como traduzir Fernando Pessoa para outra língua sem lhe assassinar a poesia. É daqueles casos em que não basta traduzir mas re-escrever. Não se pode pedir tanto a um tradutor. (Não se pode pedir tanto a ninguém.)
“O Vampiro Lestat” só termina na introdução da “Rainha dos Malditos” Diz ele: “É uma verdade horrível que o sofrimento nos pode tornar mais profundos, dar mais brilho às nossas cores, uma ressonância mais rica às nossas vozes. Isto é, se não nos destrói, se não nos queima o optimismo e abate o espírito, a capacidade de sonhar, e o respeito pelas coisas simples mas indispensáveis. Por favor perdoem-me se vos soo amargo”.
Como não? Afinal, é apenas a destruição da humanidade que Lestat quase provoca com a Rainha dos Malditos... E só queria voltar a ser o jovem actor que fugiu de casa para andar de feira em feira com saltibancos italianos... É lixado sermos nós próprios.
Notas de humor
“Todas as noites quando regressava a Carmel Valley eu pegava nos sacos de correio dos fãs (...) e procurava neles escrita de vampiros (...) mas não havia nada excepto a devoção fervorosa dos mortais.
‘Querido Lestat, eu e a minha amiga Sheryl adoramos-te, e não conseguimos bilhetes para San Fransciso embora tenhamos estado na bicha durante seis horas. Por favor manda-nos dois bilhetes. Nós seremos tuas vítimas. Podes beber o nosso sangue.’”
Delicioso!
Fantástico!
E eu queixava-me do preço dos bilhetes para o Nick Cave.
E há aquela parte em que Louis fala dos bares onde os vampiros se encontram, e de uma certa fauna humana que também por lá anda... Esta, confesso, foi dolorosa. Diz Louis:
“Os mortais que lá vão são um autêntico circo de tipos teatrais - jovens punks, artistas, aqueles que vestem capas negras e dentes de vampiro de plástico. Eles mal dão por nós! Comparados com eles, somos ofuscados!”
Senhor Louis, já é suficientemente mau ter nascido numa época de trajes elegantes - nada de tricórnios e fatos brilhantes cor de malva que são coisas do seu ilustre amigo - e não poder apontar um dedo ao seu bom gosto, e ainda por cima ser um vampiro famoso e quase antigo e aos antigos não se falta ao respeito, não pela hierarquia gótica porque o senhor não é gótico nem percebe nada do assunto (faz de conta!), mas com a respectiva vénia: beba-nos o sangue mas não critique as nossas roupas!
Publicado por _gotika_ em 02:59 AM | Comentários: (6)
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 25, 2004
O teste da vida
Este fizeram-mo há muito tempo e não sei se agora responderia da mesma forma. Acho que sim, mas não tenho a certeza. Isto para vos mostrar que não se faz de ânimo leve. É um teste muito interessante porque puxa pela nossa capacidade de interpretação de acordo com o que vai no nosso inconsciente. É mesmo um teste mais psicológico de auto-conhecimento do que outra coisa. E como tal, subjectivo. Mas eu gostei muito e vou aqui reproduzi-lo para que outros possam tirar dele o mesmo prazer e ao mesmo tempo aprendam sobre eles próprios.
Primeiro vou pôr as perguntas, com espaços para que possam pensar nas respostas. Aconselho-vos a parar e meditar muito bem naquilo que vocês fariam. Afinal, este teste não tem pontuação. Não é para mostrar que são bons nisto ou naquilo, é apenas para se conhecerem melhor.
Depois, vou dizer o que eu respondi, e que eu acho que ainda responderia.
Então, vamos lá...
Estás a passear por uma floresta. Descreve a floresta.
Pelo caminho, encontras um pote cheio de moedas de ouro. O que fazes?
Mais à frente, encontras uma casa desabitada. Descreve a casa. Tentas lá entrar?
Depois da casa, encontras um cavalo na floresta. Tens medo dele? O que fazes? Aproximas-te? Tentas montá-lo?
Continuas o teu passeio. Encontras um lago no caminho. Descreve o lago. O que fazes? Entras nele?
Por fim, o teu passeio acaba com um alto muro que se ergue diante de ti. Voltas para trás, espreitas para ver o que está do outro lado do muro, saltas o muro?
As minhas respostas (e a interpretação):
A minha floresta era cheia de árvores e arbustos, muito verde e densa, coberta de ramos por onde nem sequer passava a luz. A floresta significa a vida. Quanto mais densa ela for, mais complicada nós achamos que é a vida.
O pote cheio de moedas significa a relação com os amigos. Esta interpretação é altamente discutível! Tentar agarrar muitas moedas significa (segundo o teste) ter facilidade em fazer amigos e dar-lhes muita importância. Pessoalmente acho um disparate, mas assim como assim, a minha resposta não foi - por razões que desconheço - a resposta completamente lógica: “Levo o pote todo!”. Pelo contrário, levava apenas as moedas que pudesse carregar. Nada me disse que o pote era demasiado pesado para o levar todo comigo, nada me disse que o pote não podia ser levado. Isso fui eu que imaginei, é a minha projecção psicológica a funcionar. Logo...
A casa desabitada. Para mim, era um cabana abandonada onde ninguém morava há décadas. Cheia de pó e sujidade e teias de aranha, jamais me passaria pela cabeça entrar lá dentro. Não havia lá nada que me atraísse, mas mesmo nada. A casa é como vemos o casamento e a constituição de família. Escusado será dizer que nem pela janela eu espreitava...
O cavalo significa a nossa posição perante a sexualidade. Sem saber disso, eu disse logo que me aproximava, via se era manso e, sim, claro que tentava montá-lo. Aliás, montava-o mesmo. Havia de lhe dar a volta.
O lago. Antes de mais, tinha de desmontar do cavalo. (Isto mostra que para mim a sexualidade está intimamente ligada a uma continuidade, a um companheirismo. Depois de encontrado o cavalo, o meu inconsciente dizia-me que ele ia comigo - ou que eu o levava - pelo resto da jornada.) O lago era límpido, claro e sereno. Possivelmente, se estivesse calor, tirava a roupa (ou não) e ia tomar banho. Possivelmente queria levar comigo o cavalo para a água.
O lago não tem a ver com a sexualidade mas com os problemas que surgem na vida e a maneira com que se lida com eles. Isto significaria que eu mergulharia de cabeça dentro deles. Não tentava passar-lhes ao lado nem dar-lhes a volta, mas transformá-los-ia num desafio, até num prazer, em vez de um contratempo.
Será?... Então está mais que meio mundo enganado quanto a mim ou este teste não vale a ponta de um corno.
O muro alto. Esta é a minha parte preferida do teste. Nunca percebi por que razão havia de voltar para trás perante o muro. Nunca voltaria para trás. O que eu faria, sim, era pôr-me em bicos dos pés para espreitar o que havia do outro lado do muro. Se gostasse, saltava para o outro lado. Se não gostasse, em vez de voltar para trás, caminhava ao longo dele até ao sítio em que o muro acabasse. Na certeza de que todos os muros têm um fim.
O muro é a morte.
Publicado por _gotika_ em 08:06 AM | Comentários: (1)
O teste da vida
Este fizeram-mo há muito tempo e não sei se agora responderia da mesma forma. Acho que sim, mas não tenho a certeza. Isto para vos mostrar que não se faz de ânimo leve. É um teste muito interessante porque puxa pela nossa capacidade de interpretação de acordo com o que vai no nosso inconsciente. É mesmo um teste mais psicológico de auto-conhecimento do que outra coisa. E como tal, subjectivo. Mas eu gostei muito e vou aqui reproduzi-lo para que outros possam tirar dele o mesmo prazer e ao mesmo tempo aprendam sobre eles próprios.
Primeiro vou pôr as perguntas, com espaços para que possam pensar nas respostas. Aconselho-vos a parar e meditar muito bem naquilo que vocês fariam. Afinal, este teste não tem pontuação. Não é para mostrar que são bons nisto ou naquilo, é apenas para se conhecerem melhor.
Depois, vou dizer o que eu respondi, e que eu acho que ainda responderia.
Então, vamos lá...
Estás a passear por uma floresta. Descreve a floresta.
Pelo caminho, encontras um pote cheio de moedas de ouro. O que fazes?
Mais à frente, encontras uma casa desabitada. Descreve a casa. Tentas lá entrar?
Depois da casa, encontras um cavalo na floresta. Tens medo dele? O que fazes? Aproximas-te? Tentas montá-lo?
Continuas o teu passeio. Encontras um lago no caminho. Descreve o lago. O que fazes? Entras nele?
Por fim, o teu passeio acaba com um alto muro que se ergue diante de ti. Voltas para trás, espreitas para ver o que está do outro lado do muro, saltas o muro?
As minhas respostas (e a interpretação):
A minha floresta era cheia de árvores e arbustos, muito verde e densa, coberta de ramos por onde nem sequer passava a luz. A floresta significa a vida. Quanto mais densa ela for, mais complicada nós achamos que é a vida.
O pote cheio de moedas significa a relação com os amigos. Esta interpretação é altamente discutível! Tentar agarrar muitas moedas significa (segundo o teste) ter facilidade em fazer amigos e dar-lhes muita importância. Pessoalmente acho um disparate, mas assim como assim, a minha resposta não foi - por razões que desconheço - a resposta completamente lógica: “Levo o pote todo!”. Pelo contrário, levava apenas as moedas que pudesse carregar. Nada me disse que o pote era demasiado pesado para o levar todo comigo, nada me disse que o pote não podia ser levado. Isso fui eu que imaginei, é a minha projecção psicológica a funcionar. Logo...
A casa desabitada. Para mim, era um cabana abandonada onde ninguém morava há décadas. Cheia de pó e sujidade e teias de aranha, jamais me passaria pela cabeça entrar lá dentro. Não havia lá nada que me atraísse, mas mesmo nada. A casa é como vemos o casamento e a constituição de família. Escusado será dizer que nem pela janela eu espreitava...
O cavalo significa a nossa posição perante a sexualidade. Sem saber disso, eu disse logo que me aproximava, via se era manso e, sim, claro que tentava montá-lo. Aliás, montava-o mesmo. Havia de lhe dar a volta.
O lago. Antes de mais, tinha de desmontar do cavalo. (Isto mostra que para mim a sexualidade está intimamente ligada a uma continuidade, a um companheirismo. Depois de encontrado o cavalo, o meu inconsciente dizia-me que ele ia comigo - ou que eu o levava - pelo resto da jornada.) O lago era límpido, claro e sereno. Possivelmente, se estivesse calor, tirava a roupa (ou não) e ia tomar banho. Possivelmente queria levar comigo o cavalo para a água.
O lago não tem a ver com a sexualidade mas com os problemas que surgem na vida e a maneira com que se lida com eles. Isto significaria que eu mergulharia de cabeça dentro deles. Não tentava passar-lhes ao lado nem dar-lhes a volta, mas transformá-los-ia num desafio, até num prazer, em vez de um contratempo.
Será?... Então está mais que meio mundo enganado quanto a mim ou este teste não vale a ponta de um corno.
O muro alto. Esta é a minha parte preferida do teste. Nunca percebi por que razão havia de voltar para trás perante o muro. Nunca voltaria para trás. O que eu faria, sim, era pôr-me em bicos dos pés para espreitar o que havia do outro lado do muro. Se gostasse, saltava para o outro lado. Se não gostasse, em vez de voltar para trás, caminhava ao longo dele até ao sítio em que o muro acabasse. Na certeza de que todos os muros têm um fim.
O muro é a morte.
Publicado por _gotika_ em 08:06 AM | Comentários: (1)
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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
O que fugiu
Verão 1999 - 16 de Fevereiro de 2013
Sempre foste fujão.
Ela abriu-te a porta. Fugiste atrás dela!
Que esses olhos redondinhos só teus contemplem agora muitos jardins soalheiros e brincalhões, Lá onde foste, Onde estás, meu amigo.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 19, 2004
Comentários góticos
O livro é o projecto para a velhice :) se eu lá chegar. Se não chegar, não há livro.
Sim, eu sei que já sou velha, mas falar do movimento gótico é como ser vampiro e dar uma entrevista: quanto mais velho se é, mais autoridade se tem.
Por falar nisso, certa vez alguém aqui comentou que ser mais velho não é saber mais porque os mais velhos tem um conhecimento ultrapassado. Raciocínio errado. Só tem um conhecimento ultrapassado quem não o actualiza à luz de aprendizagens novas. Infelizmente, a maioria dos velhos é apenas velho e não sábio.
Voltando à sugestão do Jesusrocks, se tal livro surgisse com certeza que seria feita uma alusão aos movimentos que referes - é incontornável - mas não me parece que mereça mais do que duas páginas. Isto porque já há milhares de livros sobre esses temas, escritos por verdadeiros peritos na matéria, em abordagens históricas, literárias, arquitectónicas, sociológicas... Eu própria sou uma consumidora ávida desse material histórico-sócio-artístico e não me atrevo a meter por aí a colher.
O que é interessante, e é novo, e não está suficientemente debatido, é esta “nova” explosão “assumida” - reparem nas aspas - dessa corrente do pensamento humano que é o gótico nos finais do século XX - e notem que chamar-lhe “corrente do pensamento humano” já é uma ousadia da minha parte que teria de justificar por A mais B. É como se através de um movimento musical algumas pessoas aproveitassem para ir buscar o pensamento e o sentimento inerente a todas essas épocas da História e o ressuscitassem na actualidade. Mas porquê aqui e agora? Porque vivemos na era mais apocalíptica que o ser humano já viveu? Porque o século XX deu tanta margem de manobra ao ser humano para viver a sua vida individual de forma plena e satisfatória - o que é um facto novo da História porque até ao século XX a sociedade não permitia que o indivíduo se desmarcasse sequer da sua classe social - que de certo modo o Homem foi também forçado a ponderar a sua mortalidade? E que morto Deus, no século XX, a mortalidade inerente ao ser humano se tornasse subitamente mais assustadora do que alguma vez tinha sido?
Quanto às raízes do movimento musical gótico nos anos 60, claro que percebo o queres dizer, porque houve o misticismo hippie e houve os Doors, mas se começarmos a pensar para trás, muito mais para trás, o tema da tristeza e do amor e da morte está na música desde as cantigas de amigo e mais cedo ainda nas canções celtas, e sabe-se lá se nas cantigas egípcias... E se pensarmos que a arte esteve também ligada ao despertar da espiritualidade no homem pré-histórico, e que as primeiras “composições” foram celebrações rituais, podemos chegar ao cúmulo de afirmar que a primeira canção gótica foi “escrita” por um feiticeiro de uma tribo Neanderthal... :)
O que não deixa de ser extremamente interessante.
É muito interessante o que dizes, porque agora ando a ler “O vampiro Lestat” - Lovecraft terá de esperar - e de facto o vampiro Armand tem uma aparência muito mais jovem do que dá a entender na “Entrevista”. Será que a malta que fez o filme não leu os livros anteriores? Por outro lado, sendo Armand um adolescente, e com as sugestões homossexuais implícitas em toda a obra de Anne Rice, ainda eram acusados de pedófilia. Portanto, deixemos lá estar o Banderas que está bem. :>
Publicado por _gotika_ em 03:44 AM | Comentários: (3)
Comentários góticos
Tenho reparado que falas no gótico como tendo início no final do séc. XX numa alusão clara ao movimento gótico musical. Já que pretendes escrever um livro sobre o assunto (projecto que apoio) penso que deverias também pesquisar sobre a relação (que existe) entre os outros movimentos góticos, o arquitectónico (sécs. XII a XV) e o literário (sécs. XVIII e XIX) e o movimento gótico musical do séc XX cujas raíses remontam aos anos 60 (um pouco mais cedo do que tens mencionado). Enviado por jesusrocks em março 12, 2004 01:18 PM
O livro é o projecto para a velhice :) se eu lá chegar. Se não chegar, não há livro.
Sim, eu sei que já sou velha, mas falar do movimento gótico é como ser vampiro e dar uma entrevista: quanto mais velho se é, mais autoridade se tem.
Por falar nisso, certa vez alguém aqui comentou que ser mais velho não é saber mais porque os mais velhos tem um conhecimento ultrapassado. Raciocínio errado. Só tem um conhecimento ultrapassado quem não o actualiza à luz de aprendizagens novas. Infelizmente, a maioria dos velhos é apenas velho e não sábio.
Voltando à sugestão do Jesusrocks, se tal livro surgisse com certeza que seria feita uma alusão aos movimentos que referes - é incontornável - mas não me parece que mereça mais do que duas páginas. Isto porque já há milhares de livros sobre esses temas, escritos por verdadeiros peritos na matéria, em abordagens históricas, literárias, arquitectónicas, sociológicas... Eu própria sou uma consumidora ávida desse material histórico-sócio-artístico e não me atrevo a meter por aí a colher.
O que é interessante, e é novo, e não está suficientemente debatido, é esta “nova” explosão “assumida” - reparem nas aspas - dessa corrente do pensamento humano que é o gótico nos finais do século XX - e notem que chamar-lhe “corrente do pensamento humano” já é uma ousadia da minha parte que teria de justificar por A mais B. É como se através de um movimento musical algumas pessoas aproveitassem para ir buscar o pensamento e o sentimento inerente a todas essas épocas da História e o ressuscitassem na actualidade. Mas porquê aqui e agora? Porque vivemos na era mais apocalíptica que o ser humano já viveu? Porque o século XX deu tanta margem de manobra ao ser humano para viver a sua vida individual de forma plena e satisfatória - o que é um facto novo da História porque até ao século XX a sociedade não permitia que o indivíduo se desmarcasse sequer da sua classe social - que de certo modo o Homem foi também forçado a ponderar a sua mortalidade? E que morto Deus, no século XX, a mortalidade inerente ao ser humano se tornasse subitamente mais assustadora do que alguma vez tinha sido?
Quanto às raízes do movimento musical gótico nos anos 60, claro que percebo o queres dizer, porque houve o misticismo hippie e houve os Doors, mas se começarmos a pensar para trás, muito mais para trás, o tema da tristeza e do amor e da morte está na música desde as cantigas de amigo e mais cedo ainda nas canções celtas, e sabe-se lá se nas cantigas egípcias... E se pensarmos que a arte esteve também ligada ao despertar da espiritualidade no homem pré-histórico, e que as primeiras “composições” foram celebrações rituais, podemos chegar ao cúmulo de afirmar que a primeira canção gótica foi “escrita” por um feiticeiro de uma tribo Neanderthal... :)
O que não deixa de ser extremamente interessante.
Ok, adivinha, tb sou fã da Ana Arroz. Só alguns reparos... "Tom Cruise é demasiado macho..." Ok- opiniões, lol. Mas concordo que Lestat não é um gótico mas um hedonista. Louis é a personagem mais gótica dos livros de Anne Rice. (E já li alguns...) Quanto a Armand é bom não esquecer que ele é um vampiro "demasiado novo para o ser", apesar de ser dos mais velhos que aparece em "Entrevista". Banderas nunca poderia ser Armand. Ah... hum... Meow? Enviado por BiTheWay em março 12, 2004 08:07 PM
É muito interessante o que dizes, porque agora ando a ler “O vampiro Lestat” - Lovecraft terá de esperar - e de facto o vampiro Armand tem uma aparência muito mais jovem do que dá a entender na “Entrevista”. Será que a malta que fez o filme não leu os livros anteriores? Por outro lado, sendo Armand um adolescente, e com as sugestões homossexuais implícitas em toda a obra de Anne Rice, ainda eram acusados de pedófilia. Portanto, deixemos lá estar o Banderas que está bem. :>
Publicado por _gotika_ em 03:44 AM | Comentários: (3)
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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Pequenina.
Julho 1998 - 12 de Fevereiro de 2013
Nunca ninguém me amou como tu me amaste.
Dantes eras só tu, eu e Deus. Agora que não estás aqui, Deus não chega para encher o teu espaço.
Pequenina.
De "lost" a "walking dead"s
Já aqui tinha dito algures que há séries capazes de definir uma época. "Lost", na minha opinião, foi a série-ícone da primeira década do século XXI, tal como "The X-Files" e "Twin Peaks" o foram para os anos 90. Falei de "Lost" primeiro aqui (e não acertei muito) e depois aqui (onde já acertei mais). Adiei pelo tempo infinito ver o fim da série. Parte de mim tinha medo que os autores não conseguissem descalçar a bota. A outra parte não queria que acabasse. E quando aconteceu, quando vi o fim, fiquei sem palavras. Ainda tentei fazer um esboço de post mas nada do que diga, ainda agora, pode descrever por palavras o choque emocional, espiritual e filosófico daquele final. Na falta de palavras as lágrimas corriam-me pela cara episódio após episódio.
Muitas vezes disse às pessoas que "Lost" era uma experiência pessoal. Daquelas em que se tem de participar voluntariamente, mas criticamente. A genialidade da série não se deixa ficar refém de uma única interpretação. Eu tenho a minha, outros terão a deles.
Passou muito tempo e acabei por não conseguir vir aqui expressar esta única palavra: genial. Como tudo o que é genial, transcendente. Não me parece que alguém que tenha acompanhado "Lost", a experiência, tenha permanecido indiferente.
Estava a massacrar-me não ter vindo fazer aqui este último comentário, e entretanto o tempo passou e quase desisti de voltar a falar da série... Mas é impossível. "Lost" deixou um legado cinemático e filosófico de que não se pode recuar. Está em tudo, desde o mais provável "Fringe" ao mais improvável "Diários do Vampiro". De repente, já não era possível fazer episódios como dantes: princípio, acção, final. Também no estilo "Lost" foi revolucionário. O flashfoward, e o cliffhanger (como se chama na gíria àqueles últimos minutos ou segundos de suspense como dantes só se fazia no cinema para dar lugar à sequela), trouxeram às séries um dinamismo e esforço mental que não fazia parte do antigo conceito de "episódio". Exige-se ao espectador a a atenção que dantes se reservava a um filme. A série, antes remetida a um papel próximo da telenovela, ganhou estatuto.
[Nada me desconvence que a própria série "Flashforward", onde de certeza não acidentalmente um dos protagonistas é um actor de "Lost", foi buscar o nome à técnica que "Lost" impôs. Talvez não apenas o nome mas todo o conceito!... Vi a primeira temporada. Ainda não tive curiosidade de ir pesquisar se a série continuou.]
Agora, o futuro. "The Walking Dead" arrisca-se a tornar-se um ícone desta década. Nunca pensei vir a dizer isto de uma série de mortos-vivos. Os miúdos que vão crescer com "The Walking Dead" não são os miúdos que julgaram que "The Night of the Living Dead" era uma boa paródia para ocupar uma noite de lazer. Agora parece mais real. É mais real. Agora a humanidade não é apenas acossada por mortos-vivos, agora a humanidade começa a devorar-se a si própria. Como na série. E é por isso que parece mais real, mesmo aqui ao lado. Já não na ilha distante e isolada onde os personagens travavam uma batalha pela sobrevivência contra inimigos invisiveis. Agora os inimigos vêem-se, e cheiram-se, e devoram-nos. Os mortos e os vivos. Quais deles os piores, quais deles os mais perigosos. E em tempos perigosos não há lealdade sequer dentro do grupo. Como se antevia em "Lost", onde já tudo desmoronava excepto pela fé, já tudo desmoronou, até a fé. O mundo devora-se, a turba de zombies-rebanhos avança, os mais vivos caçam-se uns aos outros. E o mundo vê e sabe. O cenário apocalíptico retrata o que se passa lá fora, se calhar cá dentro, das nossas casas. O mundo tem fome do fim e acredita que o fim ia ser em 2012. O mundo sabe que entre zombies e sociopatas, posta fora a civilização e regressando à sobrevivência selvagem, a Humanidade caminha para o precipício. Estamos todos infectados. Uns poucos tentam resistir, sobreviver, e escolher entre ficar zombificados ou perder a humanidade. Já aconteceu antes e pode acontecer outra vez, mas agora o mundo já não pode clamar inocência. Uns poucos vêem. Os outros são zombies. O mundo tem fome de fim.
Se em "Lost" havia tempo para filosofar sobre o que fazer no futuro, na ilha inacessível e distante, agora o futuro está à porta. E não é bonito. E o tempo esgotou-se.
O tsunami de zombies marcha das sombras sobre uns incautos pai e filho de costas voltadas ao perigo, embrenhados num dilema dramático para o qual não terão tempo, mas não sabem. Alguém acredita que se safam? Alguém ainda tem fé? Porque eu não tive. E se um grupo de sobreviventes ainda respira, correndo e pilhando de casa abandonada em casa abandonada, aquilo já não é Humanidade. Aquilo é a pré-história do futuro. Homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, de volta ao estado de caçadores-recolectores. A civilização constrói-se mas também se perde.
Estavam perdidos e estão cada vez mais perdidos.
Muitas vezes disse às pessoas que "Lost" era uma experiência pessoal. Daquelas em que se tem de participar voluntariamente, mas criticamente. A genialidade da série não se deixa ficar refém de uma única interpretação. Eu tenho a minha, outros terão a deles.
Passou muito tempo e acabei por não conseguir vir aqui expressar esta única palavra: genial. Como tudo o que é genial, transcendente. Não me parece que alguém que tenha acompanhado "Lost", a experiência, tenha permanecido indiferente.
Estava a massacrar-me não ter vindo fazer aqui este último comentário, e entretanto o tempo passou e quase desisti de voltar a falar da série... Mas é impossível. "Lost" deixou um legado cinemático e filosófico de que não se pode recuar. Está em tudo, desde o mais provável "Fringe" ao mais improvável "Diários do Vampiro". De repente, já não era possível fazer episódios como dantes: princípio, acção, final. Também no estilo "Lost" foi revolucionário. O flashfoward, e o cliffhanger (como se chama na gíria àqueles últimos minutos ou segundos de suspense como dantes só se fazia no cinema para dar lugar à sequela), trouxeram às séries um dinamismo e esforço mental que não fazia parte do antigo conceito de "episódio". Exige-se ao espectador a a atenção que dantes se reservava a um filme. A série, antes remetida a um papel próximo da telenovela, ganhou estatuto.
[Nada me desconvence que a própria série "Flashforward", onde de certeza não acidentalmente um dos protagonistas é um actor de "Lost", foi buscar o nome à técnica que "Lost" impôs. Talvez não apenas o nome mas todo o conceito!... Vi a primeira temporada. Ainda não tive curiosidade de ir pesquisar se a série continuou.]
Agora, o futuro. "The Walking Dead" arrisca-se a tornar-se um ícone desta década. Nunca pensei vir a dizer isto de uma série de mortos-vivos. Os miúdos que vão crescer com "The Walking Dead" não são os miúdos que julgaram que "The Night of the Living Dead" era uma boa paródia para ocupar uma noite de lazer. Agora parece mais real. É mais real. Agora a humanidade não é apenas acossada por mortos-vivos, agora a humanidade começa a devorar-se a si própria. Como na série. E é por isso que parece mais real, mesmo aqui ao lado. Já não na ilha distante e isolada onde os personagens travavam uma batalha pela sobrevivência contra inimigos invisiveis. Agora os inimigos vêem-se, e cheiram-se, e devoram-nos. Os mortos e os vivos. Quais deles os piores, quais deles os mais perigosos. E em tempos perigosos não há lealdade sequer dentro do grupo. Como se antevia em "Lost", onde já tudo desmoronava excepto pela fé, já tudo desmoronou, até a fé. O mundo devora-se, a turba de zombies-rebanhos avança, os mais vivos caçam-se uns aos outros. E o mundo vê e sabe. O cenário apocalíptico retrata o que se passa lá fora, se calhar cá dentro, das nossas casas. O mundo tem fome do fim e acredita que o fim ia ser em 2012. O mundo sabe que entre zombies e sociopatas, posta fora a civilização e regressando à sobrevivência selvagem, a Humanidade caminha para o precipício. Estamos todos infectados. Uns poucos tentam resistir, sobreviver, e escolher entre ficar zombificados ou perder a humanidade. Já aconteceu antes e pode acontecer outra vez, mas agora o mundo já não pode clamar inocência. Uns poucos vêem. Os outros são zombies. O mundo tem fome de fim.
Se em "Lost" havia tempo para filosofar sobre o que fazer no futuro, na ilha inacessível e distante, agora o futuro está à porta. E não é bonito. E o tempo esgotou-se.
O tsunami de zombies marcha das sombras sobre uns incautos pai e filho de costas voltadas ao perigo, embrenhados num dilema dramático para o qual não terão tempo, mas não sabem. Alguém acredita que se safam? Alguém ainda tem fé? Porque eu não tive. E se um grupo de sobreviventes ainda respira, correndo e pilhando de casa abandonada em casa abandonada, aquilo já não é Humanidade. Aquilo é a pré-história do futuro. Homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, de volta ao estado de caçadores-recolectores. A civilização constrói-se mas também se perde.
Estavam perdidos e estão cada vez mais perdidos.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 12, 2004
Louis, o gótico
(De volta aos meus apontamentos sobre o movimento gótico, para o livro... Um ensaio de ensaio sobre Louis, o vampiro.)
Quando Anne Rice escreveu “Entrevista com o vampiro”, em 1976, o movimento gótico como o conhecemos hoje ainda não tinha sequer despertado. No entanto, a personagem Louis é um exemplo paradigmático do existencialismo gótico. Eis aqui também um exemplo de que o gótico já existia. A música que hoje chamamos gótica só veio juntar-se a muitas e anteriores obras de arte amadas pelos góticos de todos os tempos.
Não é fácil apontar uma personalidade da História e dizer com toda a certeza: aquele ou aquela era gótico. Podemos presumir que provavelmente o seria. O gótico é um estado de espírito e uma forma de pensar que só revela quem quer. Não tendo acesso aos sentimentos e pensamentos dessas pessoas notáveis, como por exemplo, Florbela Espanca, dificilmente podemos dizê-lo com tanta certeza. Tudo nos sonetos de Florbela aponta nessa direcção, mas... Seria apenas uma mulher deprimida? E em que medida é que isso (a depressão diagnosticada) tira ou anula a essência da alma gótica?
Não será para debater neste momento mas seria bom realçar que existem dois tipos de depressão: a passageira (provocada por uma morte ou desemprego ou outro facto traumatizante) e a crónica. A principal diferença entre as duas é a sua duração. A depressão ocasional acaba por desaparecer, com ou sem ajuda de terapia ou medicamentos. Pode-se considerá-la uma depressão normal, uma vez que a pessoa acaba de perder algo que muito estimava ou de passar por um evento traumático. Tal como normal é a sua recuperação.
A depressão crónica pode durar anos. E também pode passar. Ou não. Mas não é uma depressão normal e situada. Muitas vezes não é provocada por um acontecimento isolado. Muitas vezes o deprimido nem sabe porque se sente triste. Na maioria das vezes, na origem desta depressão estão vários acontecimentos sobrepostos, quase sempre dificuldade em lidar com fantasmas da infância e problemas da idade adulta. Muito mais complexa do que a primeira, esta depressão pode ser resistente à terapia e aos medicamentos e pode nunca desaparecer.
O que sabemos de Florbela Espanca é que era uma pessoa deprimida. Possivelmente crónica.
Mas quando falo em Louis tenho a vantagem de ter lido os pensamentos mais profundos de uma personagem, e aqui já não falo em depressão. Aqui já falo da descrição de uma personalidade (mesmo que ficcional) que congrega em si a essência do sentir gótico, onde a tristeza e a melancolia são consequências, e não causas, do estado de alma que define o gótico em todos os tempos, em todos os lugares. Daí toda esta vasta introdução para distinguir entre a depressão clínica e o sentimento gótico.
O percurso de Louis
Possivelmente Anne Rice não sabia que estava a descrever um gótico nas páginas do seu livro. Terá talvez conhecido alguém semelhante ao seu Louis, é muito provável. Os escritores inspiram-se bastante nas pessoas que conhecem. Ao escrever um livro de vampiros, poder-se-á pensar, era difícil não descrever um gótico. Mas não é assim. Louis é o único exemplo entre todas as capas negras da vampirada. Mais uma vez, tal como o hábito não faz o monge, a roupa não faz o gótico. (E continua a ser assim, principalmente agora que o gótico se tornou uma moda juvenil.)
Na sua vida mortal, Louis já era gótico. Mas a sua relação amor-ódio com a morte rebentou ruidosamente com o falecimento do seu irmão. A partir daí ficou obcecado com todos os pormenores que a rodeiam: a decomposição, o luto, a culpa, o destino da alma. Forçosamente, é levado também a questionar o próprio sentido da vida. E não o encontrou. Entra assim no estado de alma a que as pessoas chamam depressão. Deseja a morte mas não tem coragem de se matar. Contudo arrisca a vida em comportamentos violentos, no álcool, nas brigas. Perde todo o interesse pelos negócios, pela família, pela vida. Este seria o momento em que, no século XX, lhe seriam receitados anti-depressivos. Mas neste caso a solução não passava nem perto pelas pílulas mágicas. Uma vez feita a pergunta “porquê?”, não há saciedade possível antes de obter a resposta ou, pelo menos, uma resposta satisfatória.
É então que Louis encontra Lestat. Pede-lhe a morte e deseja morrer, mas no momento da verdade falta-lhe a coragem. É então transformado num vampiro, num estado mental de “tanto faz”, essa passividade de quem já não se interessa pela vida. E depois de ser vampiro, continua a não se interessar. A vida nada lhe diz. Sente-se deslocado, perdido entre dois mundos em que não se reconhece. Repugna-lhe o mal e odeia-se por tirar vidas mas continua a não ter coragem de pôr um ponto final à sua existência. Vive contrariado, como vivia antes de ser vampiro. Começa a questionar a sua natureza. Procura respostas em Deus e no Diabo mas não as encontra. Não consegue desligar-se da sua natureza humana que o acusa sempre que tem de matar alguém para se alimentar. Sente que está sob uma maldição, mas que mesmo antes de ser um vampiro a sua vida já estava sob uma maldição.
“Eu nunca pertenci a nenhum sítio, a ninguém, em tempo algum!”, confessa a Armand. A sua solidão é absoluta, mesmo rodeado dos companheiros, porque não é um deles nem nunca o será. Tem a consciência disto e às vezes deseja a completa solidão em vez da incompreensão de que é alvo. Os outros acusam-no de sentir demais e pensar demais. Dizem-lhe que deve deixar a carne guiar a mente em vez de se perder em pensamentos éticos que o fazem sofrer. Mas Louis não consegue ser igual a eles, e essa distância, essa absoluta solidão por não encontrar eco dos seus pensamentos e sentimentos em nenhum deles ainda o faz sofrer mais. Por isso isola-se. Mesmo estando presente em pessoa, está ausente em espírito. O desinteresse pela vida faz dele uma pessoa passiva, um observador, levado pelas decisões dos outros porque a ele tanto faz. A certa altura já não vive sequer. Existe. Simplesmente existe.
Ao conhecer Armand, conheceu a verdade. Que não é nenhum filho do diabo, que ninguém jamais conheceu Deus, que o seu estado de vampiro é tão misterioso como tinha sido o seu estado de ser humano. Descobre que não há respostas. E conforma-se.
Aqui já não vestígios de depressão. Resta apenas a resignação, a melancolia, o ser atormentado pelo simples facto de ter de existir. E continua a desejar o fim. A sua sensibilidade não lhe permite ser feliz - neste caso, porque tem que ser um assassino e odeia-se por isso. Sente demais e pensa demais. Sente-se um condenado. E é um condenado. Tem que aceitar a maldade dos outros vampiros para não ser hipócrita - afinal, ele também mata para saciar a fome - mas jamais se conforma em ser um “maldito”. Deseja a bondade e ama a bondade mas a vida só lhe mostra maldade e obriga-o a praticar a maldade. É por isso um condenado, porque a sua extrema sensibilidade não lhe permite ser feliz no mundo do Mal.
Por esta altura já desistiu da felicidade. Procura apenas uma espécie de paz de espírito.
Mesmo quando Armand se apaixona por ele e Louis se sente tentado a embarcar nessa “paixão”, é ainda em Cláudia que ele pensa, e se a fará sofrer por deixá-la para ficar com Armand. Longe de ser egoísta, Louis continua a pensar demais. Até pensa demais nos outros. Apesar de desgostado pela falta de escrúpulos de Cláudia, não deixa de a amar. Dividido, mesmo no amor não consegue deixar de pensar na dor que pode provocar aos outros e é incapaz de agir sabendo que está a magoar alguém.
Uma pessoa normal, como normais são os vampiros que o rodeiam, dir-lhe-ia que gosta de inventar problemas. Mas Louis sabe que não está a inventar nada. Os problemas estão lá. Os outros é que preferem não os ver.
Depois, um grande choque que o faz sair da sua passividade. Cláudia é violentamente morta. Possivelmente Armand é culpado. Finalmente Louis salta da sua apatia e vinga-se dos assassinos de Cláudia. Pensava que ia morrer de desgosto, mas em vez disso a sua alma fica fria. Entre os vampiros, Louis é considerado um fraco, exactamente por ser sensível e cheio de moral, mas de repente apercebe-se que não morreu do desgosto e que a vida continua. O desgosto é demasiado grande para ser suportado. E o que não nos mata torna-nos mais fortes. Ou não. Completamente gelado, Louis aceita a companhia de Armand e parte com ele pelo mundo fora.
Agora Louis refugia-se na arte, encontrando nela o único consolo para a sua infelicidade. E percorre o mundo pela arte, desinteressado da vida e dos que o rodeiam porque nada lhe dizem. Sozinho, embora na companhia de Armand. Muitas vezes ansiando que Armand simplesmente se vá embora. É o completo desespero.
E nunca mais Armand o teria, especialmente depois de confessar que sim, que foi ele quem ordenou a morte de Cláudia. E é sem emoção que Louis recebe a notícia, décadas mais tarde. E é com perplexidade que Armand percebe que já não existe um pingo de emoção visível na alma de Louis.
A última conversa entre os dois é notavelmente eloquente:
Armand: Não te interessas por nada. Pensei que pelo menos quisesses saber disto. Pensei que sentisses a antiga paixão, a antiga raiva, se o visses de novo [a Lestat]. Pensei que algo se movesse e voltasse à vida se o visses... se voltasses a este local.
Louis: Que eu voltasse à vida?
Armand: Sim! Sim, que voltasses à vida! (...) Eu acreditava que quando tu ultrapassasses isso - quando toda a dor te deixasse, tu te tornarias afectuoso e cheio de amor outra vez, e cheio daquela curiosidade insaciável e selvagem com que vieste ter comigo, aquele pensamento fixo, e aquela fome por conhecimento que te trouxe até Paris e aos meus aposentos. Pensei que era uma parte de ti que não podia morrer. E eu pensei que quando a dor tivesse desaparecido tu me perdoasses pela parte que eu tive na morte dela. Ela nunca te amou, sabes? Não da maneira que eu te amo, e da maneira que nos amaste aos dois. Eu sabia isto! Eu compreendia isto! E acreditei que te ia trazer para mim e manter-te comigo. E o tempo ia abrir-se para nós, e seríamos mestres um do outro. Todas as coisas que te faziam feliz far-me-iam feliz, e eu seria o protector da tua dor. O meu poder seria o teu poder. A minha força, a mesma coisa. Mas tu estás morto por dentro para mim, estás frio e fora do meu alcance! É como se eu não estivesse aqui, ao pé de ti. E não estando aqui contigo, tenho a sensação horrível de que nem sequer existo! E tu és tão frio e distante para mim como esses quadros modernos de linhas e formas duras que eu não posso amar nem compreender, tão estranho como essas esculturas mecânicas desta era que não têm forma humana. Eu estremeço quando estou ao pé de ti. Eu olho para os teus olhos e o meu reflexo não está lá...
Louis: O que pediste era impossível. Eu queria amor e bondade nesta coisa que é a morte na vida. Era impossível desde o princípio, porque não podes ter amor e bondade quando fazes o que sabes que é mau, o que sabes que é errado. Só se pode ter a confusão desesperada e o anseio e perseguir o fantasma da bondade na sua forma humana. Eu sabia as verdadeiras respostas às minhas perguntas ainda antes de chegar a Paris. Soube-o quando tomei pela primeira vez uma vida humana para satisfazer a minha necessidade. Foi a minha morte. E no entanto eu não quis aceitar, não podia aceitar, porque como todas as criaturas eu não desejo morrer! E por isso procurei por outros vampiros, por deus, pelo diabo, por centenas de coisas sob centenas de nomes. E era tudo a mesma coisa, tudo maldade. E tudo errado. Porque ninguém podia de forma nenhuma convencer-me do que eu próprio sabia ser verdade, que eu sou um maldito na minha própria mente e alma. E quando eu cheguei a Paris eu pensei que tu eras poderoso e belo e sem remorsos, e eu queria isso desesperadamente. Mas tu eras um destruidor tal como eu era um destruidor, ainda mais implacável e velhaco que eu. Tu mostraste-me a única coisa que eu podia de facto almejar alcançar, essa profundidade do Mal, esse nível de frieza que eu teria de atingir para pôr fim à minha dor. E eu aceitei isso. E por isso essa paixão, esse amor que viste em mim, extinguiu-se. E agora vês apenas um espelho de ti próprio.
Louis sofria demais por sentir demais. A única maneira de pôr fim à sua dor era revesti-la de gelo. Mas a mesma frieza que o protegia da dor impedia-o também de sentir o amor. Porque o que Louis fez foi simplesmente anular os seus sentimentos. Mas não podia fazer outra coisa. A dor era demasiada. Escolheu continuar a viver e encontrou uma espécie de paz, sem ódio nem paixão. Não o desespero, como pensa o entrevistador - o tal humano que lhe faz a entrevista - porque o desespero é uma palavra demasiado fraca para explicar a ausência de sentimento. Talvez a palavra exacta nem exista. Uma imagem me ocorre: a anestesia. A mesma anestesia que não deixa a pele sentir dor também não a deixa sentir uma carícia. E foi assim que Louis se anestesiou da sua imensa dor.
Louis, o exemplo gótico
Desde a sua vida humana, Louis procurou o sentido da vida perante a inevitabilidade da morte. E depois de se tornar imortal, continuou à procura. Nada mudou. Esperava encontrar as verdades que diminuíssem o seu desespero e solidão. Por isso se vira para os segredos do sobrenatural, para a procura por deus e pelo diabo, por tudo e alguma coisa que lhe possa mostrar um sentido maior para a vida do que simplesmente existir (seja meia dúzia de anos, seja uma eternidade). É um ser atormentado pelo simples facto de viver.
Enquanto os outros estão contentes por simplesmente viver, Louis não foi talhado para a vida. Para esta vida. Louis espera as respostas que não chegam. E angustia-se, incompreendido pelos outros que não partilham da mesma ansiedade.
Louis não é talhado para viver, muito menos para “viver feliz”. Encontra-se frequentemente a contemplar o abismo da morte, fascinado, e por várias vezes quase se atira de cabeça. Como se quisesse encontrar na morte as respostas que a vida não lhe dá. Uma coisa é certa, não encontra prazer neste viver com que os outros se contentam. Podem chamar-lhe fraco e choramingas mas Louis sofre com a falta de sensibilidade dos outros e já não espera ser compreendido. Isso torna-o muitas vezes agressivo porque a paciência também tem limites. Aliás, ele não esconde que também pratica a maldade. E por isso também sente que merece morrer. Cheio de ética, não se perdoa por “condenar” outros à morte quando ele se tornou também um monstro. Ao contrário dos companheiros, sofre quando mata, mas isso, aos seus olhos, não o torna menos maldito. Culpa-se eternamente. Pensa que não merece a existência. Sente demais e pensa demais.
Encontra o único prazer da vida numa procura incessante pela arte, o seu único prazer transcendente, o seu único momento de felicidade.
Podia ter sido sempre humano. Louis jamais seria feliz. A felicidade não faz parte da vida de um gótico e não adianta procurá-la. Porque uns já nascem amaldiçoados, outros não. A verdadeira maldição de Louis é sentir a dor dos outros como se fosse a sua. É por isso que mata com raiva, com raiva por matar.
O que separa Louis do suicídio? Pouco, muito pouco. É uma alma no arame, nada a perder, nada a ganhar, à deriva pelos ventos do tempo. Nada dentro dele desiste de encontrar as respostas. Pensar que desistiu é a mentira que diz a si próprio para não perturbar a sua paz artificial, pois tudo dentro dele arde e apenas um igual pode trazer esse fogo cá para fora.
Louis não nasceu para a vida mas para o além-vida, para a transcendência. Encontrará paz, sim, quando perceber a pessoa especial que ele próprio é e perdoar aos outros que temem e repudiam quem vive a pensar na morte.
Antes disso, haverá apenas ódio e isolamento. E arte. Mas a arte fica. O ódio vai-se. E as respostas estão onde ele não supõe que estejam - dentro dele próprio - porque não se sente digno do privilégio.
Mais solitário que um ser humano por ser um vampiro, Louis finge que não sente a torrente de sentimentos que mais ninguém sente senão ele. O ser atormentado pela Vida desiste do sobrenatural e vira-se para a arte em busca de alegria para os sentidos. Mas basta o sobrenatural estalar os dedos que o velho gótico se põe à escuta, pois nasceu para ouvir o que está para lá da vida e do seu destino não se livra, nem se quer livrar, porque lá no fundo se sabe dono de um destino tão amargo quanto raro mas, por isso mesmo, precioso.
Publicado por _gotika_ em 03:24 AM | Comentários: (3)
Louis, o gótico
(De volta aos meus apontamentos sobre o movimento gótico, para o livro... Um ensaio de ensaio sobre Louis, o vampiro.)
Quando Anne Rice escreveu “Entrevista com o vampiro”, em 1976, o movimento gótico como o conhecemos hoje ainda não tinha sequer despertado. No entanto, a personagem Louis é um exemplo paradigmático do existencialismo gótico. Eis aqui também um exemplo de que o gótico já existia. A música que hoje chamamos gótica só veio juntar-se a muitas e anteriores obras de arte amadas pelos góticos de todos os tempos.
Não é fácil apontar uma personalidade da História e dizer com toda a certeza: aquele ou aquela era gótico. Podemos presumir que provavelmente o seria. O gótico é um estado de espírito e uma forma de pensar que só revela quem quer. Não tendo acesso aos sentimentos e pensamentos dessas pessoas notáveis, como por exemplo, Florbela Espanca, dificilmente podemos dizê-lo com tanta certeza. Tudo nos sonetos de Florbela aponta nessa direcção, mas... Seria apenas uma mulher deprimida? E em que medida é que isso (a depressão diagnosticada) tira ou anula a essência da alma gótica?
Não será para debater neste momento mas seria bom realçar que existem dois tipos de depressão: a passageira (provocada por uma morte ou desemprego ou outro facto traumatizante) e a crónica. A principal diferença entre as duas é a sua duração. A depressão ocasional acaba por desaparecer, com ou sem ajuda de terapia ou medicamentos. Pode-se considerá-la uma depressão normal, uma vez que a pessoa acaba de perder algo que muito estimava ou de passar por um evento traumático. Tal como normal é a sua recuperação.
A depressão crónica pode durar anos. E também pode passar. Ou não. Mas não é uma depressão normal e situada. Muitas vezes não é provocada por um acontecimento isolado. Muitas vezes o deprimido nem sabe porque se sente triste. Na maioria das vezes, na origem desta depressão estão vários acontecimentos sobrepostos, quase sempre dificuldade em lidar com fantasmas da infância e problemas da idade adulta. Muito mais complexa do que a primeira, esta depressão pode ser resistente à terapia e aos medicamentos e pode nunca desaparecer.
O que sabemos de Florbela Espanca é que era uma pessoa deprimida. Possivelmente crónica.
Mas quando falo em Louis tenho a vantagem de ter lido os pensamentos mais profundos de uma personagem, e aqui já não falo em depressão. Aqui já falo da descrição de uma personalidade (mesmo que ficcional) que congrega em si a essência do sentir gótico, onde a tristeza e a melancolia são consequências, e não causas, do estado de alma que define o gótico em todos os tempos, em todos os lugares. Daí toda esta vasta introdução para distinguir entre a depressão clínica e o sentimento gótico.
O percurso de Louis
Possivelmente Anne Rice não sabia que estava a descrever um gótico nas páginas do seu livro. Terá talvez conhecido alguém semelhante ao seu Louis, é muito provável. Os escritores inspiram-se bastante nas pessoas que conhecem. Ao escrever um livro de vampiros, poder-se-á pensar, era difícil não descrever um gótico. Mas não é assim. Louis é o único exemplo entre todas as capas negras da vampirada. Mais uma vez, tal como o hábito não faz o monge, a roupa não faz o gótico. (E continua a ser assim, principalmente agora que o gótico se tornou uma moda juvenil.)
Na sua vida mortal, Louis já era gótico. Mas a sua relação amor-ódio com a morte rebentou ruidosamente com o falecimento do seu irmão. A partir daí ficou obcecado com todos os pormenores que a rodeiam: a decomposição, o luto, a culpa, o destino da alma. Forçosamente, é levado também a questionar o próprio sentido da vida. E não o encontrou. Entra assim no estado de alma a que as pessoas chamam depressão. Deseja a morte mas não tem coragem de se matar. Contudo arrisca a vida em comportamentos violentos, no álcool, nas brigas. Perde todo o interesse pelos negócios, pela família, pela vida. Este seria o momento em que, no século XX, lhe seriam receitados anti-depressivos. Mas neste caso a solução não passava nem perto pelas pílulas mágicas. Uma vez feita a pergunta “porquê?”, não há saciedade possível antes de obter a resposta ou, pelo menos, uma resposta satisfatória.
É então que Louis encontra Lestat. Pede-lhe a morte e deseja morrer, mas no momento da verdade falta-lhe a coragem. É então transformado num vampiro, num estado mental de “tanto faz”, essa passividade de quem já não se interessa pela vida. E depois de ser vampiro, continua a não se interessar. A vida nada lhe diz. Sente-se deslocado, perdido entre dois mundos em que não se reconhece. Repugna-lhe o mal e odeia-se por tirar vidas mas continua a não ter coragem de pôr um ponto final à sua existência. Vive contrariado, como vivia antes de ser vampiro. Começa a questionar a sua natureza. Procura respostas em Deus e no Diabo mas não as encontra. Não consegue desligar-se da sua natureza humana que o acusa sempre que tem de matar alguém para se alimentar. Sente que está sob uma maldição, mas que mesmo antes de ser um vampiro a sua vida já estava sob uma maldição.
“Eu nunca pertenci a nenhum sítio, a ninguém, em tempo algum!”, confessa a Armand. A sua solidão é absoluta, mesmo rodeado dos companheiros, porque não é um deles nem nunca o será. Tem a consciência disto e às vezes deseja a completa solidão em vez da incompreensão de que é alvo. Os outros acusam-no de sentir demais e pensar demais. Dizem-lhe que deve deixar a carne guiar a mente em vez de se perder em pensamentos éticos que o fazem sofrer. Mas Louis não consegue ser igual a eles, e essa distância, essa absoluta solidão por não encontrar eco dos seus pensamentos e sentimentos em nenhum deles ainda o faz sofrer mais. Por isso isola-se. Mesmo estando presente em pessoa, está ausente em espírito. O desinteresse pela vida faz dele uma pessoa passiva, um observador, levado pelas decisões dos outros porque a ele tanto faz. A certa altura já não vive sequer. Existe. Simplesmente existe.
Ao conhecer Armand, conheceu a verdade. Que não é nenhum filho do diabo, que ninguém jamais conheceu Deus, que o seu estado de vampiro é tão misterioso como tinha sido o seu estado de ser humano. Descobre que não há respostas. E conforma-se.
Aqui já não vestígios de depressão. Resta apenas a resignação, a melancolia, o ser atormentado pelo simples facto de ter de existir. E continua a desejar o fim. A sua sensibilidade não lhe permite ser feliz - neste caso, porque tem que ser um assassino e odeia-se por isso. Sente demais e pensa demais. Sente-se um condenado. E é um condenado. Tem que aceitar a maldade dos outros vampiros para não ser hipócrita - afinal, ele também mata para saciar a fome - mas jamais se conforma em ser um “maldito”. Deseja a bondade e ama a bondade mas a vida só lhe mostra maldade e obriga-o a praticar a maldade. É por isso um condenado, porque a sua extrema sensibilidade não lhe permite ser feliz no mundo do Mal.
Por esta altura já desistiu da felicidade. Procura apenas uma espécie de paz de espírito.
Mesmo quando Armand se apaixona por ele e Louis se sente tentado a embarcar nessa “paixão”, é ainda em Cláudia que ele pensa, e se a fará sofrer por deixá-la para ficar com Armand. Longe de ser egoísta, Louis continua a pensar demais. Até pensa demais nos outros. Apesar de desgostado pela falta de escrúpulos de Cláudia, não deixa de a amar. Dividido, mesmo no amor não consegue deixar de pensar na dor que pode provocar aos outros e é incapaz de agir sabendo que está a magoar alguém.
Uma pessoa normal, como normais são os vampiros que o rodeiam, dir-lhe-ia que gosta de inventar problemas. Mas Louis sabe que não está a inventar nada. Os problemas estão lá. Os outros é que preferem não os ver.
Depois, um grande choque que o faz sair da sua passividade. Cláudia é violentamente morta. Possivelmente Armand é culpado. Finalmente Louis salta da sua apatia e vinga-se dos assassinos de Cláudia. Pensava que ia morrer de desgosto, mas em vez disso a sua alma fica fria. Entre os vampiros, Louis é considerado um fraco, exactamente por ser sensível e cheio de moral, mas de repente apercebe-se que não morreu do desgosto e que a vida continua. O desgosto é demasiado grande para ser suportado. E o que não nos mata torna-nos mais fortes. Ou não. Completamente gelado, Louis aceita a companhia de Armand e parte com ele pelo mundo fora.
Agora Louis refugia-se na arte, encontrando nela o único consolo para a sua infelicidade. E percorre o mundo pela arte, desinteressado da vida e dos que o rodeiam porque nada lhe dizem. Sozinho, embora na companhia de Armand. Muitas vezes ansiando que Armand simplesmente se vá embora. É o completo desespero.
E nunca mais Armand o teria, especialmente depois de confessar que sim, que foi ele quem ordenou a morte de Cláudia. E é sem emoção que Louis recebe a notícia, décadas mais tarde. E é com perplexidade que Armand percebe que já não existe um pingo de emoção visível na alma de Louis.
A última conversa entre os dois é notavelmente eloquente:
Armand: Não te interessas por nada. Pensei que pelo menos quisesses saber disto. Pensei que sentisses a antiga paixão, a antiga raiva, se o visses de novo [a Lestat]. Pensei que algo se movesse e voltasse à vida se o visses... se voltasses a este local.
Louis: Que eu voltasse à vida?
Armand: Sim! Sim, que voltasses à vida! (...) Eu acreditava que quando tu ultrapassasses isso - quando toda a dor te deixasse, tu te tornarias afectuoso e cheio de amor outra vez, e cheio daquela curiosidade insaciável e selvagem com que vieste ter comigo, aquele pensamento fixo, e aquela fome por conhecimento que te trouxe até Paris e aos meus aposentos. Pensei que era uma parte de ti que não podia morrer. E eu pensei que quando a dor tivesse desaparecido tu me perdoasses pela parte que eu tive na morte dela. Ela nunca te amou, sabes? Não da maneira que eu te amo, e da maneira que nos amaste aos dois. Eu sabia isto! Eu compreendia isto! E acreditei que te ia trazer para mim e manter-te comigo. E o tempo ia abrir-se para nós, e seríamos mestres um do outro. Todas as coisas que te faziam feliz far-me-iam feliz, e eu seria o protector da tua dor. O meu poder seria o teu poder. A minha força, a mesma coisa. Mas tu estás morto por dentro para mim, estás frio e fora do meu alcance! É como se eu não estivesse aqui, ao pé de ti. E não estando aqui contigo, tenho a sensação horrível de que nem sequer existo! E tu és tão frio e distante para mim como esses quadros modernos de linhas e formas duras que eu não posso amar nem compreender, tão estranho como essas esculturas mecânicas desta era que não têm forma humana. Eu estremeço quando estou ao pé de ti. Eu olho para os teus olhos e o meu reflexo não está lá...
Louis: O que pediste era impossível. Eu queria amor e bondade nesta coisa que é a morte na vida. Era impossível desde o princípio, porque não podes ter amor e bondade quando fazes o que sabes que é mau, o que sabes que é errado. Só se pode ter a confusão desesperada e o anseio e perseguir o fantasma da bondade na sua forma humana. Eu sabia as verdadeiras respostas às minhas perguntas ainda antes de chegar a Paris. Soube-o quando tomei pela primeira vez uma vida humana para satisfazer a minha necessidade. Foi a minha morte. E no entanto eu não quis aceitar, não podia aceitar, porque como todas as criaturas eu não desejo morrer! E por isso procurei por outros vampiros, por deus, pelo diabo, por centenas de coisas sob centenas de nomes. E era tudo a mesma coisa, tudo maldade. E tudo errado. Porque ninguém podia de forma nenhuma convencer-me do que eu próprio sabia ser verdade, que eu sou um maldito na minha própria mente e alma. E quando eu cheguei a Paris eu pensei que tu eras poderoso e belo e sem remorsos, e eu queria isso desesperadamente. Mas tu eras um destruidor tal como eu era um destruidor, ainda mais implacável e velhaco que eu. Tu mostraste-me a única coisa que eu podia de facto almejar alcançar, essa profundidade do Mal, esse nível de frieza que eu teria de atingir para pôr fim à minha dor. E eu aceitei isso. E por isso essa paixão, esse amor que viste em mim, extinguiu-se. E agora vês apenas um espelho de ti próprio.
Louis sofria demais por sentir demais. A única maneira de pôr fim à sua dor era revesti-la de gelo. Mas a mesma frieza que o protegia da dor impedia-o também de sentir o amor. Porque o que Louis fez foi simplesmente anular os seus sentimentos. Mas não podia fazer outra coisa. A dor era demasiada. Escolheu continuar a viver e encontrou uma espécie de paz, sem ódio nem paixão. Não o desespero, como pensa o entrevistador - o tal humano que lhe faz a entrevista - porque o desespero é uma palavra demasiado fraca para explicar a ausência de sentimento. Talvez a palavra exacta nem exista. Uma imagem me ocorre: a anestesia. A mesma anestesia que não deixa a pele sentir dor também não a deixa sentir uma carícia. E foi assim que Louis se anestesiou da sua imensa dor.
Louis, o exemplo gótico
Desde a sua vida humana, Louis procurou o sentido da vida perante a inevitabilidade da morte. E depois de se tornar imortal, continuou à procura. Nada mudou. Esperava encontrar as verdades que diminuíssem o seu desespero e solidão. Por isso se vira para os segredos do sobrenatural, para a procura por deus e pelo diabo, por tudo e alguma coisa que lhe possa mostrar um sentido maior para a vida do que simplesmente existir (seja meia dúzia de anos, seja uma eternidade). É um ser atormentado pelo simples facto de viver.
Enquanto os outros estão contentes por simplesmente viver, Louis não foi talhado para a vida. Para esta vida. Louis espera as respostas que não chegam. E angustia-se, incompreendido pelos outros que não partilham da mesma ansiedade.
Louis não é talhado para viver, muito menos para “viver feliz”. Encontra-se frequentemente a contemplar o abismo da morte, fascinado, e por várias vezes quase se atira de cabeça. Como se quisesse encontrar na morte as respostas que a vida não lhe dá. Uma coisa é certa, não encontra prazer neste viver com que os outros se contentam. Podem chamar-lhe fraco e choramingas mas Louis sofre com a falta de sensibilidade dos outros e já não espera ser compreendido. Isso torna-o muitas vezes agressivo porque a paciência também tem limites. Aliás, ele não esconde que também pratica a maldade. E por isso também sente que merece morrer. Cheio de ética, não se perdoa por “condenar” outros à morte quando ele se tornou também um monstro. Ao contrário dos companheiros, sofre quando mata, mas isso, aos seus olhos, não o torna menos maldito. Culpa-se eternamente. Pensa que não merece a existência. Sente demais e pensa demais.
Encontra o único prazer da vida numa procura incessante pela arte, o seu único prazer transcendente, o seu único momento de felicidade.
Podia ter sido sempre humano. Louis jamais seria feliz. A felicidade não faz parte da vida de um gótico e não adianta procurá-la. Porque uns já nascem amaldiçoados, outros não. A verdadeira maldição de Louis é sentir a dor dos outros como se fosse a sua. É por isso que mata com raiva, com raiva por matar.
O que separa Louis do suicídio? Pouco, muito pouco. É uma alma no arame, nada a perder, nada a ganhar, à deriva pelos ventos do tempo. Nada dentro dele desiste de encontrar as respostas. Pensar que desistiu é a mentira que diz a si próprio para não perturbar a sua paz artificial, pois tudo dentro dele arde e apenas um igual pode trazer esse fogo cá para fora.
Louis não nasceu para a vida mas para o além-vida, para a transcendência. Encontrará paz, sim, quando perceber a pessoa especial que ele próprio é e perdoar aos outros que temem e repudiam quem vive a pensar na morte.
Antes disso, haverá apenas ódio e isolamento. E arte. Mas a arte fica. O ódio vai-se. E as respostas estão onde ele não supõe que estejam - dentro dele próprio - porque não se sente digno do privilégio.
Mais solitário que um ser humano por ser um vampiro, Louis finge que não sente a torrente de sentimentos que mais ninguém sente senão ele. O ser atormentado pela Vida desiste do sobrenatural e vira-se para a arte em busca de alegria para os sentidos. Mas basta o sobrenatural estalar os dedos que o velho gótico se põe à escuta, pois nasceu para ouvir o que está para lá da vida e do seu destino não se livra, nem se quer livrar, porque lá no fundo se sabe dono de um destino tão amargo quanto raro mas, por isso mesmo, precioso.
Publicado por _gotika_ em 03:24 AM | Comentários: (3)
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 11, 2004
10 mil visitas!
Obrigada a todos e também pelos vossos 702 comentários (até à data!).
Fazem-me muito feliz (por um bocadinho).
Publicado por _gotika_ em 08:50 PM | Comentários: (3)
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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
"Wuthering Heights" (O Monte dos Vendavais), por Emily Brontë
Culpo o Círculo de Leitores. Quando era miúda éramos sócios do Círculo de Leitores. Todos os meses a senhora do Círculo de Leitores trazia um catálogo novo. Compravam-se dois livros por mês para continuar a receber o catálogo.
Comprei as coisas mais incoerentes, na infância, graças ao Círculo de Leitores. A única coisa que me guiava, na escolha, porque obviamente eu era a dona e senhora da escolha ou não se tratasse de livros!, era mesmo a pequenasinopse (palavra que obviamente eu não conhecia, por isso seja eu honesta e corrija com:) o pequeno resumo de três linhas. O sítio, no catálogo, onde vinham os livros também era importante porque me guiava quanto ao estilo. Não que eu soubesse o que era um estilo, nem que tivesse alguém minimamente capaz, em casa, e se calhar até na escola, para me guiar. Portanto, o que me guiava era o resumo e o sítio onde vinham os livros no catálogo. Depois, mandava vir, lia, achava bom ou não. Mandava vir mais. Confesso que aquilo que procurava, no catálogo, já nessa altura, eram os livros para meter medo. Não tive grande sorte. Era um catálogo familiar. Não me lembro de ver por lá nenhum "Exorcista". Ou se calhar até lá estava, mas no sítio/página para adultos, e não me deixavam mandar vir livros dessa página.
Ainda fui enganada uma vez, quando mandei vir "O Cão dos Baskervilles" porque o resumo dizia "cão fantasma". Toda contente, achei que tinha adquirido um livro de meter medo. Grande desilusão. Ainda hoje não suporto Sherlock Holmes e deve ser por causa desse trauma de infância. (Para quem não sabe, não era um cão fantasma, era um embuste. Eu também fui engrupida, como os Baskervilles.)
Como dizia, culpo o Círculo de Leitores por ter deixado escapar "O Monte dos Vendavais". Estava no sítio dos romances "de amor" (como eu lhes chamava) e o resumo dizia "clássico romântico". Chamem-me cínica, chamem-me alma antiga, chamem-me tudo, mas já nessa altura eu tinha aversão aos romances a que se convencionou chamar "cor-de-rosa". Não que eu soubesse que se chamavam "cor-de-rosa" mas a aversão já rebentava nas minhas entranhas. Ora, foi mesmo nessa página que eu encontrei, diversas vezes, "O Monte dos Vendavais", clássico romântico. E já nessa altura a palavra "romântico" tinha para mim a conotação fétida que acompanha tudo o vem impregnado de mentira. Porque eu sabia que "e viveram felizes para sempre" era mentira. E eu não queria ler mentiras. Eu queria ler livros de meter medo.
O medo não é mentira.
Passaram-se muitos, muitos anos. Aqui, a minha história é invulgar porque a criança cínica tornou-se uma adolescente mais tolerante ao romantismo (dos outros). Nesta indulgência, apreciei a canção "Wuthering Heights" da Kate Bush, sempre convencida, porém, apesar de já esclarecida quanto aos estilos novecentistas, que "Wuthering Heights" era daqueles romances de época, muito sentimentais, muito delicados, escritos por aquelas autoras sonsinhas que prometiam danças nos bailes de sociedade. Tipo "Orgulho e Preconceito". Devo confessar que a confusão com Jane Asten não ajudou a melhorar a minha primeira impressão de "Wuthering Heights". Começando logo pelo título em português: "O Monte dos Vendavais". Criou-se uma ideia, na minha cabeça, de uma fusão de telenovela brasileira com romantismo inglês vitoriano. Em suma, algo de que fugir com todos os pés.
Passaram-se mais uma dezena e tal de anos. Começou-me a incomodar quando ouvi uma canção da cena gótica, dos Diva Destruction, chamada "Heathcliff". Eu conhecia o nome, Heathcliff, da canção da Kate Bush, e mais uma vez os vendavais me perseguiam. Começou-me a incomodar que existissem duas canções tão boas inspiradas num livro que eu julgava tão mau. Por essa altura, a curiosidade desfez o meu orgulho e preconceito e hesitantemente, assim de sobrancelha erguida e tudo, arranjei o livro.
É realmente assustador o que o preconceito pode destruir... e o que o bom gosto pode curar.
Confesso que não sabia muito bem o que ia ler. Prefiro sempre não saber. Mas já começava a desconfiar que Kate Bush e Diva Destruction não podiam estar ambas enganadas. Havia ali qualquer coisa. Bem, o tal Heathcliff (depois de conhecer a figura o nome até deixa de parecer tão foleiro) não é o herói "romântico" que pede danças a meninas nos bailes da sociedade. Heathcliff deve ser, pelo que sei da literatura, um dos primeiros e melhores anti-heróis que já conheci. E por não ser "romântico", Heathcliff é o género de homem por quem as mulheres suspiram. O género de homem sobre quem as mulheres escrevem livros e canções. Ainda hoje, no século XXI. Tiro o chapéu a miss Brontë. Não é para qualquer um. Não é qualquer Romeu, nem sequer o de Shakespeare, que inspira assim a compaixão e atiça o perigo na alma feminina.
A história começa com um forasteiro perdido que por força do mau tempo tem de pernoitar em Wuthering Heights, a casa onde tudo se passou. Durante a noite, uma criança fantasma bate à janela e pede para entrar. O forasteiro fica de cabelos em pé e jura nunca mais voltar.
[Mas o forasteiro não tem de se preocupar. Esta criança fantasma não torna a aparecer e, na verdade, é um elemento gótico que não tem grande justificação quando inserido nesta narrativa. Ela é Cathy, mas Cathy, quando morreu, já não é uma criança. Porque aparece ela, a princípio? Teria a escritora sido tentada a enveredar pelo sobrenatural mas recuado pela mesma razão por que Walpole não publicou "O Castelo de Otranto" senão sob pseudónimo, porque se escrevia ainda segundo o preconceito de que todo o sobrenatural era vergonhoso e qualquer evento anómalo devia posteriormente ser explicado por causas naturais? Como o cão dos Baskervilles, não um cão fantasma mas um embuste?... Por alguma razão, a autora arrependeu-se de seguir por aí, mas também não retirou a improvável Cathy fantasma. Incorrendo, desta forma, e se calhar involuntariamente, noutra originalidade muito à frente do seu tempo: o fantasma-eco que permanece, como uma fita magnética, reproduzindo permanentemente os eventos marcantes onde eles aconteceram. Só miss Brontë poderia responder a esta questão.]
O forasteiro foge, mas fica curioso, como o leitor, porque não é ele outra coisa senão o leitor, e coloca perguntas à velha ama de Cathy e Heathcliff, ela própria a narradora, sobre que acontecimentos teriam produzido tão especial fenómeno. A velha ama conta. Como Cathy e Heathcliff foram criados juntos e inseparáveis. Como Heathcliff a amava. Como Cathy o amava também mas casou com um homem rico para poupar a ambos da pobreza. Como Heathcliff a odiou e desprezou o seu sacrifício e regressou ele próprio um homem rico e cheio de rancor. Como Cathy morreu de parto. Como Heathcliff odiou ainda mais toda aquela família rica que lhe roubou Cathy e que na infância lhe chamara "cigano" por ser pobre e escuro. Como usou o seu próprio filho, um deles, para os arruinar. Como através do ódio se arruinou a si próprio. Como alcançou finalmente o que ambicionava, um lugar ao lado de Cathy... E como o planeou e o obteve.
Cabe ao forasteiro, ao leitor, julgar em Heathcliff a vilania ou o mérito. Aqui não há lições de moral, nem bom senso e sensibilidade.
Esta é uma obra Romântica, antes de o romântico se ter tornado cor-de-rosa, de quando o Romântico era negro, de quando a paixão era rubra. Merecia uma página toda preta no catálogo. Ninguém viveu feliz, muito menos para sempre.
Comprei as coisas mais incoerentes, na infância, graças ao Círculo de Leitores. A única coisa que me guiava, na escolha, porque obviamente eu era a dona e senhora da escolha ou não se tratasse de livros!, era mesmo a pequena
Ainda fui enganada uma vez, quando mandei vir "O Cão dos Baskervilles" porque o resumo dizia "cão fantasma". Toda contente, achei que tinha adquirido um livro de meter medo. Grande desilusão. Ainda hoje não suporto Sherlock Holmes e deve ser por causa desse trauma de infância. (Para quem não sabe, não era um cão fantasma, era um embuste. Eu também fui engrupida, como os Baskervilles.)
Como dizia, culpo o Círculo de Leitores por ter deixado escapar "O Monte dos Vendavais". Estava no sítio dos romances "de amor" (como eu lhes chamava) e o resumo dizia "clássico romântico". Chamem-me cínica, chamem-me alma antiga, chamem-me tudo, mas já nessa altura eu tinha aversão aos romances a que se convencionou chamar "cor-de-rosa". Não que eu soubesse que se chamavam "cor-de-rosa" mas a aversão já rebentava nas minhas entranhas. Ora, foi mesmo nessa página que eu encontrei, diversas vezes, "O Monte dos Vendavais", clássico romântico. E já nessa altura a palavra "romântico" tinha para mim a conotação fétida que acompanha tudo o vem impregnado de mentira. Porque eu sabia que "e viveram felizes para sempre" era mentira. E eu não queria ler mentiras. Eu queria ler livros de meter medo.
O medo não é mentira.
Passaram-se muitos, muitos anos. Aqui, a minha história é invulgar porque a criança cínica tornou-se uma adolescente mais tolerante ao romantismo (dos outros). Nesta indulgência, apreciei a canção "Wuthering Heights" da Kate Bush, sempre convencida, porém, apesar de já esclarecida quanto aos estilos novecentistas, que "Wuthering Heights" era daqueles romances de época, muito sentimentais, muito delicados, escritos por aquelas autoras sonsinhas que prometiam danças nos bailes de sociedade. Tipo "Orgulho e Preconceito". Devo confessar que a confusão com Jane Asten não ajudou a melhorar a minha primeira impressão de "Wuthering Heights". Começando logo pelo título em português: "O Monte dos Vendavais". Criou-se uma ideia, na minha cabeça, de uma fusão de telenovela brasileira com romantismo inglês vitoriano. Em suma, algo de que fugir com todos os pés.
Passaram-se mais uma dezena e tal de anos. Começou-me a incomodar quando ouvi uma canção da cena gótica, dos Diva Destruction, chamada "Heathcliff". Eu conhecia o nome, Heathcliff, da canção da Kate Bush, e mais uma vez os vendavais me perseguiam. Começou-me a incomodar que existissem duas canções tão boas inspiradas num livro que eu julgava tão mau. Por essa altura, a curiosidade desfez o meu orgulho e preconceito e hesitantemente, assim de sobrancelha erguida e tudo, arranjei o livro.
É realmente assustador o que o preconceito pode destruir... e o que o bom gosto pode curar.
Confesso que não sabia muito bem o que ia ler. Prefiro sempre não saber. Mas já começava a desconfiar que Kate Bush e Diva Destruction não podiam estar ambas enganadas. Havia ali qualquer coisa. Bem, o tal Heathcliff (depois de conhecer a figura o nome até deixa de parecer tão foleiro) não é o herói "romântico" que pede danças a meninas nos bailes da sociedade. Heathcliff deve ser, pelo que sei da literatura, um dos primeiros e melhores anti-heróis que já conheci. E por não ser "romântico", Heathcliff é o género de homem por quem as mulheres suspiram. O género de homem sobre quem as mulheres escrevem livros e canções. Ainda hoje, no século XXI. Tiro o chapéu a miss Brontë. Não é para qualquer um. Não é qualquer Romeu, nem sequer o de Shakespeare, que inspira assim a compaixão e atiça o perigo na alma feminina.
A história começa com um forasteiro perdido que por força do mau tempo tem de pernoitar em Wuthering Heights, a casa onde tudo se passou. Durante a noite, uma criança fantasma bate à janela e pede para entrar. O forasteiro fica de cabelos em pé e jura nunca mais voltar.
[Mas o forasteiro não tem de se preocupar. Esta criança fantasma não torna a aparecer e, na verdade, é um elemento gótico que não tem grande justificação quando inserido nesta narrativa. Ela é Cathy, mas Cathy, quando morreu, já não é uma criança. Porque aparece ela, a princípio? Teria a escritora sido tentada a enveredar pelo sobrenatural mas recuado pela mesma razão por que Walpole não publicou "O Castelo de Otranto" senão sob pseudónimo, porque se escrevia ainda segundo o preconceito de que todo o sobrenatural era vergonhoso e qualquer evento anómalo devia posteriormente ser explicado por causas naturais? Como o cão dos Baskervilles, não um cão fantasma mas um embuste?... Por alguma razão, a autora arrependeu-se de seguir por aí, mas também não retirou a improvável Cathy fantasma. Incorrendo, desta forma, e se calhar involuntariamente, noutra originalidade muito à frente do seu tempo: o fantasma-eco que permanece, como uma fita magnética, reproduzindo permanentemente os eventos marcantes onde eles aconteceram. Só miss Brontë poderia responder a esta questão.]
O forasteiro foge, mas fica curioso, como o leitor, porque não é ele outra coisa senão o leitor, e coloca perguntas à velha ama de Cathy e Heathcliff, ela própria a narradora, sobre que acontecimentos teriam produzido tão especial fenómeno. A velha ama conta. Como Cathy e Heathcliff foram criados juntos e inseparáveis. Como Heathcliff a amava. Como Cathy o amava também mas casou com um homem rico para poupar a ambos da pobreza. Como Heathcliff a odiou e desprezou o seu sacrifício e regressou ele próprio um homem rico e cheio de rancor. Como Cathy morreu de parto. Como Heathcliff odiou ainda mais toda aquela família rica que lhe roubou Cathy e que na infância lhe chamara "cigano" por ser pobre e escuro. Como usou o seu próprio filho, um deles, para os arruinar. Como através do ódio se arruinou a si próprio. Como alcançou finalmente o que ambicionava, um lugar ao lado de Cathy... E como o planeou e o obteve.
Cabe ao forasteiro, ao leitor, julgar em Heathcliff a vilania ou o mérito. Aqui não há lições de moral, nem bom senso e sensibilidade.
Esta é uma obra Romântica, antes de o romântico se ter tornado cor-de-rosa, de quando o Romântico era negro, de quando a paixão era rubra. Merecia uma página toda preta no catálogo. Ninguém viveu feliz, muito menos para sempre.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 10, 2004
“Entrevista com o vampiro”
Quem estranha a minha ausência tem razões para desconfiar. Pois ando entretida a ler o livro original, em inglês e tudo, tentando em vão separar-me da impressão do filme. O que é impossível.
Mas quem viu o filme pode ficar descansado, até agora tenho notado que o livro foi fielmente representado, passo a passo, sem tirar nem pôr.
Com uma imprecisãozinha grave: Quem morreu a Louis não foi a esposa ao dar à luz. Louis nunca chegou a casar. Quem morreu foi o seu irmão mais novo, devido a um acidente talvez por culpa de Louis. A versão “esposa e filho” é bem mais romântica mas também muito mais banal. O amor por um irmão é assim algo difícil de explicar?...
Uma parte omitida: Depois de tentarem matar Lestat, Louis e Claudia fogem para a Europa mas não vão direitinhos para Paris. Claudia leva Louis para a Transilvânia atrás das lendas de vampiros, à procura das respostas que Lestat não sabia dar, e encontram por lá uma espécie de vampiros zombies não-inteligentes. Acontece uma batalha gore de Louis contra os zombies. Bom material para um filme de mortos vivos série B, mas a verdade é que o livro não explica muito bem (até aqui) a existência destes zombies nem porque é que são diferentes dos protagonistas...
O livro é grande e a memória é curta, por isso posso adiantar que Brad Pitt desempenhou o papel tão bem que não é possível imaginar outro Louis. Já Tom Cruise... *suspiro* Quando é que Tom Cruise fez alguma coisa bem feita? Talvez em “Eyes Wide Shut”, com Nicole Kidman, mas com certeza devido à direcção implacável de Stanley Kubrik - era impossível falhar (“Lolita”, “Dr. Strangelove”, “Laranja Mecânica”, “2001”, “The Shinning”...)! Desde o primeiro momento percebi que aquele não era o actor para a personagem Lestat, e quanto mais leio do universo das “Vampire Chronicles” mais lamentável me parece o seu desempenho.
Outro erro de casting é António Banderas no papel de Armand. Mas alguém acredita na sua vampiricidade?...
É verdade que no primeiro livro, este “Entrevista com o Vampiro”, Lestat é representado por Louis como um monstro ignorante, egoísta, insensível, vaidoso, oportunista, traiçoeiro, sarcástico e cruel. É também verdade que Lestat é um bocadinho de isto tudo. Mas não é apenas isto. Mais tarde, o próprio Louis confessa que tem saudades do “tirano” que estava habituado a odiar e não percebe porquê. Primeira constatação, porque de facto Lestat não é mentiroso nem falso (como Louis pensou a princípio). Parecendo que não, já faz esquecer meia dúzia de defeitos. Segundo, Lestat tem momentos de verdadeira candura em que mostra a sua estranha bondade debaixo da capa de frieza com que parece encarar o mundo.
Comparando depois a sua experiência com Claudia, a muito interessante personagem da criança vampiro que não se lembra de ter sido humana, Louis acaba por confrontar-se com a verdadeira personificação do Mal.
De humano a vampiro, Louis não perde a angústia de questionar a falta de sentido da existência, tão fascinado pela beleza e efemeridade da vida quanto dominado por impulsos suicidas que nem sempre se esforça por combater. Acaba por se entregar passivamente aos acontecimentos, apenas um espectador que hesita em pertencer completamente à vida ou à morte, ao Mal ou ao Bem.
E depois, é assim... Quem não sabe o que é um gótico tem em Louis o exemplo perfeito.
Publicado por _gotika_ em 06:10 AM | Comentários: (5)
Comentários 10.02.04 +/- 4h00
Sobre o Brasil, o que eu disse foi tão somente - e repito por outras palavras para que se perceba bem - que a dificuldade em sair do ciclo de pobreza se deve muito à mentalidade portuguesa que lá ficou. Já passou demasiado tempo para que se ponha a culpa na colonização. Tal como em Portugal, que nunca foi oficialmente colonizado (embora neste preciso momento esteja vendido à Espanha, o que é uma coisa completamente diferente), reina a mentalidade do chico esperto, do pato bravo, do assalto sistemático aos bens do Estado e da empresa do patrão para benefício próprio, da economia paralela, da fuga aos impostos, do benefício de uma clientela que vampiriza e mantém uma elite no poder, enfim, do salve-se quem puder. Em ambos os casos, Portugal e Brasil, o estado de coisas perpetua-se por culpa de um massa popular inculta e ignorante, muitas vezes analfabeta ou iletrada, mantida por largas décadas à custa da ditadura. As semelhanças são demasiado óbvias para serem coincidência.
Compreendo plenamente o Pedro Henrique. No entanto, também não penso que seria diferente se o país tivesse sido colonizado por outras potências europeias. Seria com certeza um país ainda mais violento - veja-se Cuba, veja-se a Argentina, o Chile, o Haiti, a África inteira! A herança portuguesa é também uma herança de passividade, para o melhor e o pior. Mas não deixa de ser uma herança de imobilismo, e isso é o seu pior.
Ao Simplista Complicado: Da maneira como falas, dás a entender que estás muito satisfeito com a situação, que não é preciso mudar. Lamento muito que penses assim. Eu exijo mais, muito mais!
Publicado por _gotika_ em 04:24 AM | Comentários: (5)
“Entrevista com o vampiro”
Quem estranha a minha ausência tem razões para desconfiar. Pois ando entretida a ler o livro original, em inglês e tudo, tentando em vão separar-me da impressão do filme. O que é impossível.
Mas quem viu o filme pode ficar descansado, até agora tenho notado que o livro foi fielmente representado, passo a passo, sem tirar nem pôr.
Com uma imprecisãozinha grave: Quem morreu a Louis não foi a esposa ao dar à luz. Louis nunca chegou a casar. Quem morreu foi o seu irmão mais novo, devido a um acidente talvez por culpa de Louis. A versão “esposa e filho” é bem mais romântica mas também muito mais banal. O amor por um irmão é assim algo difícil de explicar?...
Uma parte omitida: Depois de tentarem matar Lestat, Louis e Claudia fogem para a Europa mas não vão direitinhos para Paris. Claudia leva Louis para a Transilvânia atrás das lendas de vampiros, à procura das respostas que Lestat não sabia dar, e encontram por lá uma espécie de vampiros zombies não-inteligentes. Acontece uma batalha gore de Louis contra os zombies. Bom material para um filme de mortos vivos série B, mas a verdade é que o livro não explica muito bem (até aqui) a existência destes zombies nem porque é que são diferentes dos protagonistas...
O livro é grande e a memória é curta, por isso posso adiantar que Brad Pitt desempenhou o papel tão bem que não é possível imaginar outro Louis. Já Tom Cruise... *suspiro* Quando é que Tom Cruise fez alguma coisa bem feita? Talvez em “Eyes Wide Shut”, com Nicole Kidman, mas com certeza devido à direcção implacável de Stanley Kubrik - era impossível falhar (“Lolita”, “Dr. Strangelove”, “Laranja Mecânica”, “2001”, “The Shinning”...)! Desde o primeiro momento percebi que aquele não era o actor para a personagem Lestat, e quanto mais leio do universo das “Vampire Chronicles” mais lamentável me parece o seu desempenho.
Outro erro de casting é António Banderas no papel de Armand. Mas alguém acredita na sua vampiricidade?...
É verdade que no primeiro livro, este “Entrevista com o Vampiro”, Lestat é representado por Louis como um monstro ignorante, egoísta, insensível, vaidoso, oportunista, traiçoeiro, sarcástico e cruel. É também verdade que Lestat é um bocadinho de isto tudo. Mas não é apenas isto. Mais tarde, o próprio Louis confessa que tem saudades do “tirano” que estava habituado a odiar e não percebe porquê. Primeira constatação, porque de facto Lestat não é mentiroso nem falso (como Louis pensou a princípio). Parecendo que não, já faz esquecer meia dúzia de defeitos. Segundo, Lestat tem momentos de verdadeira candura em que mostra a sua estranha bondade debaixo da capa de frieza com que parece encarar o mundo.
Comparando depois a sua experiência com Claudia, a muito interessante personagem da criança vampiro que não se lembra de ter sido humana, Louis acaba por confrontar-se com a verdadeira personificação do Mal.
De humano a vampiro, Louis não perde a angústia de questionar a falta de sentido da existência, tão fascinado pela beleza e efemeridade da vida quanto dominado por impulsos suicidas que nem sempre se esforça por combater. Acaba por se entregar passivamente aos acontecimentos, apenas um espectador que hesita em pertencer completamente à vida ou à morte, ao Mal ou ao Bem.
E depois, é assim... Quem não sabe o que é um gótico tem em Louis o exemplo perfeito.
Publicado por _gotika_ em 06:10 AM | Comentários: (5)
Comentários 10.02.04 +/- 4h00
Sobre o Brasil, o que eu disse foi tão somente - e repito por outras palavras para que se perceba bem - que a dificuldade em sair do ciclo de pobreza se deve muito à mentalidade portuguesa que lá ficou. Já passou demasiado tempo para que se ponha a culpa na colonização. Tal como em Portugal, que nunca foi oficialmente colonizado (embora neste preciso momento esteja vendido à Espanha, o que é uma coisa completamente diferente), reina a mentalidade do chico esperto, do pato bravo, do assalto sistemático aos bens do Estado e da empresa do patrão para benefício próprio, da economia paralela, da fuga aos impostos, do benefício de uma clientela que vampiriza e mantém uma elite no poder, enfim, do salve-se quem puder. Em ambos os casos, Portugal e Brasil, o estado de coisas perpetua-se por culpa de um massa popular inculta e ignorante, muitas vezes analfabeta ou iletrada, mantida por largas décadas à custa da ditadura. As semelhanças são demasiado óbvias para serem coincidência.
Compreendo plenamente o Pedro Henrique. No entanto, também não penso que seria diferente se o país tivesse sido colonizado por outras potências europeias. Seria com certeza um país ainda mais violento - veja-se Cuba, veja-se a Argentina, o Chile, o Haiti, a África inteira! A herança portuguesa é também uma herança de passividade, para o melhor e o pior. Mas não deixa de ser uma herança de imobilismo, e isso é o seu pior.
Ao Simplista Complicado: Da maneira como falas, dás a entender que estás muito satisfeito com a situação, que não é preciso mudar. Lamento muito que penses assim. Eu exijo mais, muito mais!
Publicado por _gotika_ em 04:24 AM | Comentários: (5)
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
março 08, 2004
Drácula ainda tem descendentes vivos!
E os parentes de Vlad Drakul não gostam nada que enxovalhem o nome da família...
Publicado por _gotika_ em 02:12 PM | Comentários: (6)
Comentários 08.02.04 +/- 14h00
Grande comentário, Alya!
Vou apenas acrescentar que está tudo dito e não me apetece responder mais a pessoas que não sabem o que dizem e nem pensam no que estão a dizer.
As minhas primas estão lá fora mas para exercerem a licenciatura lá fora tiveram de fazer uma parte do curso lá fora também, porque os nossos cursos não têm credibilidade nenhuma fora deste Ensino do terceiro mundo.
Eu não quero ir para fora. Gosto do clima e da natureza. É a única coisa que Portugal tem boa. Também me enerva aquela mentalidade muito portuguesa que é "se for para servir às mesas, vou servir às mesas para o estrangeiro". Eu posso muito bem servir às mesas AQUI. Não vou para fora com o intuito de ganhar dinheiro. Se não posso trabalhar naquilo que estudei, é-me indiferente o que faço... mas gosto do clima. Salve-se o clima!
Goldmundo, continuas no tempo das caravelas?... Não passou já tanta água debaixo dessa ponte?
O que me parece é que já se podia ter aprendido e aplicado os modelos estrangeiros de sucesso mas há falta de coragem política para mexer nos interesses estabelecidos. O que falta ao povo português é viajar, ver os exemplos lá fora. Onde os carros de facto param antes ainda de o peão chegar à passadeira. Onde há cinzeiros ao longo dos passeios para as pessoas não atirarem beatas para o chão. Onde se recicla o lixo. Coisas de um português ficar parvo. E isto apenas na vizinha Espanha que não é o país mais desenvolvido da Europa.
Por fim, o desemprego não afecta só os licenciados mas também as pessoas mais velhas que, em desespero, têm respondido a anúncios para ir trabalhar para o Reino Unido aliciados por 200 contos por mês, o que lá é um ordenado de miséria, e se vêem privados de assistência médica e direitos, ainda por cima sem saberem falar a língua. Casos dramáticos de todo o tipo.
Também já estou farta de que as pessoas pensem que os desempregados estão nessa situação porque são estúpidos. Pensam assim dois tipos de pessoas: os que ainda não sentiram na pele o desemprego (mas da maneira que isto vai ninguém está livre) e os mais velhos que não imaginam o que é trabalhar a recibos verdes porque no seu tempo se trabalhava numa empresa a vida inteira, da infância até à morte. Muitos recebem com choque a notícia do desemprego como se um dogma existencial tivesse desabado diante dos seus olhos. Nem se deram conta do que lhes ia acontecer!
Sim, é dramático que o país não tenha nada para oferecer excepto biscates e salários de miséria. É dramático que estejamos cada vez mais perto do Brasil: a classe média a afunilar-se, meia dúzia de ricos muito ricos e uma maioria cada vez maior de pobres (a maior parte pobres envergonhados, à "portuguesa").
E por falar no Brasil, onde reina a corrupção, o desrespeito pelos direitos humanos e a quase impossibilidade de encaminhar o país no caminho do desenvolvimento, culpo por esse estado de coisas nada mais nada menos do que a mentalidade portuguesa, eivada dos mesmos males, que deixou por lá a sua herança de cunhas.
Publicado por _gotika_ em 02:09 PM | Comentários: (19)
Comentários 08.02.04 +/- 00h00
E?...
Em Portugal ainda há fome e havia camponeses descalços há bem menos de 50 anos.
Este sim, é um bom comentário.
É interessante. Admites portanto que o Ensino é facilitista. Admites portanto que as pessoas chegam ao Ensino Superior sem saber fazer contas (e sem saber Português, acrescento eu). Admites que a formação é má e massificada.
Ainda bem. Porque isto até me ajuda a justificar o próximo comentário:
Primeiro, o que mais me irrita no teu comentário: "ala para os outros países". Porquê? Eu gosto do clima aqui. Por acaso até nasci aqui. Estás então a admitir que neste país não há futuro...? Que a única solução é fugir...?
"Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar." E será que a comunidade quer realmente receber alguma coisa ou quer, como tu muito bem insinuas, mandar a massa cinzenta para outras paragens?
"O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas." Então deixa-me elucidar-te que os estudos facultados pelo Estado são de tal má qualidade que não servem para nada lá fora. Pelo menos na maioria dos cursos da área das Humanidades. Na área das ciências já não se passa o mesmo, talvez porque a Ciência é universal, mas a nível de experimentação e investigação o Ensino em Portugal continua a ser risível.
Quanto às (poucas) oportunidades que existem para sair do país - isto partindo do princípio que as pessoas são obrigadas a sair, o que já por si é dramático! - são muitas vezes insuficientes porque a verba oferecida NÃO CHEGA para sobreviver lá fora e nem toda a gente tem condições para, de facto, sair. Porque se for para lá trabalhar e estudar acaba por perder a bolsa e por perder os estudos. Não passa de um imigrante como os outros, não um estudante. E há aqui uma diferença abismal. Os já licenciados, devido à má qualidade da formação que aqui recebem, não têm a mínima possibilidade de competir com os licenciados europeus. Essa então é a maior mentira de todas. Não por falta de massa cinzenta mas por falta de conhecimentos que não lhes foram transmitidos onde deviam ter sido.
Quanto às bolsas e oportunidades verdadeiramente boas, acredites ou não - e da maneira que falas não me pareces muito dentro da realidade - são aproveitadas pelos filhos dos tais boys. De tal modo que não são divulgadas pelo povinho e, quando divulgadas, já estão preenchidas.
Eu sei que é difícil pra algumas pessoas acreditar no lamaçal em que se tornou este país, mas fingir que não estamos no lamaçal só ajuda a perpetuar a lama.
Por isso, antes de abrirem a boca vejam lá se sabem o suficiente daquilo que dizem. Se fosse assim tão fácil as pessoas não estavam na situação em que estão. Não podem ser tantos tão estúpidos.
Mas parece que algumas pessoas estão tão enterradas na lama que já não a vêem ou acham que a lama é normal. Não é.
Publicado por _gotika_ em 12:15 AM | Comentários: (3)
Comentário:
É curioso como esta discussão parece tão actual agora, mas como tanta gente a achava descabida na altura. Tão descabida que eu acabei por me fartar de dizer a mesma coisa. Mas não me calei sem dar luta.
Drácula ainda tem descendentes vivos!
E os parentes de Vlad Drakul não gostam nada que enxovalhem o nome da família...
Publicado por _gotika_ em 02:12 PM | Comentários: (6)
Comentários 08.02.04 +/- 14h00
Apenas um acrescento pessoal ao que a Gotika já comentou. Se nós nascemos neste país, é neste país que, em princípio, temos de construir a nossa vida e dar por ele o nosso esforço. Se não isto é o quê? Uma maternidade? Ou apenas para vir passar férias? Assim preferia ter nascido noutro país para não me dar ao trabalho de ter de mudar de lugar. É espectacular a facilidade com que se vai para o estrangeiro estudar e trabalhar, com bolsas que dão para cobrir as despesas básicas...(leia-se a ironia nesta frase). Será que é um sinal de estupidez querer trabalhar no nosso país e querer que ele seja melhor, que evolua como os outros países vizinhos (já só penso naqueles que estavam em situação semelhante à nossa quando começaram a vir os subsídios comunitários)? Que este seja um país de crescimento social, cultural, económico, científico? Porque é disso que se tem estado a falar. Se a solução é ir embora, então estamos muito bem... O ensino superior em ciências não nos prepara assim tão bem para a vida activa laboral fora da universidade e do meio académico. Ok, a licenciatura serva para fornecer "ferramentas" em determinada área. E quando as "ferramentas" são insuficientes e vêm enferrujadas, para não falar de ausentes, em alguns casos? Ok, nós tratamos de as complementar e desenferrujar, tudo bem. Eu fiz isso. Pós-graduações, mestrados, cursos de formação, 5 anos de trabalho, tudo. E agora? Já depois de bater às portas todas, o que é que resta? Ir para o estrangeiro, ou tentar lutar por alguma coisa cá dentro deste país? Não teremos direito a manifestarmos o estado de coisas ou será sempre interpretado como "lamechice"? Seremos todos estúpidos? É que eu tenho uma família a meu cargo, com todas as implicações que daí advêm. Enviado por Alya em março 8, 2004 09:27 AM
Grande comentário, Alya!
Vou apenas acrescentar que está tudo dito e não me apetece responder mais a pessoas que não sabem o que dizem e nem pensam no que estão a dizer.
As minhas primas estão lá fora mas para exercerem a licenciatura lá fora tiveram de fazer uma parte do curso lá fora também, porque os nossos cursos não têm credibilidade nenhuma fora deste Ensino do terceiro mundo.
Eu não quero ir para fora. Gosto do clima e da natureza. É a única coisa que Portugal tem boa. Também me enerva aquela mentalidade muito portuguesa que é "se for para servir às mesas, vou servir às mesas para o estrangeiro". Eu posso muito bem servir às mesas AQUI. Não vou para fora com o intuito de ganhar dinheiro. Se não posso trabalhar naquilo que estudei, é-me indiferente o que faço... mas gosto do clima. Salve-se o clima!
Certamente o ensino é mau e facilitista. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, e por isso falei da Suécia. A razão profunda é a mesma que fez, há séculos, todas as riquezas da Índia demorarem em Lisboa o tempo de transbordo para as naus holandesas e os cofres italianos. Fomos, sem saber, os primeiros empregados de mesa do mundo. É que aqui estás a falar do capitalismo, e o capitalismo é feito de uma percepção do mundo que não soubemos nunca fazer nossa. Um mundo de cálculo e de método. De cumprimento de regras exteriores e de interiorização de regras de eficácia. Um mundo que germinou nas terras frias protestantes e se alimentou da severidade das Bíblias encadernadas a negro. Um mundo de cidades e de quotidiano (um mundo, já agora, que se fez também à custa de lugares escuros e almas caladas, e não foi por acaso que o gótico vitoriano não nasceu nas terras do vinho e do sol...). Foi-nos valendo o Brasil, a África, a França. Foi-nos enganando a ideia de que se "eles", os que mandam, quisessem, o mundo seria perfeito. E agora estamos encurralados no meio da grande revolução do mundo. De facto não fizemos o trabalho de casa. De facto a juventude foi enganada, e nem sequer sabemos bem o que é que correu mal. Resta-nos a mansidão dos mortos ou o combate total que é apanágio dos vivos. Não resta mais nada. Enviado por Goldmundo em março 8, 2004 12:05 PM
Goldmundo, continuas no tempo das caravelas?... Não passou já tanta água debaixo dessa ponte?
O que me parece é que já se podia ter aprendido e aplicado os modelos estrangeiros de sucesso mas há falta de coragem política para mexer nos interesses estabelecidos. O que falta ao povo português é viajar, ver os exemplos lá fora. Onde os carros de facto param antes ainda de o peão chegar à passadeira. Onde há cinzeiros ao longo dos passeios para as pessoas não atirarem beatas para o chão. Onde se recicla o lixo. Coisas de um português ficar parvo. E isto apenas na vizinha Espanha que não é o país mais desenvolvido da Europa.
Por fim, o desemprego não afecta só os licenciados mas também as pessoas mais velhas que, em desespero, têm respondido a anúncios para ir trabalhar para o Reino Unido aliciados por 200 contos por mês, o que lá é um ordenado de miséria, e se vêem privados de assistência médica e direitos, ainda por cima sem saberem falar a língua. Casos dramáticos de todo o tipo.
Também já estou farta de que as pessoas pensem que os desempregados estão nessa situação porque são estúpidos. Pensam assim dois tipos de pessoas: os que ainda não sentiram na pele o desemprego (mas da maneira que isto vai ninguém está livre) e os mais velhos que não imaginam o que é trabalhar a recibos verdes porque no seu tempo se trabalhava numa empresa a vida inteira, da infância até à morte. Muitos recebem com choque a notícia do desemprego como se um dogma existencial tivesse desabado diante dos seus olhos. Nem se deram conta do que lhes ia acontecer!
Sim, é dramático que o país não tenha nada para oferecer excepto biscates e salários de miséria. É dramático que estejamos cada vez mais perto do Brasil: a classe média a afunilar-se, meia dúzia de ricos muito ricos e uma maioria cada vez maior de pobres (a maior parte pobres envergonhados, à "portuguesa").
E por falar no Brasil, onde reina a corrupção, o desrespeito pelos direitos humanos e a quase impossibilidade de encaminhar o país no caminho do desenvolvimento, culpo por esse estado de coisas nada mais nada menos do que a mentalidade portuguesa, eivada dos mesmos males, que deixou por lá a sua herança de cunhas.
Publicado por _gotika_ em 02:09 PM | Comentários: (19)
Comentários 08.02.04 +/- 00h00
Na Suécia, onde o clima nem sequer permitia que houvesse "empregados de mesa", havia fome e camponeses descalços há pouco mais de cem anos.
E?...
Em Portugal ainda há fome e havia camponeses descalços há bem menos de 50 anos.
Nestas terras de sol ignoramos os direitos e julgamos compensar-nos incumprindo os deveres.
Este sim, é um bom comentário.
Eu já dei aulas a futuros licenciados sem emprego. Era deprimente. Não havia sequer luta de classes e professores exploradores. Viviam todos em paz, na absoluta ignorância do que era suposto acontecer ali. Uma estudante disse-me uma vez que eu era diferente dos outros professores, "assim para o intelectual". Isto porque eu gostava de ler, e muitas vezes trazia um livro para o bar, em vez da "Bola". Mas lembro-me também, num exame de fim de curso, de um miúdo desesperado. Precisava muito de passar e tinha-se esquecido da calculadora. Sem ela, como saber quanto era "dez por cento de cem"? Ah sim, e os jipes... Enviado por Goldmundo em março 7, 2004 03:38 PM
É interessante. Admites portanto que o Ensino é facilitista. Admites portanto que as pessoas chegam ao Ensino Superior sem saber fazer contas (e sem saber Português, acrescento eu). Admites que a formação é má e massificada.
Ainda bem. Porque isto até me ajuda a justificar o próximo comentário:
Ó Gotika, isto tudo é muito bonito e eu respeito o sentimento de desilusão das pessoas face ao desemprego em que vivem. Mas bolas, leiam a declaração de Bolonha sobre a criação de um espaço europeu no sector de ensino. A questão já não é aproveitar a massa cinzenta de um país. A questão é europeia. Se falam nos exemplos dos outros países, pois bem, peçam a homologação dos diplomas, desenferrujem o inglês já que têm tanta massa cinzenta e... ala para os outros países. Mas que lamechice. Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar. O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas. O que é que a malta quer? um cargo de professor de biologia, química ou português num liceu de província dado pelo Estado para o resto da vida? Mas o Estado não dá isso a ninguém (excepto aos boys q são muitos e maus...) Enviado por em março 7, 2004 10:18 PM
Primeiro, o que mais me irrita no teu comentário: "ala para os outros países". Porquê? Eu gosto do clima aqui. Por acaso até nasci aqui. Estás então a admitir que neste país não há futuro...? Que a única solução é fugir...?
"Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar." E será que a comunidade quer realmente receber alguma coisa ou quer, como tu muito bem insinuas, mandar a massa cinzenta para outras paragens?
"O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas." Então deixa-me elucidar-te que os estudos facultados pelo Estado são de tal má qualidade que não servem para nada lá fora. Pelo menos na maioria dos cursos da área das Humanidades. Na área das ciências já não se passa o mesmo, talvez porque a Ciência é universal, mas a nível de experimentação e investigação o Ensino em Portugal continua a ser risível.
Quanto às (poucas) oportunidades que existem para sair do país - isto partindo do princípio que as pessoas são obrigadas a sair, o que já por si é dramático! - são muitas vezes insuficientes porque a verba oferecida NÃO CHEGA para sobreviver lá fora e nem toda a gente tem condições para, de facto, sair. Porque se for para lá trabalhar e estudar acaba por perder a bolsa e por perder os estudos. Não passa de um imigrante como os outros, não um estudante. E há aqui uma diferença abismal. Os já licenciados, devido à má qualidade da formação que aqui recebem, não têm a mínima possibilidade de competir com os licenciados europeus. Essa então é a maior mentira de todas. Não por falta de massa cinzenta mas por falta de conhecimentos que não lhes foram transmitidos onde deviam ter sido.
Quanto às bolsas e oportunidades verdadeiramente boas, acredites ou não - e da maneira que falas não me pareces muito dentro da realidade - são aproveitadas pelos filhos dos tais boys. De tal modo que não são divulgadas pelo povinho e, quando divulgadas, já estão preenchidas.
Eu sei que é difícil pra algumas pessoas acreditar no lamaçal em que se tornou este país, mas fingir que não estamos no lamaçal só ajuda a perpetuar a lama.
Por isso, antes de abrirem a boca vejam lá se sabem o suficiente daquilo que dizem. Se fosse assim tão fácil as pessoas não estavam na situação em que estão. Não podem ser tantos tão estúpidos.
Mas parece que algumas pessoas estão tão enterradas na lama que já não a vêem ou acham que a lama é normal. Não é.
Publicado por _gotika_ em 12:15 AM | Comentários: (3)
~~§~~
Comentário:
É curioso como esta discussão parece tão actual agora, mas como tanta gente a achava descabida na altura. Tão descabida que eu acabei por me fartar de dizer a mesma coisa. Mas não me calei sem dar luta.
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