Tinha 3 anos em 1974 e entrei na Universidade em 1990 e, mesmo assim, fizeste-me sentir culpado... Sabes, gostava de ter mais alunos/as como tu, mas, em vez disso, apanho com a massa amorfa que essa geração que tanto criticas educou.
As gerações mais novas não me parecem uma massa amorfa. Ao contrário da visão negativa que os filhos dourados do 25 de Abril têm da "concorrência" mais nova (até nos chamam Calimeros), vou ter de repetir o chavão feliz de que não é uma "geração rasca" mas tão só uma "geração à rasca".
Ainda há pouco tempo ouvi o Eduardo Catroga (ministro das Finanças do governo de Cavaco Silva) num excelente programa de economia que dá às quintas-feiras na RTP2 pronunciar uma grande verdade, tão grande quanto terrível: é a primeira vez em muitas décadas que a geração mais nova não vai ter hipótese de viver melhor do que a geração anterior.
Nunca gostei muito do homem, até porque também se prestou ao seu papel na quadrilha, mas quando os programas têm fraca audiência até os hipócritas se descaem com as verdades.
É um facto. A geração depois da minha, entre os 18 e os 30 anos, já homenzinhos e mulherzinhas, sabem muito bem o que os espera. Já não acreditam em lirismos e em lutas. É fácil para os filhos dourados de Abril os culparem por não lutarem pelos seus direitos, mas a verdade é que se esgotaram as formas democráticas de lutar. Encaremos os factos. Os empregos são escassos e mais escassos ficarão à medida que a economia atrofia. Os sindicatos não têm poder nem já lhes interessa mobilizar os trabalhadores (até vieram propor, com toda a lata, que todos os contribuintes sem excepção os financiem). Os grupos económicos detêm todo o poder. Esta geração já não tem emprego. Vai tendo trabalho, precário, rotativo, até não remunerado. Por enquanto, quem financia isto são os mesmos filhos dourados de Abril que vão pagando as contas aos meninos (desde a universidade, ao carro, à casa) dos seus próprios salários. Ou seja, não estão a preparar uma nova geração, estão a adiar o caos. Quando forem finalmente postos na rua ou reformados com uma pensão miserável, perceberão no bolso a sociedade que sustentaram. Uma sociedade de mal pagos que não ganha para os sustentar na velhice. Tudo se paga e a factura não tarda.
Lutar nos tribunais? Pode um precário ir para um tribunal processar uma empresa que utilizou o seu trabalho durante seis meses ou um ano (ou mais, como eu conheço casos) sem lhe pagar um tostão, e no fim não o admitiu (e isto acontece no próprio Estado)? Anedótico. Primeiro, porque foi o jovem que se sujeitou a tal estágio, aliciado com promessas de talvez ficar, de ganhar currículo, de melhorar as possibilidades de emprego no futuro. Segundo, porque a justiça está estrangulada.
Que outras formas de lutar? A desilusão para com a política é generalizada. O pensamento reinante é "são todos iguais". E, se virmos bem, até são mesmo. Em vez de votar à esquerda e à direita e mudar as moscas, até já não votam. Diga-se de passagem, as moscas não mudam. Ainda no outro dia li um testemunho de um jovem de uma juventude partidária que confessava que as "jotas" só querem os voluntários para colar cartazes e fazer barulho. Depois da eleição, os cargos propriamente ditos vão para os filhos dos que já lá estão.
É assim. Parece ser o nosso triste fado. De Valentim Loureiro a João Loureiro. De Mário Soares a João Soares. Do avô de Manuela Ferreira Leite a Manuela Ferreira Leite.
As gerações mais novas não são estúpidas, ao contrário do que se pensa. Estúpido é quem pensa que são.
Amorfas, apáticas? E como não? Qualquer criatura jovem com dois dedos de testa sabe que a única saída é emigrar. E emigram mesmo. Haja saúde de ferro e um bocadinho de ajuda lá fora (família emigrada desde os anos 60 que nunca pensou voltar à tradição das "cartas de chamada"), e lá partem eles para a França, o Luxemburgo, a Suíça, o Reino Unido, e até a Espanha. Aliás, a emigração em Espanha é maior do que se pensa porque há muita gente a trabalhar lá e a vir passar o fim de semana a casa. Não deixa de ser um fenómeno sociológico curioso. Haverá já sociólogos, daqueles com lugar cativo nas cátedras das faculdades, a investigar o tema? Duvido muito. As universidades dependem do governo e o governo não vai disponibilizar dinheiro para fazer má figura.
Viram-se, sim, os emigrantes, na Suíça, a apoiar a selecção de futebol. Só não viu quem não quis. Aí está a juventude que não é amorfa, que teve oportunidade de se pôr a andar, sabe-se lá com quanto sacrifício e sonhos desfeitos. Aqueles não são os filhos dos emigrantes. Aqueles são os novos emigrantes. Aqueles não são a segunda geração. Aqueles são a nova primeira geração. De avô a neto, saltou os pais e retorna aos filhos.
Quem fica, porque não pode partir devido à idade, ou pobreza extrema, ou saúde, ou família, só pode ser amorfo. Por alguma razão os portugueses se encharcam de anti-depressivos.
Mas estou a chover no molhado. Vou antes dar um bom exemplo. Na cena gótica eu já sou uma velha cota e lido de perto com as gerações mais novas. Sem apoios, nem subsídios, nem calimerices, vão organizando as suas festas a uma dimensão que já tem fama a nível europeu, se não internacional. Como? Organizando-se para o o objectivo comum. Actuando numa área em que ninguém lhes pode cortar as pernas nem há lugares cativos. Aprendendo com o estrangeiro. Querem, podem, e fazem. Simples quanto isso. Do pequeno se faz grande.
A geração que é amorfa aqui depressa se torna notável lá fora. Curioso, não? E parece que o fado se repete geração após geração. Excepto, claro está, para os filhos dourados de Abril a quem deram uma cadeira. Essa cadeira é podre. Não se sentem nela. Acima de tudo, não se acomodem muito. Não tarda que ela se esfrangalhe e ainda partem o cóccix.
Voltando ao comentário do Fernando, não posso deixar passar um tema que lhe é caro (e a mim) e que é a Educação. Não, a culpa da bandalheira não pode ser atribuída aos filhos dourados de Abril. Esses já apanharam as coisas assim quando lá chegaram (os que chegaram). Neste país de curta memória aponta-se a União Europeia como motivo para os sucessivos governos terem baixado o nível a um ponto que se sai da escola sem se saber ler nem escrever. Errado. Erradíssimo. A bandalheira começou muito antes.
Depois do 25 de Abril, por reacção exagerada ao regime anterior, riscou-se da educação qualquer vestígio de rigor. Na década de 70, a anos luz da CEE, adoptou-se a ideia revolucionária de que não eram os alunos que eram burros, os professores é que eram maus. De modo que não podia haver maus alunos. Todos tinham que passar.
Estava eu na primeira classe, em 1978, puseram um atrasado mental na turma. Experiência primeira de muitas de um eduquês que actualmente mostra os frutos da sua aberrância. Este atrasado mental, com traços acentuados de mongolóidismo, mal sabia falar. Pensou-se então em juntá-lo aos normais para ver se evoluía (também fizeram uma experiência assim com uma criança e um chimpanzé). Resultado, não sabia desenhar um "A", nem sabia o que era um "A", mas passava as manhãs aos gritos, a agredir os colegas das carteiras mais próximas, riscando-lhes os papéis, atirando as coisas ao chão. Era de facto um aluno com necessidades especiais. Necessitava de um colete de forças e de um Valium. Nesse tempo ainda servia a régua de madeira da professora que tinha o dom terapêutico de o acalmar enquanto a mão doía. Depois esquecia-se e voltava ao mesmo. Actualmente parece que já não é assim. Já não se tenta sequer pô-los a desenhar o "A". Dá-se-lhes logo a escolaridade obrigatória. Pois não, meus amigos, isto não tem nada a ver com fazer boa figura perante a CEE mas com certas ideias deturpadas de vítimas de um regime demasiado rígido que quiseram à força garantir que todos os alunos eram iguais.
Os filhos dourados de Abril não passaram por isto. Nem sabem o que é isto.
Outro exemplo. Na segunda classe, eu já tinha conhecimentos suficientes e maturidade intelectual para passar directamente para a terceira, aliás, como se fez durante anos e se faz em sociedades em que a Educação é levada a sério. No meu ano, já não deixaram. "É preciso deixar as crianças brincar", era o lema. Como se eu estivesse interessada em brincar. E disse-lhes, mas já não deixaram. Portanto, meus amigos, o eduquês não começou agora. E o cancro na Justiça apareceu brioso logo assim que se fez uma revolução anti-fascista e não se julgou ninguém. Esses erros, porque pagamos gravemente hoje, não são culpa dos filhos mas dos pais de Abril.
A culpa dos filhos é não conseguirem compreender as dificuldades porque passaram as gerações anteriores e porque passam as mais novas.
A mim, que não sou amorfa, mas estou de tal modo de pernas e mãos atadas para fazer mais do que isto que o pareço, resta-me usar todos os meios ao meu alcance para ensinar às gerações mais novas o que precisam de aprender e não lhes ensinam em casa nem na escola nem na igreja: a fraternidade.
(Diga-se o que se disser, foi a igreja que durante séculos cumpriu esse papel, certamente mais mal do que bem, mas actualmente esse lugar ficou vago, à mercê de outras seitas e novas religiões ainda mais predatórias.)
O que é a fraternidade, perguntam os mais novos? A fraternidade é eu preocupar-me com o vosso futuro. A fraternidade é eu preocupar-me com o vosso futuro mesmo que eu já não tenha futuro.
Não, Fernando, não me parece que tenhas culpas. O sistema já estava montado. Fazes o papel que te permitem tal como eu faço o meu. Não há espaço de manobra para mais e por isso se sufoca. Não estão amorfos, estão amarrados.
De que te queixas, Fernando? De que as gerações mais novas não votam? Para quê? De que não lêem? Até lêem, e cada vez mais, mas só o que lhes interessa. Ler mais para quê? Acaso isso lhes vai garantir um futuro? Não sabem escrever, é certo. E porque haviam de o fazer? Acaso lhes arranja emprego? Mais vale aprenderem logo francês e inglês, para se integrarem melhor nos países de destino. Não sabem matemática? E para que haveriam de saber? Para tirarem um curso científico, fazerem um mestrado lá fora e voltarem para o país a trabalhar numa caixa de supermercado ou como operador de registo de dados? As máquinas do tio Belmiro até dizem qual é o troco.
A Educação tornou-se uma carolice. É irrelevante que português se escreve no telemóvel. Os empregos são para quem tem cunhas, saiba ou não saiba ler.
E depois disto, admiras-te que a massa pareça amorfa? Eu não. Mas sei que não são. O tempo da massa amorfa veio e foi. Actualmente é preciso estar triplamente vivo para sobreviver, coisa que a massa amorfa vai perceber no dia de luto e ranger de dentes.
Gostei muito deste bocadinho.