terça-feira, 19 de novembro de 2024

Great White / Tubarão Branco (2021)

Confesso que cada vez me custa mais fazer críticas a estes filmes de tubarões porque são todos iguais, iguais, iguais. Antes do princípio já sabemos como vai ser o fim. Esta crítica vai incidir nas originalidades que “Great White” ainda assim consegue trazer.
Um casal de guias turísticos passeiam turistas num hidroavião sobre as paisagens paradisíacas da Austrália. Se há algo de positivo a dizer de “Great White” é o grande aproveitamento da paisagem, quase um anúncio de férias em praias de águas verdes, azuis e translúcidas, vegetação luxuriante e areia branca. Até as filmagens subaquáticas estão muito bem feitas e com grande beleza (tirando as cenas sangrentas, isto é).
Os guias turísticos são contratados para conduzirem um casal a uma enseada deserta e remota que parece um postal turístico… até encontrarem um corpo masculino semi-comido e já sem pernas. O dono do hidroavião descobre que o homem não estava sozinho porque este tem fotografias de outra pessoa no telemóvel. (A primeira cena do filme são estes dois a serem atacados por um enorme tubarão branco, mas não falei nisso aqui.) Imediatamente decide ir à procura do barco onde os dois sinistrados deviam estar, mas comete um erro colossal: tem rádio no avião mas nunca comunica a descoberta do corpo à polícia nem as coordenadas para onde se dirige.
Acaba por encontrar um veleiro naufragado e faz uma amaragem. Depois de inspeccionar o interior do barco descobre o segundo cadáver.
É então que salta das águas o enorme tubarão branco e finca uma dentada no trem de amaragem e afunda o hidroavião! A tripulação tem de fugir para um daqueles salva-vidas de emergência de plástico e borracha antes de conseguir pedir ajuda pelo rádio (o que já devia ter feito ao encontrar o cadáver…). À deriva, dependem da maré e de remos improvisados para chegar a terra. Entretanto, vai-lhes acontecendo o que acontece em filmes de tubarões, especialmente porque estão a ser caçados não por um mas por dois tubarões brancos. (Fui pesquisar e a internet diz que é verdade: os tubarões podem caçar em grupo. Sempre deu para aprender alguma coisa que eu não sabia).
Agora vamos às absurdidades (ainda estou para ver um filme de tubarões sem elas).
Vamos admitir que por sorte o tubarão abocanhou o trem de amaragem no sítio certo e que não foi “esperteza”. Mas a certa altura outro tubarão (ou o mesmo) tem a feliz ideia de virar o salva-vidas, fazendo com que todos os sobreviventes vão parar à água. Boa estratégia, mas naquele cérebro tubarónico não lhe ocorreu fazer o mesmo uma e outra vez até os ter todos na água: refeição fácil e rápida. Da mesma forma, não ocorreu ao tubarão genial que afundou o hidroavião que bastaria uma dentada no salva-vidas para os apanhar a todos.
Sinceramente, tive pena dos tubarões por lhes terem passado um atestado de estupidez. Por falar nisso, os sobreviventes também não são muito espertos ou dois deles não teriam desatado aos murros num salva-vidas periclitante perseguido por tubarões. É uma questão de inteligência selectiva que dá jeito ao enredo.
“Great White” não é um grande filme, tresanda a clichés e a todos os erros convenientes, mas se quiserem ver um tubarão a afundar um hidroavião, é aqui.

12 em 20



PS: Muitas espécies de tubarões estão em extinção. Uma das coisas que podemos fazer para travar isto é deixar de comer espécies protegidas, por exemplo, na sopa de barbatana de tubarão. Sim, a sopa é boa, mas o que fazem aos tubarões é horrível. Pescam-nos, cortam-lhes a barbatana e atiram-nos de novo ao mar ainda vivos, sem poderem nadar e sem se poderem defender dos outros predadores que os comem vivos. Vi com os meus olhos num documentário. Fiquei horrorizada. Entre nós o tubarão é chamado cação e entra na caldeirada. Rejeitem. Informem-se. Os tubarões são necessários ao ecossistema marinho como os leões são necessários na savana. Sim, eu sei que os leões são mais fofinhos e é fácil detestar tubarões, mas o princípio é o mesmo.

domingo, 17 de novembro de 2024

The Bell Jar, de Sylvia Plath

Uma personagem de uma série de televisão descreveu este livro como “uma viagem ao abismo”. Confesso que fiquei surpreendida porque não sabia que Sylvia Plath tivesse escrito um romance (sempre a conheci como poetisa) mas o tema interessou-me imediatamente. Com efeito, “The Bell Jar” é o único romance de Sylvia Plath, publicado originalmente sob o pseudónimo Victoria Lucas, em 1963, tendo em conta que é uma obra autobiográfica com personagens ficcionais.
A história passa-se em 1953. Esther Greenwood, uma aluna excepcional de 19 anos consegue um estágio numa revista de moda, junto com algumas colegas. Esther vem de uma família pobre, e sempre se empenhou com afinco para conseguir prémios e bolsas para financiar os estudos, mas subitamente percebe que não sabe que carreira escolher ou mesmo se prefere casar e ter filhos. Esther é daquelas pessoas que fingem sempre que está tudo bem e não desabafam com ninguém, e do seu relato na primeira pessoa nota-se perfeitamente uma baixa auto-estima.
Na verdade, o que Esther quer ser é poetisa e escritora, e depois do estágio inscreve-se num curso de escrita onde não é aceite. Esta foi a gota de água que provocou o que nós chamaríamos hoje um esgotamento nervoso: Esther mete-se na cama embora alegue que não consegue dormir, deixa de comer, deixa de tomar banho. Estes são sintomas de depressão profunda à mistura com a ansiedade perante o futuro que Esther não consegue enfrentar.
A mãe leva-a ao psiquiatra que, logo de rajada, prescreve choques eléctricos. Esther recusa voltar ao médico, mas começa obsessivamente a planear o suicídio que quase consegue executar com comprimidos. Descoberta a tempo, é internada num hospital psiquiátrico (à altura chamado manicómio/hospício) onde é “tratada” com mais choques eléctricos e insulina (!), a par com alguma psicoterapia. Por esta altura penso que o problema de Esther já não é simplesmente depressão, especialmente quando ela começa a pensar que os médicos “estão todos feitos uns com os outros”. Isto parece-me mais esquizofrenia paranóica. Esther sente-se isolada do mundo, como que dentro de uma redoma de vidro (the bell jar) que não a deixa respirar, e mesmo depois de ter alta do hospital receia que a redoma volte a asfixiá-la no futuro.
O que mais me impressionou nisto tudo (talvez da minha experiência pessoal) foi a falta da raiva que Esther nunca chega a expressar. Isto, confesso, chocou-me. Nada como uns pontapés nas mesas e cadeiras para curar a depressão. Mas Esther deixa-se levar passivamente, quando não em lágrimas. “Electrochoques? Está bem.”, “Sou maluquinha? Está bem.”, “Merecia estar num hospício de maior segurança? Está bem.”
É claro que isto é nos anos 50 em que o lugar de uma mulher era muito diferente. A grande conquista de Esther, à altura, é começar a usar contraceptivos para não ficar grávida e dependente de um homem.
“The Bell Jar” tem sido visto ao longo das décadas como um precursor da literatura feminista e, sinceramente, não sei o que dizer quanto a isto. O feminismo nos anos 60, 70, 80, já não tem nada a ver com o feminismo dos nossos dias. Acredito que este livro, na altura da publicação, tenha sido uma pedrada no charco. Esther fala de dificuldades económicas, ambições, sexo, contracepção, depressão, suicídio, e do seu enorme desejo de ser uma mulher independente que faz o que quer.
O estilo de escrita é muito desequilibrado, na minha opinião. Por um lado, como poetisa que é, Plath é capaz de nos deslumbrar com imagens inesperadas, mas o tom geral da narração é a de alguém que está a escrever um post à pressa no Facebook (ou num diário secreto), sem se importar muito com a linguagem. Talvez seja esta informalidade que ainda capture o interesse de geração após geração, apesar do tema sombrio.
Gostaria que o livro me tivesse tocado mais, mas, muito honestamente, para mim só funcionou como documento histórico dos tratamentos brutais a que submetiam os pacientes psiquiátricos.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Safer At Home / #ficaemcasa (2021)


Este filme foi uma grande decepção para mim. Como o nome indica a acção passa-se durante o confinamento do Covid-19, e por alguma razão (talvez a sinopse) eu estava convencida de que ficar em casa, no isolamento e no silêncio das ruas vazias, ia despertar qualquer entidade sobrenatural. (Mas a ler as críticas descobri um filme semelhante que talvez me interesse. A ver vamos.)
“Safer At Home” envereda um bocadinho pela ficção científica/distopia, mas não fiquem já entusiasmados. O filme parte do princípio de que as variantes de Covid iriam ser cada vez mais mortíferas e transmissíveis, o que coloca os nossos personagens em confinamento há mais de dois anos no que já se tornou um estado policial. Mas isto passa de raspão, não interessa senão no fim.
Nem era preciso o Covid para pôr este grupo de amigos numa festa no Zoom, como prova outro filme bem mais interessante, “Unfriended: Dark Web” (“Desprotegido: Dark Web”) de 2018.
O enredo é precisamente esse. Um grupo de amigos reúne-se via Zoom para celebrar o aniversário de um deles. Entretanto alguém arranjou Ecstasy para todos tomarem. A princípio tudo corre lindamente, até a droga começar a actuar. Tudo indica, pelos sintomas, que talvez o comprimido não fosse Ecstasy mas qualquer mistura com anfetamina. Alguns dos amigos sentem-se mal, outros eufóricos, outros agressivos. Um casal de namorados a viver juntos desata a discutir. Durante a discussão, a namorada cai acidentalmente. O namorado julga que ela está morta. Ninguém no Zoom viu que não foi ele quem a empurrou, porque estavam todos distraídos, mas o espectador viu perfeitamente que foi um acidente.
É aqui que o filme se torna estúpido. Nenhuma daquelas alminhas pensa em chamar sequer uma ambulância. Entram todos em pânico, especialmente o namorado. Mais idiota ainda, o namorado decide fugir do apartamento, como se um corpo pudesse ser abandonado assim sem que ninguém desse por nada, no que só posso concluir que foi um efeito da droga. Ao mesmo tempo, um dos amigos do Zoom decide meter-se no carro e ir ter com ele (para quê?). As estradas estão desertas. Num instante são perseguidos pela polícia. O final do filme quer entrar em coisas da vida real por isso temos algo semelhante ao que deu origem ao Black Lives Matter, só que aqui é apoucalhado em todas as formas e feitios (o gajo não obedeceu à polícia umas quatro vezes, ainda sob efeito da droga).
Em retrospectiva, não diria apenas que o filme é estúpido, mas que as personagens são ainda mais estúpidas.
Completamente a evitar.

9 em 20

 

domingo, 10 de novembro de 2024

Annabelle Comes Home / Annabelle 3 - O Regresso A Casa (2019)

Quis ver este filme depressa, não porque me interessasse mas para não me esquecer dos anteriores e de toda a série “The Conjuring”, “The Nun”, etc, e mesmo assim acho que perdi um destes todos.
Este filme não é tanto “Annabelle Volta a Casa” como “Annabelle Continua Presa na Sala de Artefactos” do casal Warren. De facto, o filme passa-se todo na casa, do princípio ao fim, e é um cliché de bradar aos Céus. A imaginação está mesmo a esgotar-se no que toca a Annabelle, mas que outra coisa esperar?
A história começa quando Ed e Lorraine Warren têm de se ausentar, deixando a filha Judy com a babysitter Mary Ellen. Mary Ellen é o mais certinha que pode haver, mas a sua amiga Daniela “faz-se convidada” para a casa dos Warren na tentativa de encontrar alguma coisa que lhe permita contactar o pai falecido. Ao contrário das instruções de Mary Ellen, assim que se apanha sozinha Daniela faz questão de entrar na Sala de Artefactos dos Warren e de tocar em tudo, mesmo tudo. Pior ainda, abre a porta do expositor onde Annabelle está fechada.
A partir daqui todas as assombrações ficam à solta pela casa (e também fora dela), aterrorizando as três adolescentes, enquanto que o demónio que possui Annabelle tenta apossar-se de uma das suas almas.
“Annabelle Comes Home” funciona como filme de “casa assombrada” com adolescentes, o que não deixa de ser um género “ganhador” apesar da falta de originalidade. Há uma cena verdadeiramente assustadora, quando Daniela encontra um espelho que mostra o que vai acontecer daí por um minuto ou dois, o que não lhe dá tempo suficiente de reagir. Outra cena particularmente inspirada é quando as miúdas decidem finalmente telefonar aos Warren e a princípio parece que é Lorraine quem atende, mas afinal quem responde é outra coisa…
Lamento que tenha aparecido novamente o demónio chifrudo, desta vez com uns cornos tipo carneiro. Sinceramente, já não sei o que dizer sobre isto. Já nem acho engraçado. É apenas estúpido, enfadonho, e não mete medo nenhum a quem não tenha nascido na Idade Média. Continuo a não perceber estes realizadores e a mania do demónio chifrudo.
“Annabelle Comes Home” é um filme adolescente para adolescentes numa casa assombrada, e não há muito mais a dizer. Confesso que esperava mais, mas por esta altura Annabelle já está muito gasta. A saga The Conjuring parece já ter dado tudo o que tinha a dar.
Uma última nota para a actriz que faz de Judy. Eu sabia que conhecia aquela cara de qualquer lado, mas puxei muito pela cabeça. Mckenna Grace, um pouco mais velha, é a Esther de “The Handmaid’s Tale”. Penso que podemos esperar grandes coisas dela no futuro.


12 em 20

 

domingo, 3 de novembro de 2024

Glitch (2015 - 2019)

Na pacata noite de Yoorana, uma pequena cidade (ficcional) no interior da Austrália, meia dúzia de pessoas falecidas saem das suas sepulturas. No entanto, não são zombies. Estão nus e na idade em que morreram, cobertos de lama, desorientados e confusos, e sofrem de amnésia. Numa terra em que há apenas dois polícias de serviço, o agente James é chamado ao cemitério e julga que aquilo que está a ver é uma partida ou o resultado de uma bebedeira. Leva-os todos para o consultório da médica Elishia McKellar, igualmente o único da cidade, onde esta lhes faz testes e James os tenta identificar. Lentamente, uns mais devagar do que os outros, os ressuscitados começam a lembrar-se de pequenos pormenores das suas vidas, como por exemplo o nome próprio. Depois do estado de negação, James tem de acreditar nos seus olhos ao reconhecer entre eles a sua esposa Kate, falecida há dois anos de cancro. Mais investigação revela que estas pessoas são mesmo quem estava nas campas, alguns deles mortos há mais de 100 anos.
O que os trouxe de volta? E como? O que têm em comum?
“Glitch” é mais ficção científica do que sobrenatural, embora o sobrenatural também esteja envolvido. Já voltaremos a isso, mas penso mesmo que a melhor maneira de assistir a esta série australiana é focarmos-nos nos personagens que se vêem de volta à vida sem saberem que tinham morrido.
Kate, falecida esposa de James, regressa para descobrir que entretanto ele casou com a melhor amiga dela e que estão à espera de um bebé dentro de semanas, a criança que Kate não conseguiu ter devido ao cancro. James nunca deixou de amá-la, o que o coloca numa situação muito difícil. Acima de tudo por causa de Kate, mas também pelos outros, James e Elishia decidem manter os ressuscitados em segredo antes que cientistas os queiram levar e estudar.
Kirstie Darrow, assassinada aos 19 anos na década de 80, tem apenas vislumbres do que lhe aconteceu até recordar o homicídio e agora só quer encontrar o homem que a matou.
Uma das minhas histórias preferidas é da Charlie P. Thompson, o único soldado da Primeira Guerra Mundial que regressou vivo a Yoorana com o estatuto de herói e mandou erigir uma estátua aos camaradas caídos em batalha, mas acabou por morrer também, muito novo, em circunstâncias desconhecidas. Charlie morreu antes de assumir a sua homossexualidade, uma vez que estava apaixonado por um companheiro de trincheira que foi alvejado à sua frente. Regressado dos mortos, Charlie tem de descobrir o que lhe aconteceu e lidar, finalmente, com a sua sexualidade.
Outra história igualmente interessante é a de Patrick Michael Fitzgerald, primeiro Presidente da Câmara de Yoorana, falecido há mais de 150 anos, que funciona também como comic relief. Patrick construiu a sua fortuna através de expedientes e ilegalidades. Quando regressa dos mortos consegue escapar à vigilância da polícia, dá umas voltas por uma cidade que já não reconhece (excepto a sua própria estátua na praça), assalta uma loja de artigos de caça e vai acampar no mato à moda antiga, com uma fogueira e tudo. Lentamente, Patrick recorda o seu envolvimento com uma criada aborígene da sua casa, de quem teve uma criança. Mais tarde descobre também que os seus descendentes com esta mulher, o amor da sua vida, ainda vivem em Yoorana. Obviamente, o ramo “branco” da família não os reconhece. Patrick embarca numa missão para que a sua fortuna seja também dividida com eles, o que não vai ser fácil devido aos entraves da família legítima.
Nem tudo são rosas para estes regressados da sepultura. Depressa descobrem que estão limitados no espaço por uma barreira invisível que não lhes permite sair de Yoorana, e esta barreira está a encolher cada vez mais. Se tentarem ultrapassá-la, morrem e decompõem-se em segundos, voltando ao estado em que estavam.
E então entra o sobrenatural. Pessoas antes normais começam a ficar “possuídas” com um único propósito: devolver os ressuscitados à sepultura para corrigir a ordem natural das coisas.
Vou cometer um spoiler para se perceber isto (ou não). A série andou às voltas até que por fim admitiu que a ressurreição tinha sido produto de uma experiência científica. Mas estes “exterminadores” ao serviço de uma força inteligente que quer “repor a ordem das coisas” não têm nada de científico. Geralmente não gosto da mistura de ficção científica com sobrenatural, mas aqui até funciona bem. Um dos personagens pergunta a um destes “exterminadores” se ele trabalha para Deus, ao que o outro não responde sim nem não. Mas a natureza não quer saber de moralidades (e não são meia dúzia de ressuscitados que vão implodir o universo), pelo que só pode ser uma força sobrenatural que move os “exterminadores” a “corrigirem” o que a ciência “perturbou”. Isto faria sentido, ciência vs sobrenatural, especialmente se a ciência se aguentasse nas pernas (não aguenta). O problema é quando se tenta misturar ficção científica com sobrenatural, porque nunca bate a bota com a perdigota, e “Glitch” também se tentou meter por aí, embora muito ao de leve e sem se comprometer, o que permite a cada espectador interpretar como quiser. Por exemplo, o romance entre Elishia McKellar e William Blackburn. Das conversas entre ambos tudo indica que se trata de reencarnação (neste caso uma reencarnação “forçada”) e que ambos se conheciam de uma vida passada ou até mesmo do Além, mas a série nunca é suficientemente explícita.
Na verdade, a grande crítica que “Glitch” merece é que nunca se interessa por dar respostas, e cada resposta vem carregada de mais perguntas, ao que eu vou começar a chamar o “Síndrome de Lost”, e ao fim de três temporadas termina cheia de pontas soltas. Vou considerar que este desinteresse foi propositado para que os espectadores se focassem antes nos personagens, porque uma vez que mete ciência até seria MUITO FÁCIL explicar “porquê estes e não outros”. Por exemplo, podiam ter inventado um gene em comum, o mesmo tipo de sangue, um parentesco, e patati-patatá porque não ia fazer sentido à mesma.
Por falar em parentesco, a certa altura Patrick recupera o seu testamento, que tinha deixado num esconderijo secreto, e confronta ambos os ramos da família com ele, apresentando-se como um parente, tentando provar que tinha deixado uma grande propriedade a Kalinda, a criada. Inclusivamente, Patrick contrata um advogado para tratar do caso. Nenhum dos ramos da família acredita nele, mas não seria lógico que alguém sugerisse um teste de ADN para provar o parentesco, o que daria mais credibilidade ao testamento, nem sequer o advogado? Até podia ser interessante porque a doutora Heysen diz que o sangue dos ressuscitados é “invulgar”, o que certamente seria detectado no teste de ADN e abriria uma nova narrativa. Haveria mais exemplos, mas “Glitch” não está interessada em pormenores que desviem a história do enredo principal.
Também não fiquei nada convencida com o fim. Deu-me até a entender que se calhar queriam que a série fosse continuada, mas não foi renovada e tiveram de arranjar alguma coisa à pressa?…
“Glitch” começa em ritmo lento (cada temporada tem apenas 6 episódios), o tempo necessário para que os ressuscitados se adaptem à sua nova situação, recobrem do choque e procurem respostas, mas começa “a abrir” a partir da segunda temporada. Algumas coisas são resolvidas e explicadas, outras são abandonadas. Penso que uma série tão profunda e viciante merecia “pontos mais bem dados”, mas continuo a dizer que vale a pena pelo percurso dos personagens desde que não se olhe muito para o lado e para as questões que não tiveram tempo de ser desenvolvidas.
Nota humorística: quando eles saem das sepulturas, nus e sujos de lama, são levados para um consultório. Em questão de horas todas as mulheres tomam banho e arranjam roupa decente. Dias depois, os homens ainda andam com as orelhas e até o peito sujo de terra, como quem não se lavou como deve ser. Na verdade, só os vi limpinhos na segunda temporada. Não estou a inventar nada, é só ver a série. Achei engraçado.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: ficção científica, sobrenatural, metafísica, Lost



terça-feira, 29 de outubro de 2024

Bohemian Rhapsody (2018)

Hey, I'm gonna get you too
Another one bites the dust


Para mim fez todo o sentido que o filme começasse com a actuação dos Queen no Live Aid, que foi afinal onde os conheci “a sério” pela primeira vez. Admito desde já que não sou fã, embora goste de meia dúzia de canções. “Bohemian Rhapsody”, por acaso, até nem é uma delas. Simplesmente não é o meu tipo de música.
Acredito que “Bohemian Rhapsody” seja uma delícia para os fãs de Queen, e de Freddie Mercury em particular, mas não é preciso ser fã para apreciar o percurso da banda. Gostei particularmente de perceber como é que as canções mais icónicas foram construídas, “Bohemian Rhapsody”, por exemplo, que as rádios não queriam tocar porque era muito “longa”: 6 minutos. Se as rádios soubessem o que vinha por aí com o rock progressivo…
Adorei os bastidores do vídeo de “I Want To Break Free”, um dos meus preferidos. Não fazia ideia de que o vídeo tinha sido censurado na televisão, fruto das mentalidades do tempo. Hoje em dia o vídeo é simplesmente hilariante: Mercury vestido de dona de casa, com a sua grande bigodaça, a aspirar o chão.
E depois vem a parte para chorar. Quando comecei, chorei como um bebé até ao fim. Não fazia ideia de que Freddie Mercury já estava doente durante o Live Aid, ou não se notava nada a olhos de leigo. Freddie Mercury foi possivelmente a celebridade do campo musical que nos ensinou o que era a SIDA. Tudo o resto é muito emocional e afectou irreversivelmente as nossas vidas de adolescentes.
“Bohemian Rhapsody” é eficiente a contar ambas as histórias: Freddie Mercury e os Queen, estrelas de rock, e Freddie Mercury, símbolo de uma geração confrontada com uma doença fatal e estigmatizante.

There's no chance for us
It's all decided for us
This world has only one sweet moment
Set aside for us

Who wants to live forever?
Who wants to live forever?


14 em 20

domingo, 27 de outubro de 2024

The Vatican Tapes / O Regresso do Mal (2015)

O título diz quase tudo, este é um filme de possessões e exorcismos como podemos esperar de qualquer filme de exorcismos, mas com uma nuance controversa para quem se interessa por estas coisas (eu). Esta nuance é um spoiler, portanto quem quiser ver o filme primeiro pode fazê-lo, mas também advirto que o filme é um autêntico cliché sem esta… originalidade.
Para começar, gostei da protagonista Angela. Numa era de Twitters e Instagrams, Angela tem um blog (como este) onde escreve artigos sobre Satanás e o Anticristo (como muitas críticas a filmes e séries neste blog). Espero que não seja isso a possuir-me também. Aliás, nestas coisas há sempre um despoletador da possessão, mas neste caso, sinceramente, não me consigo recordar do que foi.
Angela tem um pai militar de alta patente, irlandês e muito católico, e um namorado de quem o pai não gosta porque os dois vivem em pecado. A certa altura, não me lembro porquê, Angela começa a exibir traços de comportamento atípicos nela, falando como se estivesse bêbeda e bebendo muita água, ao mesmo tempo que manifesta ataques de pânico. Por fim, Angela causa um acidente de carro que a manda para o hospital.
Angela fica 40 dias em coma, em estado vegetativo, ligada à máquina. É tão final que os médicos já desistiram. O pai e o namorado decidem desligá-la do suporte de vida. Assim que o fazem, é o milagre. Angela recupera totalmente, quando já a julgavam em morte cerebral.
Mas a cura física não equivale a uma cura mental, e os efeitos da possessão continuam a manifestar-se. Angela é internada na ala psiquiátrica onde acontece uma das cenas mais tensas do filme. De alguma forma, Angela escapa do quarto e entra no berçário, onde pega num bebé e parece tencionar afogá-lo não fosse a pronta intervenção dos seguranças. O comportamento de Angela torna-se cada vez mais estranho, especialmente quando começa a falar Aramaico (ou uma linguagem demoníaca) e incita todos os pacientes da ala psiquiátrica a matarem-se uns aos outros ou a si próprios. Depois disto (e de outros episódios) é a própria directora de psiquiatria que lhe dá alta, entregue ao pai e ao namorado, dizendo-lhes que nada mais podem fazer por ela ali.
É nesta altura que entra em cena o Vaticano que, acredita-se, tem todo um departamento para lidar com manifestações diabólicas, e Angela já estava no “radar” deles. O cardeal Bruun é enviado para a América para realizar o exorcismo.
Aqui é que começa a parte controversa. O cardeal Bruun não está apenas convencido de que Angela está possuída, como acredita que Angela é o Anticristo. (Os 40 dias em coma seriam o espelho dos 40 dias de Jesus no deserto.) Sendo o Anticristo, não vale a pena exorcizá-la porque o problema não está num espírito possuidor mas nela própria. O que ele quer fazer é matá-la com o devido ritual.
Aqui, sinceramente, não percebi a teologia da coisa. Foi o próprio Vaticano (e o próprio cardeal Bruun) a confirmar a possessão. Como é que se passa da possessão para o Anticristo? São “coisinhas” diferentes. Basta ler o Apocalipse. Não quero com isto dizer que “Anticristo só há um, é o Damien e mais nenhum”. O Anticristo pode não ser um homem (ou uma mulher); conhecendo a linguagem da Bíblia nada nos garante que não seja uma organização. O que o Anticristo não é nem pode ser é alguém possuído por um demónio ou pelo Diabo. O Anticristo é um servidor voluntário do Diabo. É o vilão e não a vítima. Como o nome indica, é o anti-Cristo que vai arrastar as nações para a batalha do Armagedão e precipitar a Segunda Vinda. Como é que alguém possuído pode alguma vez ser anti seja o que for se não tem vontade própria? Eu quero crer que quem escreveu este enredo não leu o Apocalipse ou não percebe nada de teologia.
Mas enfim, Angela sobrevive, como obviamente teria mesmo de sobreviver sendo o Anticristo, e começa a fazer milagres (isto sim, vem no Apocalipse) e a ser adorada por multidões de seguidores nas redes sociais. É tradição (devido à linguagem bíblica) associar a ascensão do Anticristo ao mundo da política, mas, tendo em conta que hoje em dia alguém se consegue eleger na nação mais poderosa do mundo através do Twitter, direi que está muito bem pensado.
E aqui o filme acaba. Exactamente aqui, quando finalmente ia a algum lado e começava a fazer sentido. “The Vatican Tapes” acabou por se tornar um filme mau sobre possessão e um filme péssimo sobre o Anticristo. No entanto, devido ao fim abrupto, cheira-me a ambições de uma sequela.

10 em 20

 

domingo, 20 de outubro de 2024

Pet Sematary, de Stephen King / Pet Sematary (1989) / Pet Sematary (2019)

[contém spoilers]

Obviamente, não li “Pet Sematary” para saber a história. Já conheço a história de trás para a frente e de frente para trás. O que me despertou a curiosidade em finalmente pegar no livro foram as discrepâncias entre as duas adaptações cinematográficas (1989 e 2019).
Para começar, não sou de modo algum imparcial. Considero “Pet Sematary” um dos melhores “contos de fadas” do século XX, uma história que atinge e provoca o âmago da humanidade desde que o homem é homem: a morte, o luto, o desejo de imortalidade e o pavor do fim. Acima de tudo, o nosso pavor de perder os mais queridos, impotentes e revoltados, sabendo que cada morte é um bocadinho de nós que morre com eles. Chamei-lhe “conto de fadas”, embora negro, porque todos os contos de fadas começaram por ser histórias de terror no tempo deles, adaptados e suavizados, como todos os mitos, aos valores e sensibilidades das sociedades que vieram depois. Não é pois de estranhar que o remake de “Pet Sematary” difira tanto do original, em especial no que toca a Church, o gato.
“Pet Sematary”, o livro, foi publicado em 1983 e a primeira adaptação é de 1989. Também não é de estranhar que a primeira adaptação seja a mais fiel ao original, se bem que ela própria já suavizada ao gosto da altura: o original é muito mais brutal. Se eu tenho razão, e se o conto de fadas se perpetuar como um mito, é de esperar sucessivas adaptações no futuro.
Tendo tudo isto em conta, vou começar por alguns pontos do livro que foram autênticos choques para mim, que só tinha visto os filmes.

Norma
Para meu espanto e choque, Norma, a mulher de Jud Crandall, está viva no livro! Juro que quando ouvi Jud a referir-se à esposa, “que estava em casa”, julguei que o velho estava cheché e que continuava a falar com a mulher depois de morta, especialmente uma mulher chamada Norma. Mas não, Norma está mesmo viva no livro, embora seja igualmente velhota e sofra de artrite e do coração. No entanto, Norma morre de AVC logo no início, quase a seguir a Church. Isto quase não é um spoiler porque Norma quase não tem papel. Se calhar só se queria dizer com isto que Jud resistiu à tentação de enterrar a mulher no cemitério Micmac. Há uma cena muito estranha no fim do remake em que Norma fala por outra personagem e diz a Jud que espera por ele no Inferno por causa do que ele lhe fez. Sinceramente, fiquei a pensar que Jud a tinha ressuscitado dos mortos também. Afinal era algo bem mais banal e duvido que seja mesmo Norma a dizer no filme uma versão suavizada do que disse no livro. Fiquei na dúvida se não era o demónio do bosque a falar por ela. Uma senhora tão decente não diria/faria as coisas que disse que fez. Seja como for, compreendo que os dois filmes tenham excluído o pequeno papel de Norma.

Church (Winston Churchill), o gato
O que se passa com o gato no original deixou-me tão mal disposta que se não soubesse o fim acho que punha o livro de lado sem pensar duas vezes. Não me refiro ao atropelamento e à ressurreição nem nada disso. Refiro-me à maneira como o pobre animal foi vítima de maus-tratos injustificáveis. Ao contrário do que vemos nos filmes, Church não regressa imediatamente maléfico como um demónio do inferno. Church volta desengonçado e apático, “sem graça felina” nas palavras de Louis Creed, e, claro, com o cheiro nauseabundo do cemitério Micmac. Por esta razão Ellie Creed, a filha de 6 anos de Louis, começa logo por correr com ele da cama, onde ele costumava dormir com ela. Isto acontece depois de Ellie ter chorado baba e ranho só de pensar que ele podia morrer, o seu querido gato de estimação, um dos motivos que levam Jud e Louis a trazê-lo de volta. A partir do momento em que ele regressa é ignorado por toda a família e maltratado por Louis, que o põe na rua com uma vassoura (!) todas as noites porque tem nojo de lhe tocar (Louis diz que Church já não é um animal mas a “imitação de um gato”). Pôr o gato na rua todas as noites outra vez, depois de este já ter sido atropelado na estrada, é ilógico e cruel. Até Rachel Creed, que queria tanto mandá-lo esterilizar para ele não sair de casa (pressuposto errado, porque mesmo um gato esterilizado continua a fazer tudo o que estava habituado a fazer antes), não parece nada preocupada que o gato ande na rua a noite toda com os camiões a passarem na estrada a grande velocidade. Cage, o bebé de dois anos, puxa-lhe o rabo. Deixa lá, Gage, a tua hora está próxima! Entretanto, Church desenvolve o hábito de trazer para casa ratos e pássaros semi-comidos, esventrados (no estado selvagem os felinos comem primeiro as vísceras), depositando-os perto de Louis. Louis fica tão furioso que começa a dar pontapés ao gato e a atirar-lhe coisas com força. Exactamente assim: pontapés e maus-tratos. As oferendas são para ti, Louis, sua besta! A minha gata, que está muito viva e não veio do cemitério Micmac, mas que é muito mazinha, tinha-te arrancado a cara! Louis racionaliza estes maus-tratos com a “perversidade” da caça de Church, que supostamente antes não caçava tanto, mas, a ser verdade, eu explico o fenómeno com o facto de Church dormir com Ellie em vez de andar a noite toda no bosque. A princípio Church foge e esconde-se mas, a certa altura, com a continuação dos maus-tratos, começa a assanhar-se a sério, e já não era sem tempo. Fiquei chocada, chocada! Que mal é que o animalzinho fez? Foi vítima de negligência dos donos que o deixavam sair de casa, especialmente com uma estrada assassina à porta; foi atropelado e ressuscitado; foi rejeitado por Ellie; foi vítima de maus-tratos e pontapés; é assassinado pelo dono no fim. Chiça! É o suficiente para odiar a família toda.
Não vou ser como aquele leitor enfurecido que mandou uma carta a Stephen King a dizer-lhe que ia para o inferno porque um dos seus personagens matou um cão a pontapé, sei a diferença entre ficção e realidade, mas percebo perfeitamente que a adaptação de 2019 tenha lido a sensibilidade da época e que a morte de Church seria intolerável nos dias de hoje. No entanto, nos anos 80, à data do livro, os animais de companhia ainda não eram vistos como membros da família mas como objectos utilitários e descartáveis. Os filmes tentaram justificar o livro tornando Church maléfico desde que regressa, mas no original Church só se torna efectivamente malévolo e perigoso quando Gage regressa também. O poder do demónio dos bosques que domina o cemitério Micmac age por meio de ambos.

Justiça feita a Zelda
Ao contrário dos filmes, que apresentam Zelda como um monstro, um demónio à espreita dentro de um armário, o livro retrata a irmã de Rachel com mais lógica e veracidade, uma jovem vítima de uma doença terminal e atrozmente dolorosa, de quem Louis Creed diz que estaria já “clinicamente demente” no final. Zelda torna-se uma doente vingativa, que faz chichi na cama de propósito e que torna a vida de Rachel e da mãe de ambas num inferno. Rachel está sozinha com Zelda quando esta morre e corre para a rua a gritar histericamente “Zelda morreu!”, mas Rachel está a rir e a não a chorar. Este alívio, compreensível numa criança de oito anos, transforma-se em culpa e Rachel desenvolve uma verdadeira fobia à morte, não apenas um medo racional mas uma fobia incapacitante. Ao mesmo tempo, Rachel tem tanto medo de vir a ter a mesma doença da irmã que em criança imagina que Zelda virá “buscá-la” em forma de fantasma. O livro é muito mais explícito em demonstrar que estes medos e visões só existem na cabeça de Rachel, não são manifestações da força maligna do bosque.

Livro vs filmes
É difícil dizer isto mas os filmes conseguiram criar imagens mais assustadoras e icónicas do que o original. Por exemplo, fiquei muito desapontada porque no livro não existe a frase “the cemetery is the place where the dead talk, don’t go to the place where the dead walk”. Jud Crandall conta a Louis Creed os episódios do cão Spot e do soldado ressuscitado, mas os relatos não são tão arrepiantes como as cenas do filme de 1989. Por um lado é normal: há casos em que aquilo que nos entra pelos olhos é mais aterrador do que a nossa imaginação poderia conceber (mas nem sempre).
Aproveito para falar do zombie Timothy, o soldado ressuscitado pelo pai uns 15 dias depois de morrer. Timothy não é um zombie como os imaginamos agora (e como o filme de 1989 o apresenta, um autêntico zombie de “The Walking Dead”). Também ele regressa desengonçado e cambaleante, e passa os dias e as noites a andar de um lado para outro, aterrorizando os habitantes da cidade. Quando quatro homens, incluindo Jud, se dirigem a casa do pai dele para “tratar do assunto”, Timothy revela segredos pecaminosos e criminais dos homens que o vão confrontar, segredos que ninguém poderia saber, o que é mais consentâneo com alguém possuído por um demónio. Sinceramente, prefiro a versão do filme.
Da mesma forma, prefiro a versão do filme de 2019, em que não é Gage que morre. No livro, ao regressar, Gage também fala e diz coisas obscenas, coisas sexuais que uma criança de dois anos nem sabe que existem. Sempre achei que Gage como assassino maléfico era uma ideia rebuscada. Sim, um bebé assassino causa mais choque, mas torna-se absurdo (antes de morrer Gage só conseguia dizer “daddy”, e mal). Por outro lado, a “possessão” de Timothy e Gage, no livro, aprofunda melhor a influência da força maligna que está na base do poder do cemitério Micmac. (Parece que é um Wendigo, um mito americano que desconheço e de que só ouvi falar nos episódios de “Sobrenatural”, e também não foi “Pet Sematary” que me esclareceu.)
O que nos leva ao estado mental de Louis Creed quando decide lá enterrar o filho, muito mais perceptível no livro. Louis Creed não é apenas um homem destroçado e em luto, é alguém tresloucado que se sente compelido a fazer algo que sabe que está errado, e no entanto racionaliza e defende a lógica das suas escolhas como a única coisa que pode fazer. A certa altura, ao desenterrar Gage no cemitério, já está tão descontrolado que admite que agora ninguém o conseguiria deter, e se aparecesse alguém Louis simplesmente o mataria com uma pazada na cabeça. Inclusive decide tratar a ressurreição do filho como uma experiência: “se ele vier mau, eu mato-o e pronto”. Assim mesmo, com toda a frieza. Louis Creed está igualmente possuído pela atracção e pelo poder do ser maligno da floresta, algo que não se nota tanto nos filmes mas que é muito claro no livro. Nesta altura Louis Creed recordou-me de Jack Torrance de “The Shining” (do mesmo autor) só que enlouquecido para salvar a família e não para a matar com um machado. Novamente prefiro a abordagem dos filmes, que conseguiram humanizá-lo. Por exemplo, aquela cena do filme de 1989 em que Louis abraça pela última vez o Gage ressuscitado já depois de morto e desata a chorar, não existe no livro. No livro, Louis mata o filho com a mesma frieza clínica com que tinha matado Church, como a aberrações ou experiências falhadas, sem qualquer vestígio de emoção.

“Pet Sematary”, o livro
Como disse no início, este é um conto de fadas negro que até respeita a “regra das três vezes” dos contos de fadas: primeiro veio o gato; segundo veio o miúdo; terceiro veio a mãe. Já li algumas coisas de Stephen King mas, para o meu gosto pessoal, este foi de longe o melhor livro que ele já escreveu. No entanto tenho algumas picuinhices a apontar.
Por exemplo, demasiados pormenores. Não era mesmo preciso saber tudo o que é dito sobre um funeral americano (desde o embalsamamento ao tipo de sepultura). O tio de Louis Creed era um agente funerário e Louis faz questão de relatar o processo todo só para percebermos que é muito difícil roubar uma campa que leva cimento por cima, algo que, no meu conhecimento, não acontece por cá (pelo menos nas campas não perpétuas em que o corpo é exumado alguns anos depois e os ossos são enfiados numa gaveta). Também há muita palha em relação à família de Rachel, aos colegas de Louis na universidade onde ele trabalha, até às histórias passadas dos habitantes da cidade. É boa palha mas é palha, e não se perdia nada se tivesse sido cortada.
Outra coisa de que não gostei, depois de ler dois livros de não-ficção de Stephen King (“Danse Macabre” e “On Writing”), é a voz dele nesta história. Porque é mesmo a voz dele que reconhecemos em Louis Creed. Stephen King veio de uma família trabalhadora na América, não exactamente pobres mas aquilo a que chamaríamos “remediados” (a mãe dele criou os dois filhos sozinha), e parece-me que Stephen King quer recuperar a linguagem dessa América de classe média/baixa. O que acontece é que temos um professor e académico como King a querer falar como um canalizador, o que soa falso e forçado. Pior ainda, não é apenas Louis Creed que se expressa assim em pensamentos (Louis Creed veio de um background semelhante ao de King) mas também Steve, outro colega médico, acaba a soar desta maneira. Talvez, entretanto, esta voz de académico a tentar fingir que é um canalizador, um homem do povo, tenha desaparecido da obra de King. Li coisas mais recentes dele e já não notei esta voz embirrante, mas talvez tenha de ler mais alguma coisa para tirar as dúvidas.
Recomendo a leitura de “Pet Sematary” a toda a gente que gostou da história. Há aqui muitos pormenores sobre a natureza maléfica e a extensão do poder do cemitério Micmac que os filmes apenas tocam ao de leve. No entanto, devido à natureza brutal da história (mais do que nos filmes) não é um livro que me apeteça ler duas vezes.

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Doctor Sleep (2019)

Este filme interessou-me muito porque segue a vida de Dan Torrance, o miúdo que todos conhecemos de “The Shining”. Ele e a mãe são os sobreviventes dos acontecimentos horríficos do hotel Overlook onde o pai de Dan morreu depois de ter tentado matar a família por estar possuído pelos espíritos maléficos do hotel.
Ainda em miúdo, Dan tem uma conversa com o fantasma de Dick Hallorann, o cozinheiro do Overlook a quem Dan enviou um SOS psíquico em vão. Dan decide esconder os seus poderes psíquicos, talvez devido ao trauma.
Não admira que já adulto Dan seja um homem deprimido e perturbado, que se refugia no alcoolismo. Um dia decide deixar o álcool e vai trabalhar como auxiliar de um lar de idosos. O lar tem uma gata que parece saber sempre quem vai morrer a seguir, deitando-se aos pés da cama do moribundo. Dan segue-a e descobre que tem um dom para tranquilizar os doentes terminais, o que lhe vale a alcunha de Doctor Sleep.
Esta vida “pacata”, na “clandestinidade”, é interrompida quando Dan recebe um apelo psíquico da uma rapariguinha chamada Abra, alguém com poderes psíquicos iguais aos dele. Abra assistiu, em sonhos, ao homicídio de um rapazinho por um grupo de vampiros. Digo “vampiros” no sentido lato, uma vez que não bebem sangue mas alimentam-se das almas das vítimas, especialmente do medo e da dor.
Relutantemente, Dan aceita conhecer Adra mas aconselha-a a esconder os seus dons uma vez que este grupo de vampiros quase imortais tem poderes únicos. Se ela os viu, eles também a “viram”, o que não só a coloca em risco como também à família dela.
Este ninho de vampiros, saliento, é deveras assustador. Por exemplo, guardam o “resto” das almas não consumidas em recipientes que mantêm para emergências e preferem exactamente as almas das pessoas que têm poderes psíquicos, como Dan ou Abra.
Num último encontro com o fantasma de Dick Hallorann, este diz-lhe que é seu dever ajudar a miúda, e Dan concorda. Mas para derrotar estes vampiros poderosos Dan tem um trunfo: voltar ao Overlook, onde todos os espíritos famintos os aguardam. Foi bom ver o Overloook outra vez, embora não seja o Overlook de Stanley Kubrick. Este é um hotel abandonado, fechado e decrépito, uma sombra da sua glória (e ameaça) passada. Saliento a conversa que Dan tem com o barman fantasmagórico, que tudo indica ser o próprio Jack Torrance que ficou preso para sempre no Overlook.
Confesso que esperava mais de “Doctor Sleep” (e de Dan Torrance) e que o final me deixou desiludida e até um pouco triste. Não queria daqui uma saga, mas Dan Torrance tinha um “shining” extraordinário capaz de chamar Dick Hallorann à distância (a ponto de o próprio Dan preferir esconder as suas capacidades), e não vi esses imensos poderes psíquicos aqui.
“Doctor Sleep” é um filme de nostalgia, principalmente, com algumas imagens do original “The Shining” e tudo, com um argumento sólido que se sustenta por si só, mas para um sucessor de “The Shining” penso que todos queríamos mais.

15 em 20

 

domingo, 13 de outubro de 2024

Annabelle: Creation / Annabelle 2: A Criação do Mal (2017)


Sequelas e prequelas têm má reputação por uma razão, mas muito esporadicamente aparece a excepção que confirma a regra. “Annabelle: Creation” é dessas excepções, talvez de onde menos a esperávamos. Tal como o título indica, esta é a história original da boneca que viria a chamar-se Annabelle. Nos anos 40 ou 50, parece-me, esta boneca foi feita à mão por um bonecreiro que tinha bastantes encomendas. (A malta da paróquia não devia ver bem para querer encomendar aquela coisa medonha, mas enfim.) A boneca pode ter sido mesmo criada à semelhança da filha do casal, chamada Annabelle (se acham que isto é demasiada coincidência com o primeiro filme, é porque não é coincidência). Digo “criada à imagem da filha” de modo geral; obviamente que a miúda não é horripilante como a boneca.
A história começa em tragédia. Num acidente estúpido, Annabelle (a criança) é atropelada. Os pais da filha única e muito amada ficam desgostosos para toda a vida.
Muitos anos depois, este mesmo casal (os Mullins) decide acolher na sua grande casa meia dúzia de raparigas órfãs de várias idades, acompanhadas pela jovem freira do orfanato onde elas estavam. Imediatamente uma delas nos chama a atenção, Janice, uma pobre miúda que teve poliomielite e que precisa de um aparelho para caminhar, o que faz com muito esforço e cansaço.
Tudo isto é um ambiente de drama, onde o Mal existencial já existe e onde o outro Mal tem o cenário pronto. (Ver sobre isto “O Exorcista II”.)
Aliás, os Mullins são estranhos. A mulher foi acometida por uma doença e nunca sai do quarto. O marido faz questão de manter trancado o quarto da filha falecida. Isto não é suspeito, tendo em conta as circunstâncias, mas desde o início achei que ele olhava de forma esquisita para as miúdas, o que me deixou na dúvida se ele as tinha convidado por compaixão ou para as sacrificar nalgum ritual para ter a filha de volta. Não estava exactamente enganada em nenhuma das hipóteses, mas também não era o que eu pensava.
Mesmo assim, durante a noite Janice encontra a porta do quarto aberta. A tentação é demasiado grande. A falecida Annabelle tinha brinquedos irresistíveis, nomeadamente uma casa de bonecas que parece a reprodução do próprio quarto com a miniatura de Annabelle junto à mobília. Entretanto, uma porta abre-se sozinha e Janice descobre a boneca lá dentro (a boneca que vai ser conhecida como Annabelle, só para clarificar).
A partir daqui Janice começa a ser assombrada pelo fantasma de Annabelle. A princípio tem pena de Annabelle, até esta lhe dizer claramente que quer a sua alma. A melhor amiga de Janice, Linda, também começa a ser perseguida, e até as raparigas mais velhas sofrem perturbações no quarto delas, embora ninguém queira admitir. Janice chega a pedir à irmã Charlotte (a freira que as acompanha) para saírem daquela casa onde sente uma “presença maléfica”, mas a freira recorda-lhe que não têm melhor para onde ir. Lentamente, vendo que ninguém consegue ajudá-la, Janice resigna-se ao seu destino.
“Annabelle: Creation” prova que não são precisos efeitos especiais histéricos para meter medo, muito pelo contrário. Como naquela cena em que não há nada debaixo do lençol. Mãezinha, o que eu teria gritado se aquilo me acontecesse a mim! O que não significa que os efeitos especiais mirabolantes não apareçam, como um mau vício. Por exemplo, na cena do elevador de mordomo (um daqueles elevadores interiores, na parede, para subir e descer comida e roupa). A certa altura a miúda mete-se nele para fugir ao demónio (quando já se sabe que não é um fantasma que as assombra) e o demónio tenta puxá-la para baixo com as patas peludas, com garras e tudo. A miúda dá-lhe uma sapatada e ele larga. Como se faz a um gato. Eu desatei-me a rir. Uma entidade maléfica desiste com a sapatada de uma fedelha? Sinceramente, realizadores. Também vemos o demónio, a dado passo, baixinho, peludinho, chifrudo, negro, assim a parecer uma daquelas iluminuras medievais. Porque esta noção de demónio é medieval e não acredito que meta medo a alguém. Não sei o que se passa com os realizadores desta série de filmes em insistirem nesta absurdidade.
O filme também é mais longo do que devia. Por mim, toda aquela cena no celeiro era cortada. Não adianta a história, não acontece às personagens principais e nem se pode dizer que é para “encher” porque o filme já está demasiado cheio.
Apesar de me ter feito rir, “Annabelle: Creation” aguentou-se muito bem depois, o que não é dizer pouco. Não é um filme que me meta medo, mas é tenso e pesado. Acima de tudo é um filme com cabeça, tronco e membros (o que vem sendo raro) que até explica em parte o original “Annabelle” (o que eu também não esperava). A aposta na empatia pelas personagens (demónios peludos à parte) fez mesmo toda a diferença.

13 em 20 (menos um ponto pelas patinhas peludas)