[contém spoilers]
Obviamente, não li “Pet Sematary” para saber a história. Já conheço a história de trás para a frente e de frente para trás. O que me despertou a curiosidade em finalmente pegar no livro foram as discrepâncias entre as duas adaptações cinematográficas (1989 e 2019).
Para começar, não sou de modo algum imparcial. Considero “Pet Sematary” um dos melhores “contos de fadas” do século XX, uma história que atinge e provoca o âmago da humanidade desde que o homem é homem: a morte, o luto, o desejo de imortalidade e o pavor do fim. Acima de tudo, o nosso pavor de perder os mais queridos, impotentes e revoltados, sabendo que cada morte é um bocadinho de nós que morre com eles. Chamei-lhe “conto de fadas”, embora negro, porque todos os contos de fadas começaram por ser histórias de terror no tempo deles, adaptados e suavizados, como todos os mitos, aos valores e sensibilidades das sociedades que vieram depois. Não é pois de estranhar que o remake de “Pet Sematary” difira tanto do original, em especial no que toca a Church, o gato.
“Pet Sematary”, o livro, foi publicado em 1983 e a primeira adaptação é de 1989. Também não é de estranhar que a primeira adaptação seja a mais fiel ao original, se bem que ela própria já suavizada ao gosto da altura: o original é muito mais brutal. Se eu tenho razão, e se o conto de fadas se perpetuar como um mito, é de esperar sucessivas adaptações no futuro.
Tendo tudo isto em conta, vou começar por alguns pontos do livro que foram autênticos choques para mim, que só tinha visto os filmes.
Norma
Para meu espanto e choque, Norma, a mulher de Jud Crandall, está viva no livro! Juro que quando ouvi Jud a referir-se à esposa, “que estava em casa”, julguei que o velho estava cheché e que continuava a falar com a mulher depois de morta, especialmente uma mulher chamada Norma. Mas não, Norma está mesmo viva no livro, embora seja igualmente velhota e sofra de artrite e do coração. No entanto, Norma morre de AVC logo no início, quase a seguir a Church. Isto quase não é um spoiler porque Norma quase não tem papel. Se calhar só se queria dizer com isto que Jud resistiu à tentação de enterrar a mulher no cemitério Micmac. Há uma cena muito estranha no fim do remake em que Norma fala por outra personagem e diz a Jud que espera por ele no Inferno por causa do que ele lhe fez. Sinceramente, fiquei a pensar que Jud a tinha ressuscitado dos mortos também. Afinal era algo bem mais banal e duvido que seja mesmo Norma a dizer no filme uma versão suavizada do que disse no livro. Fiquei na dúvida se não era o demónio do bosque a falar por ela. Uma senhora tão decente não diria/faria as coisas que disse que fez. Seja como for, compreendo que os dois filmes tenham excluído o pequeno papel de Norma.
Church (Winston Churchill), o gato
O que se passa com o gato no original deixou-me tão mal disposta que se não soubesse o fim acho que punha o livro de lado sem pensar duas vezes. Não me refiro ao atropelamento e à ressurreição nem nada disso. Refiro-me à maneira como o pobre animal foi vítima de maus-tratos injustificáveis. Ao contrário do que vemos nos filmes, Church não regressa imediatamente maléfico como um demónio do inferno. Church volta desengonçado e apático, “sem graça felina” nas palavras de Louis Creed, e, claro, com o cheiro nauseabundo do cemitério Micmac. Por esta razão Ellie Creed, a filha de 6 anos de Louis, começa logo por correr com ele da cama, onde ele costumava dormir com ela. Isto acontece depois de Ellie ter chorado baba e ranho só de pensar que ele podia morrer, o seu querido gato de estimação, um dos motivos que levam Jud e Louis a trazê-lo de volta. A partir do momento em que ele regressa é ignorado por toda a família e maltratado por Louis, que o põe na rua com uma vassoura (!) todas as noites porque tem nojo de lhe tocar (Louis diz que Church já não é um animal mas a “imitação de um gato”). Pôr o gato na rua todas as noites outra vez, depois de este já ter sido atropelado na estrada, é ilógico e cruel. Até Rachel Creed, que queria tanto mandá-lo esterilizar para ele não sair de casa (pressuposto errado, porque mesmo um gato esterilizado continua a fazer tudo o que estava habituado a fazer antes), não parece nada preocupada que o gato ande na rua a noite toda com os camiões a passarem na estrada a grande velocidade. Cage, o bebé de dois anos, puxa-lhe o rabo. Deixa lá, Gage, a tua hora está próxima! Entretanto, Church desenvolve o hábito de trazer para casa ratos e pássaros semi-comidos, esventrados (no estado selvagem os felinos comem primeiro as vísceras), depositando-os perto de Louis. Louis fica tão furioso que começa a dar pontapés ao gato e a atirar-lhe coisas com força. Exactamente assim: pontapés e maus-tratos. As oferendas são para ti, Louis, sua besta! A minha gata, que está muito viva e não veio do cemitério Micmac, mas que é muito mazinha, tinha-te arrancado a cara! Louis racionaliza estes maus-tratos com a “perversidade” da caça de Church, que supostamente antes não caçava tanto, mas, a ser verdade, eu explico o fenómeno com o facto de Church dormir com Ellie em vez de andar a noite toda no bosque. A princípio Church foge e esconde-se mas, a certa altura, com a continuação dos maus-tratos, começa a assanhar-se a sério, e já não era sem tempo. Fiquei chocada, chocada! Que mal é que o animalzinho fez? Foi vítima de negligência dos donos que o deixavam sair de casa, especialmente com uma estrada assassina à porta; foi atropelado e ressuscitado; foi rejeitado por Ellie; foi vítima de maus-tratos e pontapés; é assassinado pelo dono no fim. Chiça! É o suficiente para odiar a família toda.
Não vou ser como aquele leitor enfurecido que mandou uma carta a Stephen King a dizer-lhe que ia para o inferno porque um dos seus personagens matou um cão a pontapé, sei a diferença entre ficção e realidade, mas percebo perfeitamente que a adaptação de 2019 tenha lido a sensibilidade da época e que a morte de Church seria intolerável nos dias de hoje. No entanto, nos anos 80, à data do livro, os animais de companhia ainda não eram vistos como membros da família mas como objectos utilitários e descartáveis. Os filmes tentaram justificar o livro tornando Church maléfico desde que regressa, mas no original Church só se torna efectivamente malévolo e perigoso quando Gage regressa também. O poder do demónio dos bosques que domina o cemitério Micmac age por meio de ambos.
Justiça feita a Zelda
Ao contrário dos filmes, que apresentam Zelda como um monstro, um demónio à espreita dentro de um armário, o livro retrata a irmã de Rachel com mais lógica e veracidade, uma jovem vítima de uma doença terminal e atrozmente dolorosa, de quem Louis Creed diz que estaria já “clinicamente demente” no final. Zelda torna-se uma doente vingativa, que faz chichi na cama de propósito e que torna a vida de Rachel e da mãe de ambas num inferno. Rachel está sozinha com Zelda quando esta morre e corre para a rua a gritar histericamente “Zelda morreu!”, mas Rachel está a rir e a não a chorar. Este alívio, compreensível numa criança de oito anos, transforma-se em culpa e Rachel desenvolve uma verdadeira fobia à morte, não apenas um medo racional mas uma fobia incapacitante. Ao mesmo tempo, Rachel tem tanto medo de vir a ter a mesma doença da irmã que em criança imagina que Zelda virá “buscá-la” em forma de fantasma. O livro é muito mais explícito em demonstrar que estes medos e visões só existem na cabeça de Rachel, não são manifestações da força maligna do bosque.
Livro vs filmes
É difícil dizer isto mas os filmes conseguiram criar imagens mais assustadoras e icónicas do que o original. Por exemplo, fiquei muito desapontada porque no livro não existe a frase “the cemetery is the place where the dead talk, don’t go to the place where the dead walk”. Jud Crandall conta a Louis Creed os episódios do cão Spot e do soldado ressuscitado, mas os relatos não são tão arrepiantes como as cenas do filme de 1989. Por um lado é normal: há casos em que aquilo que nos entra pelos olhos é mais aterrador do que a nossa imaginação poderia conceber (mas nem sempre).
Aproveito para falar do zombie Timothy, o soldado ressuscitado pelo pai uns 15 dias depois de morrer. Timothy não é um zombie como os imaginamos agora (e como o filme de 1989 o apresenta, um autêntico zombie de “The Walking Dead”). Também ele regressa desengonçado e cambaleante, e passa os dias e as noites a andar de um lado para outro, aterrorizando os habitantes da cidade. Quando quatro homens, incluindo Jud, se dirigem a casa do pai dele para “tratar do assunto”, Timothy revela segredos pecaminosos e criminais dos homens que o vão confrontar, segredos que ninguém poderia saber, o que é mais consentâneo com alguém possuído por um demónio. Sinceramente, prefiro a versão do filme.
Da mesma forma, prefiro a versão do filme de 2019, em que não é Gage que morre. No livro, ao regressar, Gage também fala e diz coisas obscenas, coisas sexuais que uma criança de dois anos nem sabe que existem. Sempre achei que Gage como assassino maléfico era uma ideia rebuscada. Sim, um bebé assassino causa mais choque, mas torna-se absurdo (antes de morrer Gage só conseguia dizer “daddy”, e mal). Por outro lado, a “possessão” de Timothy e Gage, no livro, aprofunda melhor a influência da força maligna que está na base do poder do cemitério Micmac. (Parece que é um Wendigo, um mito americano que desconheço e de que só ouvi falar nos episódios de “Sobrenatural”, e também não foi “Pet Sematary” que me esclareceu.)
O que nos leva ao estado mental de Louis Creed quando decide lá enterrar o filho, muito mais perceptível no livro. Louis Creed não é apenas um homem destroçado e em luto, é alguém tresloucado que se sente compelido a fazer algo que sabe que está errado, e no entanto racionaliza e defende a lógica das suas escolhas como a única coisa que pode fazer. A certa altura, ao desenterrar Gage no cemitério, já está tão descontrolado que admite que agora ninguém o conseguiria deter, e se aparecesse alguém Louis simplesmente o mataria com uma pazada na cabeça. Inclusive decide tratar a ressurreição do filho como uma experiência: “se ele vier mau, eu mato-o e pronto”. Assim mesmo, com toda a frieza. Louis Creed está igualmente possuído pela atracção e pelo poder do ser maligno da floresta, algo que não se nota tanto nos filmes mas que é muito claro no livro. Nesta altura Louis Creed recordou-me de Jack Torrance de “The Shining” (do mesmo autor) só que enlouquecido para salvar a família e não para a matar com um machado. Novamente prefiro a abordagem dos filmes, que conseguiram humanizá-lo. Por exemplo, aquela cena do filme de 1989 em que Louis abraça pela última vez o Gage ressuscitado já depois de morto e desata a chorar, não existe no livro. No livro, Louis mata o filho com a mesma frieza clínica com que tinha matado Church, como a aberrações ou experiências falhadas, sem qualquer vestígio de emoção.
“Pet Sematary”, o livro
Como disse no início, este é um conto de fadas negro que até respeita a “regra das três vezes” dos contos de fadas: primeiro veio o gato; segundo veio o miúdo; terceiro veio a mãe. Já li algumas coisas de Stephen King mas, para o meu gosto pessoal, este foi de longe o melhor livro que ele já escreveu. No entanto tenho algumas picuinhices a apontar.
Por exemplo, demasiados pormenores. Não era mesmo preciso saber tudo o que é dito sobre um funeral americano (desde o embalsamamento ao tipo de sepultura). O tio de Louis Creed era um agente funerário e Louis faz questão de relatar o processo todo só para percebermos que é muito difícil roubar uma campa que leva cimento por cima, algo que, no meu conhecimento, não acontece por cá (pelo menos nas campas não perpétuas em que o corpo é exumado alguns anos depois e os ossos são enfiados numa gaveta). Também há muita palha em relação à família de Rachel, aos colegas de Louis na universidade onde ele trabalha, até às histórias passadas dos habitantes da cidade. É boa palha mas é palha, e não se perdia nada se tivesse sido cortada.
Outra coisa de que não gostei, depois de ler dois livros de não-ficção de Stephen King (“Danse Macabre” e “On Writing”), é a voz dele nesta história. Porque é mesmo a voz dele que reconhecemos em Louis Creed. Stephen King veio de uma família trabalhadora na América, não exactamente pobres mas aquilo a que chamaríamos “remediados” (a mãe dele criou os dois filhos sozinha), e parece-me que Stephen King quer recuperar a linguagem dessa América de classe média/baixa. O que acontece é que temos um professor e académico como King a querer falar como um canalizador, o que soa falso e forçado. Pior ainda, não é apenas Louis Creed que se expressa assim em pensamentos (Louis Creed veio de um background semelhante ao de King) mas também Steve, outro colega médico, acaba a soar desta maneira. Talvez, entretanto, esta voz de académico a tentar fingir que é um canalizador, um homem do povo, tenha desaparecido da obra de King. Li coisas mais recentes dele e já não notei esta voz embirrante, mas talvez tenha de ler mais alguma coisa para tirar as dúvidas.
Recomendo a leitura de “Pet Sematary” a toda a gente que gostou da história. Há aqui muitos pormenores sobre a natureza maléfica e a extensão do poder do cemitério Micmac que os filmes apenas tocam ao de leve. No entanto, devido à natureza brutal da história (mais do que nos filmes) não é um livro que me apeteça ler duas vezes.