Depois de uma guerra nuclear, Ann, uma mulher jovem, mora sozinha com o seu cão na quinta que os pais lhe deixaram, num vale onde as radiações não conseguem entrar. Fora do vale, a contaminação matou todas as pessoas. Ann julga que está sozinha no mundo, cuidando da quinta, tocando órgão na pequena capela de madeira que o seu pai construiu, quando encontra John, na estrada, muito doente de radiação. John recupera e uma das primeiras coisas de que falam é da ausência de radiação no vale. John, um cientista que sobreviveu num bunker, atribui o fenómeno ao microclima no vale; Ann atribui-o à protecção divina. John encontra, entre muitos livros bíblicos na estante, um que se chama precisamente: "A is for Adam". Quando John sugere construírem um moinho de água numa cascata próxima de modo a produzirem electricidade para o inverno, usando a madeira da igreja, Ann fica muito dividida, a princípio, mas acaba por concordar por ser a única maneira de sobreviverem.
Com o tempo, Ann e John desenvolvem sentimentos românticos, mas John não lhes cede porque é mais velho do que Ann e pensa que têm muito tempo para se conhecerem melhor. Esta dinâmica é abalada quando surge outro sobrevivente, Caleb, que estava a trabalhar numa mina ali perto quando o desastre nuclear aconteceu. Caleb é um homem atraente, branco, com a mesma cultura de Ann e religioso como ela, um vizinho de uma povoação próxima, daqueles com quem Ann poderia vir a casar noutras circunstâncias. John é negro, ateu, mais velho, alguém que não tem nada em comum com Ann. E, de facto, enquanto os três trabalham no moinho de água, John repara que Ann e Caleb começam a aproximar-se. John diz que não se importa, mas não é bem assim. Ann pode ser a única mulher no mundo, e uma mulher bonita, e tanto Caleb como John a cobiçam numa tensão crescentemente mais declarada. O que poderá correr mal?
Os paralelos deste vale protegido com o Jardim do Éden são evidentes. O título "Z For Zachariah" nunca é explicado, mas se Adam foi o primeiro homem, Zacariah será o último. Só que, ao contrário do que Ann pensa ao conhecer John, este não era o último homem.
Muito diferente dos filmes pós-apocalíticos que conhecemos, "Z For Zachariah" aproveita este triângulo romântico para fazer um estudo da natureza e da moral humana. O filme não está muito preocupado em mostrar cenários de destruição, pelo contrário, o vale é idílico, até um pouco demais: todos parecem mais bem alimentados do que deviam (só têm legumes, couves, ovos de meia dúzia de galinhas que não podem comer por causa dos ovos, e alguns perus selvagens que conseguem caçar), não sei até que ponto o moinho de água conseguiria produzir electricidade para abastecer a casa toda e as arcas frigoríficas, e também tenho dúvidas de que John conseguisse recuperar do envenenamento por radiação no estado em que ele estava ao chegar.
Tudo parece decorrer, mesmo assim, num ambiente de harmonia e respeito, até ao final. O final, confesso, chocou-me. Não esperava aquilo.
Recomendo a toda a gente que se interessa pela natureza humana numa situação limite.
14 em 20
Gotika
Diário pessoal do terror quotidiano.
domingo, 19 de outubro de 2025
Z For Zachariah / Os Últimos Na Terra (2015)
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Dar rosto a uma personagem com Inteligência Artificial - Reena, em "Lethes"
Um amigo começou a brincar com isto e eu fiquei tentada. O meu primeiro impulso foi dar rosto à personagem principal da série iniciada com "Nepenthos", Reena. As seguintes criações em Inteligência Artificial já são baseadas no livro "Lethes", mas a prompt foi feita de propósito para este fim e não corresponde a nenhuma cena em particular.
Como escritora, algo que me intriga muito é a imagem que os leitores fazem de uma personagem. O género literário implica uma descrição básica das características físicas e do tipo de roupa que a personagem usa, mas, tirando isso, nunca gostei de fornecer demasiados pormenores porque prefiro que o leitor crie uma imagem na sua mente, imagem essa que pode variar de acordo com a imaginação e a preferência, e é muito bom que assim seja.
Obviamente, eu também tenho uma imagem da personagem na minha cabeça. Foi um exercício muito interessante submeter essa imagem a diferentes modelos de IA e ver os resultados. Para variar, não vou precisar de descrever a personagem em palavras, basta olhar para as semelhanças entre os resultados para fazer uma ideia geral e até para adivinhar o que foi pedido na prompt.
Trabalhei com modelos de IA em versão gratuita ou Free Trial, que não permitem editar nem melhorar. Uma vez que gastei todos os poucos créditos oferecidos nas versões Free Trial, não posso fazer isto para mais personagens.
O mais importante, contudo, é que usei sempre a mesma prompt para poder comparar os resultados. Quase todos os modelos acertaram nas características principais, mas algumas versões não respeitaram inteiramente a prompt. Saliento que são versões Free Trial, não imagino o que as versões pagas conseguem fazer.
Higgsfield
Este foi o modelo que se aproximou mais da imagem na minha cabeça, nomeadamente a expressão facial descrita na prompt. Digamos que esta é uma Reena com um penteado dos anos 80 e alguns traços asiáticos, mas a expressão de inquietude está lá.
Fiquei muito impressionada por este modelo ter português perfeito de Portugal. Esta personagem é demasiado confiante para ser Reena, mas pelo menos fala em português. A animação da imagem é que não está muito bem feita mas, recordo, a versão Trial não permite melhorar.
Canva
O Canva não permite criar vídeos gratuitamente mas as imagens não são más. No entanto, nenhuma das imagens conseguiu interpretar a prompt.
OpenArt
Gostei muito dos resultados do OpenArt, mas não respeitam a prompt.
Aqui, Reena é loura.
Aqui, ignoraram completamente a expressão melancólica que a personagem devia ter segundo a prompt. Também não têm português, mas o resultado é este em inglês:
Acho que o OpenArt é um modelo extraordinário se eles tiverem o que a promt pede.
Creatify
Adoro o realismo. A personagem aqui representada daria uma boa Etha, outra personagem de "Lethes" e da série "Nepenthos" em geral, mas não é assim que eu imagino Reena. Por outro lado, os leitores estão à vontade para imaginarem o que quiserem.
Pollo
Tal como disse para o OpenArt, o resultado é muito bom se o modelo de IA tiver o que se pretende, o que não é o caso.
HeyGen
Este modelo tem potencial e tem português de Portugal, mas Reena tem um livro em cada mão e funde os dois livros num só. Isto é muito engraçado e típico da Inteligência Artificial, mas não respeitou a prompt. A personagem tem olhos azuis em vez de castanhos, e, apesar de expressiva e realista, está demasiado entusiasmada. Mais um resultado que pode ser bom se o modelo de IA tiver o que a prompt pede.
ChatGPT
Também não permite criar vídeos gratuitamente. Penso que o ChatGPT quis criar uma imagem mais clássica, quase como se fosse um retrato de Leonardo Da Vinci. É bonito, mas não é o que se pretende.
Gemini
Também não permite criar vídeos gratuitamente, mas colocou a legenda em português, em letra medieval, sem que eu lhe pedisse. E, a partir da mesma prompt que usei em todos, também capturou a expressão de inquietude da personagem. Numa comparação ChatGPT vs Gemini, diria mesmo que o Gemini compreendeu que a prompt se destinava a um imaginário de Fantasia literária e que o ChatGPT quis fazer uma coisa num contexto mais histórico.
Para mim, e neste caso em particular, o Gemini ganhou.
Nenhuma destas representações da personagem Reena corresponde à minha imagem dela na minha cabeça, o que é normal, uma vez que a Inteligência Artificial (ainda) não lê pensamentos, mas podiam ser as representações que os leitores fazem da personagem. Foi muito interessante ver várias interpretações das mesmíssimas palavras.
Acho mesmo que a única maneira de mostrar a Reena que existe na minha cabeça seria desenhá-la ou pintá-la, se eu tivesse talento para isso, mas como não tenho vou ficar pela escrita que é melhor.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Black Rose Burning - "The Fear Machine" (2025)
"The Fear Machine" is the fourth album from New York band Black Rose Burning, following "The Year Of The Scorpion", "The Wheel" and "Ad Astra". While the motto of the lyrics is still Love Won, Love Lost and Outer Space, this time there's a social/political commentary on current events. I especially like "Beautiful Disaster", which I myself would have named American Disaster but maybe that's not a smart idea in nowadays United States.
The album explores a sci-fi concept that has always intrigued vocalist George Grant, the existence of a secret, unseen machine that is powered by people's fear. (It's called inequality, George.)
"The Fear Machine" continues to provide the present-day post-punk loveliness we're used to, along with the charismatic voice of our friend George Grant.
I recommend: "Into The Black", "Beautiful Disaster", "Retro"
https://blackroseburning.bandcamp.com/album/the-fear-machine
domingo, 12 de outubro de 2025
Fevre Dream, de George R. R. Martin (1982)
Fiquei muito curiosa ao saber que George R. R. Martin tinha escrito uma história de vampiros. Já que não vou pegar de todo em "Guerra dos Tronos", foi também uma oportunidade de conhecer o estilo do autor.
No Mississípi, antes da Guerra da Secessão, Abner Marsh é um armador à beira da falência a quem o misterioso Joshua York faz uma proposta duvidosa: construir o barco mais rápido e mais luxuoso do rio. Em contrapartida, Joshua York quer ser o capitão e não quer responder a muitas perguntas. Abner Marsh é um homem de meia-idade que perdeu muitos barcos no Mississípi. A tentação de voltar a ter um barco majestoso que vença corridas é irrecusável, e é assim que aparece o Fevre Dream, barco baptizado a partir de um afluente do grande rio (o Fevre, que não é erro ortográfico mas que custa muito a escrever desta maneira).
Ia a um terço do livro quando me apercebi de que ainda não sabia qual era a história. Em contrapartida, nunca pensei ler tanta coisa sobre barcos, sobre partes de barcos como as pás e os conveses, sobre corridas de barcos, sobre o negócio dos barcos, sobre a pintura dos barcos, sobre a velocidade dos barcos. Isto só não foi inteiramente chato porque vamos tendo cenas de um clã de vampiros liderados por Damon Julian (Olá "Diários do Vampiro"!), ainda não relacionadas com o argumento principal, em que os vampiros fazem vampiragens sangrentas. A história propriamente dita só começa a meio do livro, quando percebemos que Joshua York aperfeiçoou uma bebida de álcool e sangue que elimina a necessidade de matar (um pouco o conceito de "True Blood") e deseja fazer do Fevre Dream um local de paz e harmonia entre vampiros e humanos, ideia que Damon Julian abomina veementemente por uma questão de princípio.
Vou já ao ponto, os vampiros são Riceanos. Depois de Anne Rice, é difícil fugir à influência. As cenas entre vampiros pareceram-me muito familiares e "confortáveis" por causa disso. Damon Julian lembrou-me Armand, calculista e frio, nos dias do Théâtre des Vampires. Logo, senti-me em casa. Tirando esta semelhança aparente, estes vampiros de George R. R. Martin são maniqueístas, não são o poço de profundidade dos vampiros de Anne Rice. Joshua York é o vampiro bom, Damon Julian é o vampiro mau. O conflito é Homem vs Homem (leia-se vampiro contra vampiro), enquanto que o conflito em Anne Rice é Homem vs Ele Próprio. O tema de "Fevre Dream" é a luta do Bem contra o Mal, não existe a introspecção existencial que encontramos em Anne Rice. Não estou a dizer que devesse existir, estou apenas a apontar as diferenças.
Outro detalhe que achei muito interessante neste universo é que os vampiros não são transformados, são nascidos de pai e mãe vampiros de uma forma mais ou menos "tradicional". Achei muito interessante porque aqui Martin afasta-se do género do Terror clássico em que os vampiros são criados por meios sobrenaturais e aproxima-se do terreno da Fantasia com a invenção de uma nova espécie. De igual modo, e apesar de possuírem a lendária auto-regeneração, a capacidade de hipnotizar e uma força sobre-humana, estes vampiros também podem ser mortos de maneiras normais (embora sejam difíceis de matar).
Mas o protagonista da história é mesmo Abner Marsh, a quem eu descreveria como um paz-de-alma e boa pessoa, que de repente se vê no meio de uma guerra de vampiros. Abner Marsh não é exactamente o tipo de personagem que me cative, especialmente no primeiro terço do livro em que só se fala de barcos. Ficou tudo muito mais interessante quando comecei a imaginar George R. R. Martin neste papel. É que assenta como uma luva. Lá para os dois terços do livro é impossível não torcer por ele, mas demorou-me a estabelecer empatia.
Como disse acima, "Fevre Dream" pode não ter a profundidade psicológica de Anne Rice, mas apreciei a componente filosófica que também se encontra nas Vampire Chronicles. Damon Julian, o vampiro mau, faz paralelismos entre o vampirismo e a escravatura: como é que acusam os vampiros de cometerem crimes quando os próprios seres humanos se exploram uns aos outros? E pergunta a Abner Marsh, um grande comilão: qual é a diferença entre os seres humanos e o gado? Perguntou a essa vaca que acabou de comer se ela concordava em ser comida? Devo dizer que não deixo de compreender a posição de Damon Julian, e este foi o momento mais moralmente cinzento do livro, que de novo me remeteu a Anne Rice.
Aconselho "Fevre Dream" a todos os amantes de vampiros, uma história de escolhas e coragem e de vampiros tendencialmente Riceanos. É preciso é ultrapassar um terço do livro sobre barcos e o Mississípi, e descrições de barcos e do Mississípi. Mas, por outro lado, para quem quiser conhecer melhor este Mississípi desaparecido, também é aqui.
terça-feira, 7 de outubro de 2025
American Carnage / Massacre Americano (2022)
Ao contrário do que costuma acontecer, não vi este filme a pensar que ia ser de terror. A sinopse informa que é uma história sobre imigrantes nos Estados Unidos que recebem uma ordem de deportação que inclui os seus filhos nascidos no país, isto é, que já são americanos. Julguei que seria um drama ou documentário, principalmente quando o filme começou com imagens reais de declarações anti-imigração de Donald Trump, outros políticos com ideias semelhantes, e até de Kamala Harris (em que não se vê o contexto em que ela diz "Não venham"). Na verdade, foi Donald Trump quem proferiu o termo "american carnage" no discurso inaugural como presidente. Presumi que carnage/massacre fosse uma metáfora. Qual não foi a minha surpresa onde o filme foi parar!
Tal como diz a sinopse, o enredo é despoletado por um Governador que manda prender todos os imigrantes ilegais em instalações governamentais no intuito de os deportar, mas não só a eles como também aos seus filhos já nascidos no país, e americanos de pleno direito, acusando-os de "cumplicidade na imigração ilegal" dos pais. JP e Lily são dois irmãos nesta situação a quem é proposto participarem num programa de cuidado a idosos, no fim do qual poderiam tirar a mãe da detenção.
JP e Lily são entretanto separados, mas JP é efectivamente levado para um lar de idosos junto com outros jovens igualmente detidos. Aqui algumas coisas parecem muito estranhas, todos os idosos estão quase em estado vegetativo ou incapazes de falar, e, como um dos jovens diz, os outros empregados do lar parecem tratá-los mais como gado do que como pessoas. Um dos "voluntários" do programa tenta inclusivamente fugir, é apanhado, mas nunca mais é visto pelos outros. JP e os companheiros desconfiam de que algo se passa em segredo e começam a investigar, mas nem eles poderiam imaginar o que vão descobrir.
Não gosto de filmes que exploram tragédias reais como argumento de terror, como um que vi há pouco tempo, e do qual nem vou dizer o nome, que explorava os crimes da família Manson como se fossem um slasher qualquer para adolescentes. Já basta o horror do que aconteceu, é de muito mau gosto transformar a realidade numa suposta ficção que desrespeita a memória das vítimas. Quando vi "American Carnage" levar o rumo de filme de terror tive receio de que isso acontecesse, mas depois a coisa tornou-se tão delirante, tão exagerada, tão digna de filme B, que os problemas dos imigrantes ficaram muito lá para trás. Existe claramente um contexto de crítica social e política, mas a dada altura o importante é o enredo de terror, e digo já que algumas imagens não são para pessoas sensíveis. Uma das cenas conseguiu arrepiar-me até a mim, e isto ainda antes de sabermos ao certo o que se passava.
"American Carnage" começa como drama sério de crítica política e torna-se num filme de terror completamente alucinado, onde não falta uma componente de humor que nos faz rir nas situações em que menos esperávamos. Por isto tudo, "American Carnage" não vai ser para toda a gente, e desconfio que este é daqueles de que se gosta ou se odeia.
14 em 20
domingo, 5 de outubro de 2025
What We Do In The Shadows (2019–2024)
"What We Do In The Shadows" é uma série de humor com vampiros e para amantes de vampiros.
Nandor, Laszlo e Nadja são três vampiros centenários imigrados em Staten Island que não sabem viver no mundo moderno sem a ajuda de Guillermo, servente de Nandor (por servente/criado/assistente entenda-se familiar). Guillermo aceita ser tratado como inferior porque tem o grande sonho de ser vampiro desde que viu Antonio Banderas como Armand, o seu ideal de vampiro hispânico.
Tal como "The Office", "What We Do In The Shadows" é apresentado como um documentário, e não inocentemente, uma vez que há aqui actores de "The Office". A princípio os vampiros podem ser irritantes, imbecis e superficiais, mas quando os conhecemos melhor tornam-se personagens inesquecíveis. E até podemos pensar que Guillermo parece patético, e ele próprio se sente assim, até descobrir que é descendente dos Van Helsing e que também é um caçador de vampiros. A primeira temporada serve para nos situar no universo da série e nas personalidades destes vampiros tarados por sexo e estagnados no tempo, mas é a partir da segunda que o enredo começa a aquecer e que ficamos viciados.
Uma das originalidades da série é a inclusão de um vampiro energético ou vampiro de energia, Colin Robinson, que se alimenta sugando a energia das pessoas, e até de outros vampiros, até perderem todo o gosto pela vida. Colin Robinson trabalha num escritório, o melhor território de caça para este tipo de vampiro. Como ele próprio diz às câmaras, toda a gente conhece um vampiro energético. Colin Robinson é aquele tipo do trabalho que vive para chatear a cabeça aos outros, o primeiro a chegar e o último a sair, que não faz nada mas está sempre lá a alimentar-se dos desgraçados que não podem fugir dele. O que não se deve confundir com vampiro emocional. A certa altura Colin Robinson confronta-se com Evie, uma vampira emocional que se alimenta da compaixão alheia. De início ainda pensam em estabelecer uma parceria, mas Evie é tão esgotante que nem Colin a aguenta.
Uma das coisas mais hilariantes na série é que sempre que Colin entra em cena nos provoca a sensação de enfado que ele está efectivamente a querer provocar, e, mesmo assim, de certa maneira inexplicável, Colin torna-se um personagem preferido.
"What We Do In The Shadows" contém referências a todos os universos vampíricos da literatura, do cinema e da televisão e conta com cameos de muitos actores que já interpretaram vampiros famosos. Não posso elaborar mais por causa dos spoilers, mas Tilda Swinton, Wesley Snipes e Alexander Skarsgård aparecem aqui a fazer exactamente esses papéis em que estão a pensar. Já "Rob não quis vir, Kiefer queria mas não pôde, e Tom e Brad não estavam interessados". (Mas será que chamaram o Antonio?) Delicioso. Os amantes de vampiros não podem perder esta série!
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez para pessoas normais, obrigatório para amantes de vampiros
PARA QUEM GOSTA DE: vampiros, vampiros, vampiros
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Arrábida - Reserva da Biosfera da UNESCO
A Arrábida foi recentemente classificada como Reserva da Biosfera da UNESCO. Segundo o comunicado oficial, "a região alberga mais de 1400 espécies vegetais (40% da flora nacional), incluindo 70 espécies raras e endémicas, bem como cerca de 200 espécies de vertebrados e mais de 2000 espécies marinhas".
Aproveito a oportunidade para relembrar "Orquídeas Silvestres, Arrábida (Guia de Campo)" de Armando Frazão, um livro que aprofunda a riqueza das espécies de orquídeas nativas da serra. Já tive o livro na mão e recomendo. Além das fotografias minuciosas e deslumbrantes, o papel é de grande qualidade, macio e brilhante, e o tamanho do livro permite levá-lo para o terreno. Destaco ainda o texto em português e inglês, científico e exacto mas pensado para ser acessível a todos, e a excelente composição gráfica.
"Orquídeas Silvestres, Arrábida (Guia de Campo)" é um livro para apaixonados por orquídeas, pela Natureza e pela região da Arrábida em geral, e faz um óptimo presente didáctico para miúdos e graúdos.
terça-feira, 30 de setembro de 2025
Crippling Alcoholism - "Camgirl" (2025)
This release was recommended by Bandcamp.
Crippling Alcoholism are described with the tags "rock", "goth" and "noise rock", but I don't think it does them justice. In the whole, the sound is more innovative than just a bunch of tags, which is good. The lyrics are both violent and melancholy in an existential way, and even though the music is too harsh for my liking, it has gripped me. I listened to the first couple of singles and I immediately followed the band.
After hearing the entire album, I'd say that it sounds like it was written by a gansta rapper with goth tendencies (but ashamed of them). Both music and lyrics sound like a very weird mix of Birthday Party, O.Children and Body Count, and a pinch of grunge at times. I would be delighted if Crippling Alcoholism decided to embrace the goth tendencies with a full heart, but, then again, of course I would.
I recommend listening to "Mr. Sentimental" and "LADIES' NIGHT (feat. Luxury Skin)".
https://cripplingalcoholism.bandcamp.com/album/camgirl
domingo, 28 de setembro de 2025
The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol [segunda temporada]
[não contém spoilers relevantes]
Em França, Daryl e Isabelle continuam a proteger Laurent de uma dupla ameaça. Carol descobre o paradeiro de Daryl e atravessa o Atlântico de avioneta para ir ter com ele.
Vou ser muito honesta, nunca pensei que Daryl Dixon em França resultasse. A primeira temporada foi surpreendente e, na minha opinião, melhor do que o original estava a ser há muitos anos. Esta segunda temporada não foi tão boa como a primeira (especialmente por causa do enredo de Carol) mas aconteceram muitas coisas interessantes.
Os dois primeiros episódios são mauzinhos. O primeiro episódio é tão mauzinho que me lembrou o pior de "Fear The Walking Dead", que nas últimas temporadas eu só via para rir. O problema era pôr Carol em França, uma vez que era suposto que Carol estivesse nesta spin-off desde o início, mas não foi possível. E a maneira como isto é feito é risível. Carol anda à procura de Daryl. Em questão de dias, encontra quem lhe diga que Daryl foi levado para França e logo de seguida descobre um homem que tem um avião. Este tipo, Ash, não só tem um avião como tem combustível com tanta fartura que se dá ao luxo de dar uma volta de avião de vez em quando, em lazer. Sabemos mais tarde que já passaram 12 anos desde o apocalipse e que Ash tem andado de avião este tempo todo sem que apareça ninguém para o incomodar, num mundo em que as pessoas se matam por meia dúzia de rabanetes...
Mau começo
Carol tem de persuadir Ash a dar-lhe boleia para França, e para isso faz uma coisa terrível. Quando sabe que Ash ainda está a fazer o luto de um filho que perdeu, diz-lhe que a sua filha Sofia estava em França quando o apocalipse aconteceu e que poderá ainda estar viva. Nós já sabemos que Carol mente que se farta, mas uma mãe usar a memória de uma filha morta para manipular alguém, sem ser por razões de vida ou morte, é de uma mãe que não sofre com a memória. Mais tarde, Carol diz que usou a mentira para ser "convincente", mas acho que nem a própria actriz Melissa McBride ficou convencida porque não conseguiu convencer-nos. Isto foi muito mal feito. Por outro lado, e isto já foi mais bem feito, durante esta temporada Carol tem de confrontar-se com o trauma de perder Sofia. Pode parecer tarde, tantos anos passados, mas faz sentido. Carol é o tipo de pessoa que enfia a cabeça na areia em vez de lidar com os problemas e que, de certa forma, mente também a si própria. É natural que o trauma aparecesse para a assombrar mais tarde ou mais cedo. Eu admito que isto me trouxe lágrimas aos olhos. A morte de Sofia foi um dos momentos mais chocantes de "The Walking Dead" e nunca houve oportunidade de lhe fazer o luto como devia ser. Gostei muito que esta temporada tivesse dedicado tempo dramático ao assunto. Carol está a tornar-se uma personagem muito antipática, era altura de lhe devolver a humanidade que foi perdendo.
Mas de volta à acção, Carol e Ash preparam-se para partir. A minha questão foi: como é que aquele chaço velho vai atravessar o Atlântico? Não fui a única a questionar-se e alguém até foi perguntar ao ChatGPT se a viagem seria possível. O ChatGPT é mais optimista do que nós humanos e responde "possível, mas improvável". Nós humanos sabemos o que o ChatGPT não sabe, que tudo o que pode correr mal tende a correr mal. Ash e Carol só fazem uma paragem na Gronelândia (onde acontecem outras coisas interessantes, se bem que um bocadinho absurdas) quando deviam ter parado mais vezes para reabastecer, e isto sem contar com o pormenor de que não fazem ideia de onde reabastecer nem do que os espera. Esta viagem de avião podia ter sido uma aventura épica para ser credível, mas aqui até estou disposta a dar um grande desconto: não era essa a história, era preciso levar Carol para França o mais depressa possível, foram tomadas liberdades. A questão é mais: trazer Carol para a história desta maneira valeu a pena?
Lamento muito dizer isto mas acho que a história estava a correr melhor sem a Carol. Não sei se o problema foi o enredo ter sido planeado para Daryl sozinho (porque Melissa McBride não pôde estar no início) e tiveram de meter a Carol às três pancadas. Pareceu-me tudo muito forçado, começando no momento em que Carol decide ir para França só porque um marmanjo qualquer lhe disse que Daryl estava lá. Tudo o que acontece a partir daí foi "martelado" e conveniente. Basta dizer que Carol encontra Daryl em questão de dias, num continente diferente, durante o apocalipse zombie. Isto foi mauzinho, mas a série melhora bastante passando estes dois primeiros episódios.
Horrores do mundo real
Em França, o exército Pouvoir des Vivants continua a perseguir Laurent, um rapaz considerado por um movimento religioso, a Union de l’Espoir, como um novo messias. Nesta temporada descobrimos que os dirigentes da Union de l’Espoir também não são bons. Laurent é considerado um milagre porque nasceu de uma mãe zombie e é julgado imune ao vírus zombie, não por qualquer motivo científico mas apenas pela fé cega. Na temporada anterior assistimos ao nascimento. A mãe morreu no parto, transformou-se, e o bebé foi-lhe retirado, nada mais que isto. Os líderes da Union de l’Espoir querem submeter Laurent a uma cerimónia onde é mordido por um zombie para provar que é imune e "enviado por Deus".
(Esta ideia já tinha sido abordada em "Fear The Walking Dead", em que o líder de uma comunidade era reverenciado por ter sobrevivido à dentada de um zombie, mas afinal não era uma dentada de zombie e era tudo uma falácia alimentada pelo próprio para "manter a ordem" no caos.)
Ou seja, Daryl e Isabelle passaram a primeira temporada a levar Laurent para uma armadilha. Agora estão todos dentro da armadilha e o Pouvoir des Vivants também anda atrás deles. Nesta temporada compreendemos melhor as razões do Pouvoir des Vivants, mas se uns são fanáticos religiosos os outros são fascistas. São todos maus e todos querem, no fundo, manter o poder sobre os seguidores. Até há algumas "bocas" políticas sobre a realidade actual que não costumavam aparecer em "The Walking Dead". Gostei, não estava à espera.
Também gostei dos paralelismos entre o Pouvoir des Vivants e os nazis, totalmente explícitos nesta temporada. Há uma cena arrepiante em que os prisioneiros são separados e transportados em camiões diferentes consoante o seu "valor" e o seu "fim". O cenário de França ajuda a invocar estes fantasmas.
Dépaysant
Por falar em cenário de França, uma das palavras de que Daryl gosta muito é "dépaysant", que significa algo como mudança de ares que faz uma pessoa ver as coisas de maneira diferente. Este spin-off teve esse efeito positivo no universo The Walking Dead. Continuo a dizer que "Daryl Dixon" nem precisava de enredo, a gente via só pelos zombies e pelos cenários. Os cenários são tão bons, mas tão bons, que somos levados a perdoar os problemas de realismo como a viagem de Carol. Nesta temporada destaco as cenas no Louvre, que foram mesmo filmadas no Louvre (fui confirmar), e as cenas no Mont Saint Michel e nas catacumbas. Não é todos os dias que vemos zombies no Louvre. Genet, a líder do Pouvoir des Vivants, e sua braço-direito Sabine (que aqui, coitada, tem cara de Estaline, e não inocentemente) eram empregadas de limpeza no museu quando aconteceu o apocalipse. Isto permite-nos ver mais cenas do início do apocalipse, e adorei! Os primeiros zombies, o primeiro pânico, a sociedade a colapsar. O início foi sempre a minha parte preferida e, de certa forma, tenho apreciado ver poucas cenas polvilhadas pelos diferentes spin-offs para não perder o impacto. A Mona Lisa também se torna, de certa maneira, uma personagem, um símbolo de poder. O interesse deste spin-off em França (ou na Europa em geral) sempre foi abordar como diferentes culturas se adaptavam ao apocalipse zombie. Tenho a certeza de que esta interpretação está cheia de clichés e de que nada disto aconteceria assim na vida real, mas admito que está bem pensado da perspectiva de alguém de fora. Eu fiquei muito nervosa com o perigo de acontecer alguma coisa à Mona Lisa.
Como já disse na análise à primeira temporada, a opção de colocar Daryl em França parecia descabida mas funcionou pelo contraste. Daryl caiu de pára-quedas no ambiente cultural mais sofisticado que ele já tinha visto fora da televisão, sem falar uma palavra de francês, e tem-se aguentado com muito estilo e sem deixar de ser ele próprio. Isto revela características de Daryl que não lhe conhecíamos porque nunca tinha sido preciso mostrá-las: abertura de espírito, adaptabilidade, e um à-vontade que era muitas vezes ofuscado por outros protagonistas mais espalhafatosos. Esta spin-off está a fazer justiça a Daryl Dixon.
Por outro lado, ter Daryl e Carol em França deu azo a momentos de humor muito bem conseguidos e até patuscos, como Daryl a ensinar-lhe francês ou a cara de Carol quando entrou no Demimonde em Paris. O Demimonde é um bar que podia existir nos nossos dias, com dançarinos exóticos, travestis e temas bondage (e que se imagina muito mais excessivo depois do apocalipse zombie, mas para manter a série acessível ao público mais jovem não há verdadeira nudez nem nada do que poderia haver). Carol e Daryl vêm de um meio culturalmente limitado e puritano. Nenhum deles fala no assunto, mas a cara de Carol diz tudo.
Os melhores zombies de Hollywood...
"Daryl Dixon" não desilude neste campo. Os zombies continuam a ser do melhor que há. Destaco os zombies da Gronelândia e do Túnel da Mancha, onde vemos zombies bioluminescentes, fantásticos, devido a um tipo de fungo.
Os super-zombies do Pouvoir des Vivants também estão mais aperfeiçoados. Afinal sempre andavam a tentar criar soldados zombies. Ainda não conseguiram controlá-los (e aposto que nunca irão), mas o soro das experiências está a torná-los mais estáveis e perigosos. Nesta segunda temporada os super-zombies já não explodem, como acontecia na primeira, embora continuem a matar-se uns aos outros, o que não dá grande exército.
Agora que já vi "The Walking Dead: The Ones Who Live" e "The Walking Dead: World Beyond", a minha teoria de que a CRM (República Cívica) e os cientistas franceses estavam a trabalhar em conjunto ainda faz mais sentido. O universo The Walking Dead tem alimentado este enredo às pinguinhas e, devo admitir, até ficaria muito surpreendida se tudo batesse certo ao longo das diferentes spin-offs, mas a verdade é que pelo menos não se têm contradito.
Se há uma coisa que tem sido topo de gama e consistente na franchise toda, desde o primeiro episódio, é a qualidade dos zombies. Se há outra coisa consistente é a estupidez selectiva dos personagens, que os coloca em maior perigo do que deviam correr.
... e a estupidez selectiva
"The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol" volta a ter um momento de extrema estupidez como já não víamos há muito tempo. Ash fica preso num carro cercado de zombies. Nestes casos, o que Daryl e Carol costumam fazer é atrair os zombies para outro sítio para resgatarem a pessoa. Aqui, estupidamente, enfiam-se no carro também. Ficam os três presos dentro do carro, cercados por zombies. Isto é um erro de iniciantes do apocalipse que Carol e Daryl já não cometeriam. Mas a série quis mostrar um ambiente claustrofóbico e tenso de dentro do carro e achou boa ideia sacrificar a inteligência de Daryl e Carol. Nem era preciso. Ash é um bocadinho iniciante, servia para fazer a cena, e ninguém acredita que aconteça alguma coisa a Daryl e Carol devido ao plot armour. Então para que é que aquilo serviu? Porque é que esta série gosta tanto de se auto-sabotar? Não percebo. Este era o tipo de disparate totalmente evitável e desnecessário.
Linha temporal
Em "The Walking Dead: Daryl Dixon - The Book of Carol", Carol diz que Sofia morreu há 12 anos. Isto deixou-me um pouco perplexa porque tinha a ideia de que já tinham passado pelo menos uns 15 anos desde o apocalipse. Em "The Walking Dead: Dead City", o filho de Maggie já tem 15 ou 16 anos, pelo menos, e Hershel já nasceu pelo menos um ano depois do apocalipse. Isto pode significar que "The Walking Dead: Dead City" se passa mais à frente do que "Daryl Dixon", mas vou deixar esta nota aqui para o caso de ser preciso confirmar.
Geralmente os últimos episódios não são brilhantes, mas neste caso destaco o último episódio como um dos melhores. O começo de "Daryl Dixon - The Book of Carol" foi atabalhoado, sim, e a série foi caindo em alguns maus hábitos que a primeira temporada conseguiu disfarçar melhor (como a chegada de Daryl a França, que também não é de recomendar), mas foi melhorando ao longo dos episódios e o final conseguiu resolver o enredo de modo muito satisfatório e abrir espaço para novas aventuras na terceira temporada. Continuo a dizer que o ponto forte desta spin-off foi a mudança para um cenário completamente diferente (o tal dépaysant) e que ia ser muito divertido ver o apocalipse zombie noutros países da Europa e do mundo.
Nem é preciso mais nada. "Daryl Dixon" já é a minha spin-off preferida.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez
PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies
terça-feira, 23 de setembro de 2025
We Have Always Lived In The Castle (2018)
Tendo em conta que esta é uma adaptação do romance homónimo de Shirley Jackson, a mesma escritora de "The Haunting of Hill House" (brilhantemente imortalizado no cinema como "The Haunting"), é quase estranho que "We Have Always Lived In The Castle" não contenha qualquer elemento sobrenatural ou fantasmagórico. Há outra espécie de terror, a que eu chamo terror quotidiano (ver ali acima na descrição do blog) que se prende com o mal que as pessoas fazem umas às outras. Sim, também existe uma mansão odiada pelas pessoas da vila mais próxima ("the castle"), mas porque os seus donos, os Blackwood, sempre foram muito ricos e snobs.
Para piorar a situação, há seis anos, na narrativa, um homicídio com arsénico matou o patriarca da família, a sua esposa e a sua cunhada. Constance Blackwood, a filha mais velha, chegou a ser acusada em tribunal, mas foi ilibada. Tanto Constance como a sua irmão mais nova Mary Catherine (conhecida como Merricat) têm vasto conhecimento das plantas venenosas que crescem no enorme jardim que rodeia a sua mansão, o que leva as pessoas da vila a chamarem-lhes bruxas também, embora o arsénico tenha sido comprado para matar ratos e não tenha provindo da propriedade Blackwood.
Passados estes anos, Merricat, Constance e o tio Julian (irmão do pai de ambas) vivem quase isolados na mansão de família. Apenas Merricat, uma jovem de 18 anos, tem por missão ir à vila todas as semanas para comprar comida, o que ela nunca faz sem deixar feitiços de protecção (inventados por ela), como enterrar moedas de prata e bonecas e pregar livros às árvores. Constance vive em negação, sempre a sorrir, sempre simpática e agradável, sempre a cozinhar em trajes de dona de casa dos anos 50 excepto quando se veste a rigor para o jantar na sala. O tio Julian, que também foi envenenado mas sobreviveu, anda de cadeira de rodas e tem as capacidades cognitivas debilitadas, possivelmente devido ao envenenamento mas nunca é dito explicitamente. De todos, o tio Julian é o mais enervante. O "trabalho da sua vida" é escrever um livro sobre a tragédia que vitimou a família, e repete incessantemente as frases de abertura de cada capítulo (já vai em 44) sem nunca escrever uma linha, e ainda diz que lhe falta tempo para escrever, um homem que não faz outra coisa na vida. Merricat, por seu lado, gosta de debitar, à mesa, os seus conhecimentos sobre plantas venenosas e os efeitos letais de cada veneno. Convenhamos, é uma casa de doidos.
Esta rotina é ainda mais perturbada quando recebem a visita do primo Charles Blackwood, um galã que chega com o objectivo claro de se apossar do dinheiro da família sob a desculpa de vir "ajudar" (nos anos 60 só os homens é que supostamente sabiam lidar com dinheiro...) e começa imediatamente por cortejar Constance, que se encanta por ele. Merricat tenta por tudo afastá-lo da irmã, a quem ela adora, e da mansão, tentando fazer "feitiços" ainda mais fortes, mas sem sucesso.
Apesar de ser um interesseiro, Charles parece a única pessoa normal nesta casa, a que o próprio acaba por chamar "manicómio". É Merricat, que parecia uma vítima indefesa no começo da história, quem depressa se prova a má da fita.
O filme (ao contrário do livro) sugere fortemente que tanto Constance como Merricat foram vítimas de abusos por parte do pai, mas vítima ou não Merricat comporta-se agora como uma pessoa tóxica, tentando por tudo isolar a irmã, com quem tem uma relação de co-dependência. Tudo indica que Merricat é profundamente desequilibrada, ou autista, ou esquizofrénica, ou mesmo psicopata declarada, como se verá no final. É ela quem provoca o acontecimento que vai despertar o ódio latente nas pessoas da vila e que quase termina em linchamento. Merricat, lobo em pele de cordeiro, consegue por fim "guardar" a irmã só para si, perante a passividade de Constance que não reconhece o poder manipulativo da irmã sob a desculpa de "protecção".
Outras pessoas vão tirar diferentes conclusões deste drama fortemente psicológico, mas para mim esta foi a principal (ajudada por outros desenvolvimentos que não vou revelar).
Aliás, a personagem Merricat é tão desequilibrada que algo que o tio Julian diz me deixou confusa. O tio Julian repete incessantemente o que se passou na noite do homicídio, e, embora desorganizado, nunca muda de versão. A certa altura ele diz que Merricat morreu num orfanato enquanto Constante estava a ser julgada. O próprio Charles o contradiz: "Mas ela está aqui sentada!" O assunto nunca mais é abordado, mas isto leva-me a especular se esta Merricat não será uma intrusa, uma impostora, não uma bruxa má com poderes sobrenaturais mas uma daquelas pessoas que se infiltram junto de gente fragilizada e fácil de controlar. Isso explicaria muitos dos seus actos. Por outro lado, pode bem ser uma invenção da mente transtornada do tio Julian.
Não li o livro e tenho curiosidade quanto a isto, mas não me apetece nada fazê-lo porque li "The Haunting of Hill House" e não fiquei maravilhada com a escrita da autora nem esclarecida quanto ao que tencionava descobrir.
"We Have Always Lived In The Castle" vale pelo mistério, pela atmosfera inquietante de perfeita loucura disfarçada pela familiaridade de uma harmonia doméstica artificial, pelos cenários e ambiente dos anos 60 cuidadosamente recriados, pela sensação de estranheza e desastre iminente onde a história nos leva. Pode não ser a adaptação mais exacta do romance original, mas é um filme excelente que nos perturba e nos faz pensar, e recomendo vivamente.
17 em 20