domingo, 22 de dezembro de 2024

The Walking Dead: The Ones Who Live (2024)

 

De todas as spin-offs que saíram de “The Walking Dead”, esta era sem dúvida a mais aguardada: o que aconteceu a Rick quando A Senhora da Lixeira/Jadis/Anne o levou de helicóptero, e a reunião com Michonne, que deixou tudo para o ir procurar. De certa forma, estes seis episódios são o verdadeiro final da série original, a conclusão da história daquele que foi o protagonista desde o primeiro momento, Rick Grimes.
Os fãs já desconfiavam, pelo que nem é um spoiler. Rick foi levado por Jadis para a CRM, que alguém traduziu melhor do que eu como Exército da República Cívica, o que não significa nada porque não é uma república e muito menos cívica.
Comecemos já por aí. Não é preciso ver “The Walking Dead: World Beyond” (a spin-off “adolescente” de “The Walking Dead”) para compreendermos a CRM, mas quem viu já ficou perfeitamente elucidado quando a CRM destruiu toda a cidade de Omaha, uma cidade aliada, e o seu Campus Universitário cheio de jovens. Em “The Ones Who Live” ficamos a perceber a ideologia subjacente a esta chacina: em primeiro lugar, este exército tem a sua base em Filadélfia, cidade que sobreviveu ao apocalipse e que é supostamente a tal República Cívica mas na verdade é a ditadura militar da CRM (Civic Republic Military). Segundo a CRM, a sobrevivência e segurança da cidade dependem do maior segredo em torno dela, pelo que quem lá entra já não é autorizado a sair e quem tenta fugir é abatido. Isto explica, finalmente, porque é que Rick nunca conseguiu regressar a Alexandria apesar das muitas tentativas de fuga. Rick não foi apenas levado, mas raptado e mantido em cativeiro, forçado a tornar-se um cidadão e, posteriormente, soldado da CRM. Jadis conseguiu que a CRM o aceitasse classificando-o como um “B”, isto é, um seguidor. Os “As”, os líderes, os que pensam pela própria cabeça, são abatidos, à semelhança da ideologia dos Khmer Rouge.
Mas a CMR é capaz de atrocidades piores, como já se viu em “World Beyond”. A princípio aliados de Omaha e Detroit, sem que estas duas cidades conhecessem a base da CRM, o exército decide pura e simplesmente bombardear Omaha, e Detroit está na calha a seguir. Porque é que a CRM bombardeia os seus aliados? Porque tem uma ideologia, a que só posso chamar nazi, de terra queimada: destruir o mundo velho para criar o novo, com pessoas submissas, que não se insurjam, que não questionem, dispostas a abdicar da liberdade em troca de segurança. A missão da CRM é, efectivamente, destruir todas as comunidades do país, e, a acreditar no que vimos em “The Walking Dead: Daryl Dixon”, em que tudo indica que a CRM tem ligações à Europa, talvez até do mundo (o que é confirmado aqui em “The Ones Who Live”). O mais grave é que a CRM, organização que herdou o poderio militar do exército dos Estados Unidos, tem à sua disposição os meios para o fazer. Nunca “The Walking Dead” conheceu um adversário tão temível e perigoso. Disto tudo, conseguimos perceber que “The Ones Who Live” faz a ligação com outras spin-offs e a série original.

A “escrita Gimple”…
Infelizmente, tenho de confessar que de entre os spin-offs do pós-Walking Dead, “The Walking Dead: Daryl Dixon”, “The Walking Dead: Dead City” e até “Tales of the Walking Dead”, “The Ones Who Live” foi do que gostei menos, e, lamento dizê-lo, porque foi o que me recordou mais dos problemas narrativos de “Fear The Walking Dead”. “Fear The Walking Dead” tornou-se uma coisa tão absurda que eu já só via para me rir e para ler as críticas a gozar com a série e rir mais. Em comum a “The Ones Who Live” e “Fear The Walking Dead” está a escrita de Scott Gimple, o mesmo que conseguiu arruinar a série original antes que Angela Kang tomasse as rédeas em modo de “controlo de danos” e tentasse endireitar o enredo e as personagens na medida do possível.
Em “The Ones Who Live” nota-se perfeitamente a “escrita Gimple”. Por exemplo, no segundo episódio, que eu detestei completamente, Michonne está à procura de Rick e encontra uma comunidade. Uma dúzia de pessoas preferem acompanhá-la. Michonne torna-se próxima de alguns destes personagens, e é suposto que os achemos simpáticos, mas 10 minutos depois estão todos mortos e nem conseguimos decorar-lhes os nomes quanto mais simpatizar com eles. Antes disso, porém, avisam Michonne de que existe uma horda de zombies de 5km de largura entre ela e o seu destino, e que ela devia antes esperar que a horda se deslocasse. Mas Michonne tem pressa e decide romper por entre esta horda descomunal sozinha, a cavalo, no que seria o seu suicídio e o “suicídio” do cavalo. Nunca perdoarei que tivessem posto Michonne a fazer esta estupidez. Mais tarde, à medida que se aproximam da CRM, Michonne e os viajantes são bombardeados com gás de cloro. Morrem todos, menos Michonne e um único sobrevivente, e ambos passam um ano inteiro num centro comercial a recuperar das queimaduras nos pulmões e na garganta, apenas com um tanque de oxigénio. Nem sei se isto é possível, mas na “escrita Gimple” tudo é possível, até uma espécie de radioactividade selectiva que só afecta os personagens quando dá jeito ao enredo (não estou a inventar, é só ver “Fear The Walking Dead”). Mais tarde ainda, no mesmo episódio, que já vai atribulado, Michonne chega ao fim das pistas que seguia em busca de Rick, fica desanimada, chora, decide voltar para casa. Já no caminho para casa, por coincidência, dá de caras com ele. É mesmo assim, Michone não encontra Rick, encontram-se por acaso. Ora, eu acho que se podia ter arranjado uma histórinha qualquer com os personagens desta comunidade, em que eles ajudassem Michonne a combater os zombies e a descobrir pistas que a levassem a Rick, sem que ela passasse um ano enfiada num centro comercial e sem que os dois se encontrassem só porque o enredo assim ditava. Péssimo, péssimo episódio.
Mas passemos à frente. Sem cometer muitos spoilers, direi apenas que Rick não quer regressar com Michonne porque isso faria com que a CRM o seguisse e destruísse Alexandria, e Rick acredita que tem de ficar para trás para o impedir. Na verdade, Rick está a ser chantageado por Jadis, que pertence à polícia militar como sabemos de “World Beyond”, e que tem as suas razões para que ele fique. Se Rick fugir, Jadis revelará a localização de Alexandria. Por outro lado, depois de anos de cativeiro traumático, Rick acaba por ser convencido por Okafor, um oficial da CRM, de que conseguirão mudar a ideologia da CRM por dentro. É isto que Rick pretende fazer: ficar, proteger Alexandria e trabalhar para mudar a CRM. Obviamente, Michonne não anda à procura dele há uns dois anos para o deixar ficar, e atira-se com ele de um helicóptero abaixo, sem pára-quedas, em mais um “momento Gimple”. Foi uma sorte terem caído na água porque não se notou que Michonne estivesse a prestar atenção a esse “pormenor”.

… e a boa escrita…
Chegamos ao meu episódio preferido da série, escrito pela própria Danai Gurira (Michonne). Não fazia ideia de que Danai Gurira escrevesse para teatro e televisão, mas depois disto teria sido melhor que ela tivesse escrito a série toda. Esquecendo a coisa do helicóptero, que é melhor não lembrar, Rick e Michonne encontram refúgio num edifício que parece ter escapado às pilhagens do apocalipse e que ainda tem electricidade e água corrente (mais um momento improvável), e aqui, sozinhos, desatam numa discussão das antigas, com acusações, recriminações e gritaria, e foi tão tenso, tão realista, que eu cheguei a temer que houvesse porrada, e na verdade até houve um empurrão. Michonne revela que Rick tem um filho que não conhece, e que RJ tem quase 8 anos. Isto indica-nos que Rick esteve desaparecido durante uns 9 anos. Depois de quase uma década de separação, Michonne não reconhece o homem à sua frente nem reconhece as suas razões. A briga torna-se tão feia, mas tão feia, que ela o deixa. Ela deixa-o! Adorei este episódio em que pela primeira vez vimos a mulher de carne e osso, vulnerável e magoada, por trás da heroína da catana. Confesso que nunca acreditei muito na relação entre Rick e Michonne, sempre pensei que tinha sido uma coisa de conveniência (eu estou sozinho, tu estás sozinha, é o fim do mundo, não há muito por onde escolher, e nós até nos damos bem, porque não juntamos os trapinhos?) mas uma coisa que “The Ones Who Live” conseguiu foi vender-me este romance, e isto graças a este episódio escrito por Gurira. Sei que muitos fãs se vão queixar e dizer que é “telenovela”, mas sobre eles falo depois.
O que acontece a seguir já não me agrada tanto. Rick e Michonne fazem as pazes e decidem ir destruir a CMR, sozinhos contra o mundo. Aqui aproveito para falar na representação de Terry O'Quinn, o John Locke de “Lost”. (Aliás, as representações são todas muito boas, e saliento igualmente Pollyanna McIntosh como Jadis. Se esta série vale alguma coisa é graças aos actores, não ao enredo.) Terry O'Quinn, como dizia, lembra-me um pouco Bryan Cranston de “Breaking Bad”, ambos com aquele arzinho sonso de quem nem sabe que é actor e que está num filme. Terry O'Quinn não tem muitas cenas mas quando aparece causa impacto no papel do Major General Beale, o topo da hierarquia da CRM, que num briefing a Rick expõe todos os planos secretos da organização: a CRM tenciona destruir os aliados e comunidades pelos recursos e superioridade numérica, tem espiões em todo o mundo para influenciar as políticas e sabotar os aliados (como vimos em “Daryl Dixon”), e é possivelmente a maior força militar do continente ou até do mundo. Só assim a CRM acredita que é possível salvar a raça humana da extinção.

… e o regresso à “escrita Gimple”
Rick e Michonne têm um plano: expor a CRM perante o Conselho da cidade de Filadélfia e as pessoas da cidade revoltar-se-ão. Afinal existe mesmo uma República Cívica e um Conselho, mas, admitamos, este plano é infantil. Este Conselho não manda nada, quem manda é a CRM, o que o torna um governo fantoche. A CRM tem oficialmente 17.000 efectivos, fora a polícia militar e as forças especiais e secretas, tem uma hierarquia militar com muitas chefias espalhadas pelo país, tem helicópteros, veículos, combustível, provavelmente até tem acesso a satélites ainda em funcionamento e talvez até ao arsenal nuclear pré-existente. Para derrotar Negan e duas ou três centenas de capangas e associados, uns bandidos de beira de estrada, foram precisas duas temporadas e dezenas de pessoas. Sobrepondo estes cenários, onde é que alguma vez Rick e Michonne, sozinhos, poderiam derrotar um exército com ramificações mundiais? Em “Daryl Dixon” ninguém pôs Daryl a superar o exército Pouvoir des Vivants sozinho; ele ajudou, mas não tinha conseguido nada sem a Resistência e numerosos aliados. E isto faz logo de “Daryl Dixon” um enredo de maior qualidade do que temos em “The Ones Who Live”, infelizmente, porque este spin-off é mesmo o verdadeiro final de “The Walking Dead”.
Quando a série acabou eu pensei: “Ok, isto não pode ficar assim. Quando é que começa a nova temporada?” Não há nova temporada planeada. É mesmo para acabar assim. Não vou dizer como termina, apenas que a levar a sério é ridículo e infantil. Prefiro considerar que não é um “felizes para sempre” mas um “felizes por agora”, e tirei da cabeça qualquer vontade de uma segunda temporada.
Acho a CRM maléfica uma história fascinante mas, sinceramente, não acredito que a série tenha o orçamento e a criatividade para se meter numa saga em que é travada uma guerra mundial, muito embora “Daryl Dixon” já tenha deixado algumas pistas de como fazer isso. Desde que não entre a “escrita Gimple”, talvez eu me engane.

O grande problema de The Walking Dead não são os zombies
“The Ones Who Live” ajudou-me a tecer algumas reflexões sobre o universo Walking Dead em geral. Desde a segunda temporada da série original que tem havido uma cisão entre os fãs que gostam do realismo e do drama (como o episódio da discussão entre Rick e Michonne) e os fãs que só querem sangue e miolos (como o episódio de Michonne a cavalo contra uma horda de zombies) e que acham que o drama é uma “telenovela”. Penso que a série sofreu devido a esta cisão, tentando agradar a uns e outros e não agradando a ninguém. Quando “The Walking Dead” estreou, quase há 15 anos, havia uma distinção muito clara entre séries dramáticas e séries de acção, distinção que já não faz sentido hoje em dia e que, ironicamente, “The Walking Dead” ajudou a destruir. No entanto, em todo o universo Walking Dead, nota-se claramente que há duas linhas de escrita: a irrealista e estapafúrdia que faz uma mulher inteligente atirar-se de um helicóptero sem pára-quedas, e a dramática e realista que aborda o aspecto emocional dos personagens. Tenho para mim que quem escreve os episódios delirantes, como a radioactividade selectiva, preferia estar a escrever sobre super-heróis para um público infantil ou pouco exigente que só quer ver bonecos de acção. Como a série se destina a adultos e os personagens são de carne e osso, acontecem coisas absurdas como “Fear The Walking Dead”. E desta forma “The Ones Who Live”, com o protagonista principal da saga inteira, conseguiu ter um enredo mais fraco do que “Dead City”, uma série que aliava Maggie e Negan e pela qual eu não dava mesmo nada, mas que funcionou porque o enredo não era completamente estrambólico e as motivações das personagens eram sólidas. Sim, é possível ter drama e acção sem cair no ridículo, mas não com desvarios de super-heróis sozinhos contra o mundo.
De “The Ones Who Live” salva-se o episódio escrito por Danai Gurira, um dos melhores da saga toda, um final para a história de Rick, a integração dos enredos de várias spin-offs, e o grande potencial que existe na ameaça planetária que é a CRM (oxalá houvesse meios para o desenvolver). Mas, pelo menos, não morreu nenhum cavalo.
Peço desculpa pelo testamento, tive de referir várias sub-séries para explicar onde queria chegar e mesmo assim acho que me esqueci de qualquer coisa.

PS: Descobri que Pollyanna McIntosh cresceu, em parte, em Portugal, o que é sempre interessante saber.


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PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, Fear The Walking Dead, The Walking Dead: World Beyond, The Walking Dead: Daryl Dixon, The Walking Dead: Dead City, Lost, zombies, pós-apocalíptico


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