terça-feira, 26 de novembro de 2024

A Monster Calls / Sete Minutos Depois da Meia-Noite (2016)


Durante muito tempo tive relutância em ver este filme no canal SyFy porque por alguma razão julguei que era um filme de “terror” para miúdos. Não podia estar mais enganada.
Esta é a história de Conor, “demasiado crescido para ser uma criança, demasiado novo para ser um homem”, que inventa um monstro-árvore que o ajuda a lidar com a doença da mãe, em cancro terminal. O monstro conta-lhe três histórias em troca de Conor lhe contar uma quarta, história esta que é simplesmente a experiência que o miúdo está a passar.
Muitas partes do filme são efectivamente em desenho animado, nomeadamente as histórias que o monstro vai contando e que vão ensinando a Conor que nem tudo é preto e branco como ele pensava.
Escusado será dizer que “A Monster Calls” é um filme sensível, de grande qualidade e para toda a família, mas um filme que faz chorar, especialmente se alguém passou pela situação de perder um ente querido.

14 em 20

 

domingo, 24 de novembro de 2024

Limetown (2019)

Em 2004, mais de 300 neurocientistas e suas famílias trabalhavam num projecto secreto na cidade privada (e ficcional) de Limetown. Em três dias, depois de uma chamada aflita para os serviços de emergência, todos os habitantes de Limetown, homens, mulheres e crianças, desapareceram sem deixar rasto. Bem, nem todos. O corpo do líder da comunidade foi descoberto amarrado a um poste e queimado. Um dos desaparecidos era o tio da futura jornalista Lia Haddock. Depois de muitas investigações, as autoridades nunca conseguiram descobrir o que se passou. Entre muita especulação, circulou mesmo a teoria de que foram levados por extraterrestres.
Quinze anos depois, Lia Haddock continua obcecada com o sucedido. Tenta investigar, como jornalista, mas o mistério parece impenetrável até ser contactada por uma alegada sobrevivente de Limetown, que lhe conta tudo o que pode porque sofre de amnésia. Contudo, é o suficiente para que Lia comece a desvendar uma sequência de acontecimentos que culminaram num final horripilante.
“Limetown” é uma série de ficção científica perturbadora, especialmente na parte que envolve os porcos (e não só), e tive dificuldade em ver uma segunda vez. Porém, aviso que os dez episódios de 30 minutos tornam a série viciante e impossível de largar para quem tenha estômago para continuar. Decididamente, não é para todos.
A protagonista tem uma tara sexual curiosa, que não tem nada a ver com a história, e que só foi incluída para efeito de choque. Não me lembro de um momento descontraído em “Limetown”, é só tensão do princípio ao fim.
A série devia ter sido renovada mas não foi. Mesmo assim, vale por si.
Passa no SyFy.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: ficção científica, Ficheiros Secretos/The X-Files

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Great White / Tubarão Branco (2021)

Confesso que cada vez me custa mais fazer críticas a estes filmes de tubarões porque são todos iguais, iguais, iguais. Antes do princípio já sabemos como vai ser o fim. Esta crítica vai incidir nas originalidades que “Great White” ainda assim consegue trazer.
Um casal de guias turísticos passeiam turistas num hidroavião sobre as paisagens paradisíacas da Austrália. Se há algo de positivo a dizer de “Great White” é o grande aproveitamento da paisagem, quase um anúncio de férias em praias de águas verdes, azuis e translúcidas, vegetação luxuriante e areia branca. Até as filmagens subaquáticas estão muito bem feitas e com grande beleza (tirando as cenas sangrentas, isto é).
Os guias turísticos são contratados para conduzirem um casal a uma enseada deserta e remota que parece um postal turístico… até encontrarem um corpo masculino semi-comido e já sem pernas. O dono do hidroavião descobre que o homem não estava sozinho porque este tem fotografias de outra pessoa no telemóvel. (A primeira cena do filme são estes dois a serem atacados por um enorme tubarão branco, mas não falei nisso aqui.) Imediatamente decide ir à procura do barco onde os dois sinistrados deviam estar, mas comete um erro colossal: tem rádio no avião mas nunca comunica a descoberta do corpo à polícia nem as coordenadas para onde se dirige.
Acaba por encontrar um veleiro naufragado e faz uma amaragem. Depois de inspeccionar o interior do barco descobre o segundo cadáver.
É então que salta das águas o enorme tubarão branco e finca uma dentada no trem de amaragem e afunda o hidroavião! A tripulação tem de fugir para um daqueles salva-vidas de emergência de plástico e borracha antes de conseguir pedir ajuda pelo rádio (o que já devia ter feito ao encontrar o cadáver…). À deriva, dependem da maré e de remos improvisados para chegar a terra. Entretanto, vai-lhes acontecendo o que acontece em filmes de tubarões, especialmente porque estão a ser caçados não por um mas por dois tubarões brancos. (Fui pesquisar e a internet diz que é verdade: os tubarões podem caçar em grupo. Sempre deu para aprender alguma coisa que eu não sabia).
Agora vamos às absurdidades (ainda estou para ver um filme de tubarões sem elas).
Vamos admitir que por sorte o tubarão abocanhou o trem de amaragem no sítio certo e que não foi “esperteza”. Mas a certa altura outro tubarão (ou o mesmo) tem a feliz ideia de virar o salva-vidas, fazendo com que todos os sobreviventes vão parar à água. Boa estratégia, mas naquele cérebro tubarónico não lhe ocorreu fazer o mesmo uma e outra vez até os ter todos na água: refeição fácil e rápida. Da mesma forma, não ocorreu ao tubarão genial que afundou o hidroavião que bastaria uma dentada no salva-vidas para os apanhar a todos.
Sinceramente, tive pena dos tubarões por lhes terem passado um atestado de estupidez. Por falar nisso, os sobreviventes também não são muito espertos ou dois deles não teriam desatado aos murros num salva-vidas periclitante perseguido por tubarões. É uma questão de inteligência selectiva que dá jeito ao enredo.
“Great White” não é um grande filme, tresanda a clichés e a todos os erros convenientes, mas se quiserem ver um tubarão a afundar um hidroavião é aqui.

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PS: Muitas espécies de tubarões estão em extinção. Uma das coisas que podemos fazer para travar isto é deixar de comer espécies protegidas, por exemplo, na sopa de barbatana de tubarão. Sim, a sopa é boa, mas o que fazem aos tubarões é horrível. Pescam-nos, cortam-lhes a barbatana e atiram-nos de novo ao mar ainda vivos, sem poderem nadar e sem se poderem defender dos outros predadores que os comem vivos. Vi com os meus olhos num documentário. Fiquei horrorizada. Entre nós o tubarão é chamado cação e entra na caldeirada. Rejeitem. Informem-se. Os tubarões são necessários ao ecossistema marinho como os leões são necessários na savana. Sim, eu sei que os leões são mais fofinhos e é fácil detestar tubarões, mas o princípio é o mesmo.

domingo, 17 de novembro de 2024

The Bell Jar, de Sylvia Plath

Uma personagem de uma série de televisão descreveu este livro como “uma viagem ao abismo”. Confesso que fiquei surpreendida porque não sabia que Sylvia Plath tivesse escrito um romance (sempre a conheci como poetisa) mas o tema interessou-me imediatamente. Com efeito, “The Bell Jar” é o único romance de Sylvia Plath, publicado originalmente sob o pseudónimo Victoria Lucas, em 1963, tendo em conta que é uma obra autobiográfica com personagens ficcionais.
A história passa-se em 1953. Esther Greenwood, uma aluna excepcional de 19 anos consegue um estágio numa revista de moda, junto com algumas colegas. Esther vem de uma família pobre, e sempre se empenhou com afinco para conseguir prémios e bolsas para financiar os estudos, mas subitamente percebe que não sabe que carreira escolher ou mesmo se prefere casar e ter filhos. Esther é daquelas pessoas que fingem sempre que está tudo bem e não desabafam com ninguém, e do seu relato na primeira pessoa nota-se perfeitamente uma baixa auto-estima.
Na verdade, o que Esther quer ser é poetisa e escritora, e depois do estágio inscreve-se num curso de escrita onde não é aceite. Esta foi a gota de água que provocou o que nós chamaríamos hoje um esgotamento nervoso: Esther mete-se na cama embora alegue que não consegue dormir, deixa de comer, deixa de tomar banho. Estes são sintomas de depressão profunda à mistura com a ansiedade perante o futuro que Esther não consegue enfrentar.
A mãe leva-a ao psiquiatra que, logo de rajada, prescreve choques eléctricos. Esther recusa voltar ao médico, mas começa obsessivamente a planear o suicídio que quase consegue executar com comprimidos. Descoberta a tempo, é internada num hospital psiquiátrico (à altura chamado manicómio/hospício) onde é “tratada” com mais choques eléctricos e insulina (!), a par com alguma psicoterapia. Por esta altura penso que o problema de Esther já não é simplesmente depressão, especialmente quando ela começa a pensar que os médicos “estão todos feitos uns com os outros”. Isto parece-me mais esquizofrenia paranóica. Esther sente-se isolada do mundo, como que dentro de uma redoma de vidro (the bell jar) que não a deixa respirar, e mesmo depois de ter alta do hospital receia que a redoma volte a asfixiá-la no futuro.
O que mais me impressionou nisto tudo (talvez da minha experiência pessoal) foi a falta da raiva que Esther nunca chega a expressar. Isto, confesso, chocou-me. Nada como uns pontapés nas mesas e cadeiras para curar a depressão. Mas Esther deixa-se levar passivamente, quando não em lágrimas. “Electrochoques? Está bem.”, “Sou maluquinha? Está bem.”, “Merecia estar num hospício de maior segurança? Está bem.”
É claro que isto é nos anos 50 em que o lugar de uma mulher era muito diferente. A grande conquista de Esther, à altura, é começar a usar contraceptivos para não ficar grávida e dependente de um homem.
“The Bell Jar” tem sido visto ao longo das décadas como um precursor da literatura feminista e, sinceramente, não sei o que dizer quanto a isto. O feminismo nos anos 60, 70, 80, já não tem nada a ver com o feminismo dos nossos dias. Acredito que este livro, na altura da publicação, tenha sido uma pedrada no charco. Esther fala de dificuldades económicas, ambições, sexo, contracepção, depressão, suicídio, e do seu enorme desejo de ser uma mulher independente que faz o que quer.
O estilo de escrita é muito desequilibrado, na minha opinião. Por um lado, como poetisa que é, Plath é capaz de nos deslumbrar com imagens inesperadas, mas o tom geral da narração é a de alguém que está a escrever um post à pressa no Facebook (ou num diário secreto), sem se importar muito com a linguagem. Talvez seja esta informalidade que ainda capture o interesse de geração após geração, apesar do tema sombrio.
Gostaria que o livro me tivesse tocado mais, mas, muito honestamente, para mim só funcionou como documento histórico dos tratamentos brutais a que submetiam os pacientes psiquiátricos.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Safer At Home / #ficaemcasa (2021)


Este filme foi uma grande decepção para mim. Como o nome indica a acção passa-se durante o confinamento do Covid-19, e por alguma razão (talvez a sinopse) eu estava convencida de que ficar em casa, no isolamento e no silêncio das ruas vazias, ia despertar qualquer entidade sobrenatural. (Mas a ler as críticas descobri um filme semelhante que talvez me interesse. A ver vamos.)
“Safer At Home” envereda um bocadinho pela ficção científica/distopia, mas não fiquem já entusiasmados. O filme parte do princípio de que as variantes de Covid iriam ser cada vez mais mortíferas e transmissíveis, o que coloca os nossos personagens em confinamento há mais de dois anos no que já se tornou um estado policial. Mas isto passa de raspão, não interessa senão no fim.
Nem era preciso o Covid para pôr este grupo de amigos numa festa no Zoom, como prova outro filme bem mais interessante, “Unfriended: Dark Web” (“Desprotegido: Dark Web”) de 2018.
O enredo é precisamente esse. Um grupo de amigos reúne-se via Zoom para celebrar o aniversário de um deles. Entretanto alguém arranjou Ecstasy para todos tomarem. A princípio tudo corre lindamente, até a droga começar a actuar. Tudo indica, pelos sintomas, que talvez o comprimido não fosse Ecstasy mas qualquer mistura com anfetamina. Alguns dos amigos sentem-se mal, outros eufóricos, outros agressivos. Um casal de namorados a viver juntos desata a discutir. Durante a discussão, a namorada cai acidentalmente. O namorado julga que ela está morta. Ninguém no Zoom viu que não foi ele quem a empurrou, porque estavam todos distraídos, mas o espectador viu perfeitamente que foi um acidente.
É aqui que o filme se torna estúpido. Nenhuma daquelas alminhas pensa em chamar sequer uma ambulância. Entram todos em pânico, especialmente o namorado. Mais idiota ainda, o namorado decide fugir do apartamento, como se um corpo pudesse ser abandonado assim sem que ninguém desse por nada, no que só posso concluir que foi um efeito da droga. Ao mesmo tempo, um dos amigos do Zoom decide meter-se no carro e ir ter com ele (para quê?). As estradas estão desertas. Num instante são perseguidos pela polícia. O final do filme quer entrar em coisas da vida real por isso temos algo semelhante ao que deu origem ao Black Lives Matter, só que aqui é apoucalhado em todas as formas e feitios (o gajo não obedeceu à polícia umas quatro vezes, ainda sob efeito da droga).
Em retrospectiva, não diria apenas que o filme é estúpido, mas que as personagens são ainda mais estúpidas.
Completamente a evitar.

9 em 20

 

domingo, 10 de novembro de 2024

Annabelle Comes Home / Annabelle 3 - O Regresso A Casa (2019)

Quis ver este filme depressa, não porque me interessasse mas para não me esquecer dos anteriores e de toda a série “The Conjuring”, “The Nun”, etc, e mesmo assim acho que perdi um destes todos.
Este filme não é tanto “Annabelle Volta a Casa” como “Annabelle Continua Presa na Sala de Artefactos” do casal Warren. De facto, o filme passa-se todo na casa, do princípio ao fim, e é um cliché de bradar aos Céus. A imaginação está mesmo a esgotar-se no que toca a Annabelle, mas que outra coisa esperar?
A história começa quando Ed e Lorraine Warren têm de se ausentar, deixando a filha Judy com a babysitter Mary Ellen. Mary Ellen é o mais certinha que pode haver, mas a sua amiga Daniela “faz-se convidada” para a casa dos Warren na tentativa de encontrar alguma coisa que lhe permita contactar o pai falecido. Ao contrário das instruções de Mary Ellen, assim que se apanha sozinha Daniela faz questão de entrar na Sala de Artefactos dos Warren e de tocar em tudo, mesmo tudo. Pior ainda, abre a porta do expositor onde Annabelle está fechada.
A partir daqui todas as assombrações ficam à solta pela casa (e também fora dela), aterrorizando as três adolescentes, enquanto que o demónio que possui Annabelle tenta apossar-se de uma das suas almas.
“Annabelle Comes Home” funciona como filme de “casa assombrada” com adolescentes, o que não deixa de ser um género “ganhador” apesar da falta de originalidade. Há uma cena verdadeiramente assustadora, quando Daniela encontra um espelho que mostra o que vai acontecer daí por um minuto ou dois, o que não lhe dá tempo suficiente de reagir. Outra cena particularmente inspirada é quando as miúdas decidem finalmente telefonar aos Warren e a princípio parece que é Lorraine quem atende, mas afinal quem responde é outra coisa…
Lamento que tenha aparecido novamente o demónio chifrudo, desta vez com uns cornos tipo carneiro. Sinceramente, já não sei o que dizer sobre isto. Já nem acho engraçado. É apenas estúpido, enfadonho, e não mete medo nenhum a quem não tenha nascido na Idade Média. Continuo a não perceber estes realizadores e a mania do demónio chifrudo.
“Annabelle Comes Home” é um filme adolescente para adolescentes numa casa assombrada, e não há muito mais a dizer. Confesso que esperava mais, mas por esta altura Annabelle já está muito gasta. A saga The Conjuring parece já ter dado tudo o que tinha a dar.
Uma última nota para a actriz que faz de Judy. Eu sabia que conhecia aquela cara de qualquer lado, mas puxei muito pela cabeça. Mckenna Grace, um pouco mais velha, é a Esther de “The Handmaid’s Tale”. Penso que podemos esperar grandes coisas dela no futuro.


12 em 20

 

domingo, 3 de novembro de 2024

Glitch (2015 - 2019)

Na pacata noite de Yoorana, uma pequena cidade (ficcional) no interior da Austrália, meia dúzia de pessoas falecidas saem das suas sepulturas. No entanto, não são zombies. Estão nus e na idade em que morreram, cobertos de lama, desorientados e confusos, e sofrem de amnésia. Numa terra em que há apenas dois polícias de serviço, o agente James é chamado ao cemitério e julga que aquilo que está a ver é uma partida ou o resultado de uma bebedeira. Leva-os todos para o consultório da médica Elishia McKellar, igualmente o único da cidade, onde esta lhes faz testes e James os tenta identificar. Lentamente, uns mais devagar do que os outros, os ressuscitados começam a lembrar-se de pequenos pormenores das suas vidas, como por exemplo o nome próprio. Depois do estado de negação, James tem de acreditar nos seus olhos ao reconhecer entre eles a sua esposa Kate, falecida há dois anos de cancro. Mais investigação revela que estas pessoas são mesmo quem estava nas campas, alguns deles mortos há mais de 100 anos.
O que os trouxe de volta? E como? O que têm em comum?
“Glitch” é mais ficção científica do que sobrenatural, embora o sobrenatural também esteja envolvido. Já voltaremos a isso, mas penso mesmo que a melhor maneira de assistir a esta série australiana é focarmos-nos nos personagens que se vêem de volta à vida sem saberem que tinham morrido.
Kate, falecida esposa de James, regressa para descobrir que entretanto ele casou com a melhor amiga dela e que estão à espera de um bebé dentro de semanas, a criança que Kate não conseguiu ter devido ao cancro. James nunca deixou de amá-la, o que o coloca numa situação muito difícil. Acima de tudo por causa de Kate, mas também pelos outros, James e Elishia decidem manter os ressuscitados em segredo antes que cientistas os queiram levar e estudar.
Kirstie Darrow, assassinada aos 19 anos na década de 80, tem apenas vislumbres do que lhe aconteceu até recordar o homicídio e agora só quer encontrar o homem que a matou.
Uma das minhas histórias preferidas é da Charlie P. Thompson, o único soldado da Primeira Guerra Mundial que regressou vivo a Yoorana com o estatuto de herói e mandou erigir uma estátua aos camaradas caídos em batalha, mas acabou por morrer também, muito novo, em circunstâncias desconhecidas. Charlie morreu antes de assumir a sua homossexualidade, uma vez que estava apaixonado por um companheiro de trincheira que foi alvejado à sua frente. Regressado dos mortos, Charlie tem de descobrir o que lhe aconteceu e lidar, finalmente, com a sua sexualidade.
Outra história igualmente interessante é a de Patrick Michael Fitzgerald, primeiro Presidente da Câmara de Yoorana, falecido há mais de 150 anos, que funciona também como comic relief. Patrick construiu a sua fortuna através de expedientes e ilegalidades. Quando regressa dos mortos consegue escapar à vigilância da polícia, dá umas voltas por uma cidade que já não reconhece (excepto a sua própria estátua na praça), assalta uma loja de artigos de caça e vai acampar no mato à moda antiga, com uma fogueira e tudo. Lentamente, Patrick recorda o seu envolvimento com uma criada aborígene da sua casa, de quem teve uma criança. Mais tarde descobre também que os seus descendentes com esta mulher, o amor da sua vida, ainda vivem em Yoorana. Obviamente, o ramo “branco” da família não os reconhece. Patrick embarca numa missão para que a sua fortuna seja também dividida com eles, o que não vai ser fácil devido aos entraves da família legítima.
Nem tudo são rosas para estes regressados da sepultura. Depressa descobrem que estão limitados no espaço por uma barreira invisível que não lhes permite sair de Yoorana, e esta barreira está a encolher cada vez mais. Se tentarem ultrapassá-la, morrem e decompõem-se em segundos, voltando ao estado em que estavam.
E então entra o sobrenatural. Pessoas antes normais começam a ficar “possuídas” com um único propósito: devolver os ressuscitados à sepultura para corrigir a ordem natural das coisas.
Vou cometer um spoiler para se perceber isto (ou não). A série andou às voltas até que por fim admitiu que a ressurreição tinha sido produto de uma experiência científica. Mas estes “exterminadores” ao serviço de uma força inteligente que quer “repor a ordem das coisas” não têm nada de científico. Geralmente não gosto da mistura de ficção científica com sobrenatural, mas aqui até funciona bem. Um dos personagens pergunta a um destes “exterminadores” se ele trabalha para Deus, ao que o outro não responde sim nem não. Mas a natureza não quer saber de moralidades (e não são meia dúzia de ressuscitados que vão implodir o universo), pelo que só pode ser uma força sobrenatural que move os “exterminadores” a “corrigirem” o que a ciência “perturbou”. Isto faria sentido, ciência vs sobrenatural, especialmente se a ciência se aguentasse nas pernas (não aguenta). O problema é quando se tenta misturar ficção científica com sobrenatural, porque nunca bate a bota com a perdigota, e “Glitch” também se tentou meter por aí, embora muito ao de leve e sem se comprometer, o que permite a cada espectador interpretar como quiser. Por exemplo, o romance entre Elishia McKellar e William Blackburn. Das conversas entre ambos tudo indica que se trata de reencarnação (neste caso uma reencarnação “forçada”) e que ambos se conheciam de uma vida passada ou até mesmo do Além, mas a série nunca é suficientemente explícita.
Na verdade, a grande crítica que “Glitch” merece é que nunca se interessa por dar respostas, e cada resposta vem carregada de mais perguntas, ao que eu vou começar a chamar o “Síndrome de Lost”, e ao fim de três temporadas termina cheia de pontas soltas. Vou considerar que este desinteresse foi propositado para que os espectadores se focassem antes nos personagens, porque uma vez que mete ciência até seria MUITO FÁCIL explicar “porquê estes e não outros”. Por exemplo, podiam ter inventado um gene em comum, o mesmo tipo de sangue, um parentesco, e patati-patatá porque não ia fazer sentido à mesma.
Por falar em parentesco, a certa altura Patrick recupera o seu testamento, que tinha deixado num esconderijo secreto, e confronta ambos os ramos da família com ele, apresentando-se como um parente, tentando provar que tinha deixado uma grande propriedade a Kalinda, a criada. Inclusivamente, Patrick contrata um advogado para tratar do caso. Nenhum dos ramos da família acredita nele, mas não seria lógico que alguém sugerisse um teste de ADN para provar o parentesco, o que daria mais credibilidade ao testamento, nem sequer o advogado? Até podia ser interessante porque a doutora Heysen diz que o sangue dos ressuscitados é “invulgar”, o que certamente seria detectado no teste de ADN e abriria uma nova narrativa. Haveria mais exemplos, mas “Glitch” não está interessada em pormenores que desviem a história do enredo principal.
Também não fiquei nada convencida com o fim. Deu-me até a entender que se calhar queriam que a série fosse continuada, mas não foi renovada e tiveram de arranjar alguma coisa à pressa?…
“Glitch” começa em ritmo lento (cada temporada tem apenas 6 episódios), o tempo necessário para que os ressuscitados se adaptem à sua nova situação, recobrem do choque e procurem respostas, mas começa “a abrir” a partir da segunda temporada. Algumas coisas são resolvidas e explicadas, outras são abandonadas. Penso que uma série tão profunda e viciante merecia “pontos mais bem dados”, mas continuo a dizer que vale a pena pelo percurso dos personagens desde que não se olhe muito para o lado e para as questões que não tiveram tempo de ser desenvolvidas.
Nota humorística: quando eles saem das sepulturas, nus e sujos de lama, são levados para um consultório. Em questão de horas todas as mulheres tomam banho e arranjam roupa decente. Dias depois, os homens ainda andam com as orelhas e até o peito sujo de terra, como quem não se lavou como deve ser. Na verdade, só os vi limpinhos na segunda temporada. Não estou a inventar nada, é só ver a série. Achei engraçado.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: ficção científica, sobrenatural, metafísica, Lost