Na pacata noite de Yoorana, uma pequena cidade (ficcional) no interior da Austrália, meia dúzia de pessoas falecidas saem das suas sepulturas. No entanto, não são zombies. Estão nus e na idade em que morreram, cobertos de lama, desorientados e confusos, e sofrem de amnésia. Numa terra em que há apenas dois polícias de serviço, o agente James é chamado ao cemitério e julga que aquilo que está a ver é uma partida ou o resultado de uma bebedeira. Leva-os todos para o consultório da médica Elishia McKellar, igualmente o único da cidade, onde esta lhes faz testes e James os tenta identificar. Lentamente, uns mais devagar do que os outros, os ressuscitados começam a lembrar-se de pequenos pormenores das suas vidas, como por exemplo o nome próprio. Depois do estado de negação, James tem de acreditar nos seus olhos ao reconhecer entre eles a sua esposa Kate, falecida há dois anos de cancro. Mais investigação revela que estas pessoas são mesmo quem estava nas campas, alguns deles mortos há mais de 100 anos.
O que os trouxe de volta? E como? O que têm em comum?
“Glitch” é mais ficção científica do que sobrenatural, embora o sobrenatural também esteja envolvido. Já voltaremos a isso, mas penso mesmo que a melhor maneira de assistir a esta série australiana é focarmos-nos nos personagens que se vêem de volta à vida sem saberem que tinham morrido.
Kate, falecida esposa de James, regressa para descobrir que entretanto ele casou com a melhor amiga dela e que estão à espera de um bebé dentro de semanas, a criança que Kate não conseguiu ter devido ao cancro. James nunca deixou de amá-la, o que o coloca numa situação muito difícil. Acima de tudo por causa de Kate, mas também pelos outros, James e Elishia decidem manter os ressuscitados em segredo antes que cientistas os queiram levar e estudar.
Kirstie Darrow, assassinada aos 19 anos na década de 80, tem apenas vislumbres do que lhe aconteceu até recordar o homicídio e agora só quer encontrar o homem que a matou.
Uma das minhas histórias preferidas é da Charlie P. Thompson, o único soldado da Primeira Guerra Mundial que regressou vivo a Yoorana com o estatuto de herói e mandou erigir uma estátua aos camaradas caídos em batalha, mas acabou por morrer também, muito novo, em circunstâncias desconhecidas. Charlie morreu antes de assumir a sua homossexualidade, uma vez que estava apaixonado por um companheiro de trincheira que foi alvejado à sua frente. Regressado dos mortos, Charlie tem de descobrir o que lhe aconteceu e lidar, finalmente, com a sua sexualidade.
Outra história igualmente interessante é a de Patrick Michael Fitzgerald, primeiro Presidente da Câmara de Yoorana, falecido há mais de 150 anos, que funciona também como comic relief. Patrick construiu a sua fortuna através de expedientes e ilegalidades. Quando regressa dos mortos consegue escapar à vigilância da polícia, dá umas voltas por uma cidade que já não reconhece (excepto a sua própria estátua na praça), assalta uma loja de artigos de caça e vai acampar no mato à moda antiga, com uma fogueira e tudo. Lentamente, Patrick recorda o seu envolvimento com uma criada aborígene da sua casa, de quem teve uma criança. Mais tarde descobre também que os seus descendentes com esta mulher, o amor da sua vida, ainda vivem em Yoorana. Obviamente, o ramo “branco” da família não os reconhece. Patrick embarca numa missão para que a sua fortuna seja também dividida com eles, o que não vai ser fácil devido aos entraves da família legítima.
Nem tudo são rosas para estes regressados da sepultura. Depressa descobrem que estão limitados no espaço por uma barreira invisível que não lhes permite sair de Yoorana, e esta barreira está a encolher cada vez mais. Se tentarem ultrapassá-la, morrem e decompõem-se em segundos, voltando ao estado em que estavam.
E então entra o sobrenatural. Pessoas antes normais começam a ficar “possuídas” com um único propósito: devolver os ressuscitados à sepultura para corrigir a ordem natural das coisas.
Vou cometer um spoiler para se perceber isto (ou não). A série andou às voltas até que por fim admitiu que a ressurreição tinha sido produto de uma experiência científica. Mas estes “exterminadores” ao serviço de uma força inteligente que quer “repor a ordem das coisas” não têm nada de científico. Geralmente não gosto da mistura de ficção científica com sobrenatural, mas aqui até funciona bem. Um dos personagens pergunta a um destes “exterminadores” se ele trabalha para Deus, ao que o outro não responde sim nem não. Mas a natureza não quer saber de moralidades (e não são meia dúzia de ressuscitados que vão implodir o universo), pelo que só pode ser uma força sobrenatural que move os “exterminadores” a “corrigirem” o que a ciência “perturbou”. Isto faria sentido, ciência vs sobrenatural, especialmente se a ciência se aguentasse nas pernas (não aguenta). O problema é quando se tenta misturar ficção científica com sobrenatural, porque nunca bate a bota com a perdigota, e “Glitch” também se tentou meter por aí, embora muito ao de leve e sem se comprometer, o que permite a cada espectador interpretar como quiser. Por exemplo, o romance entre Elishia McKellar e William Blackburn. Das conversas entre ambos tudo indica que se trata de reencarnação (neste caso uma reencarnação “forçada”) e que ambos se conheciam de uma vida passada ou até mesmo do Além, mas a série nunca é suficientemente explícita.
Na verdade, a grande crítica que “Glitch” merece é que nunca se interessa por dar respostas, e cada resposta vem carregada de mais perguntas, ao que eu vou começar a chamar o “Síndrome de Lost”, e ao fim de três temporadas termina cheia de pontas soltas. Vou considerar que este desinteresse foi propositado para que os espectadores se focassem antes nos personagens, porque uma vez que mete ciência até seria MUITO FÁCIL explicar “porquê estes e não outros”. Por exemplo, podiam ter inventado um gene em comum, o mesmo tipo de sangue, um parentesco, e patati-patatá porque não ia fazer sentido à mesma.
Por falar em parentesco, a certa altura Patrick recupera o seu testamento, que tinha deixado num esconderijo secreto, e confronta ambos os ramos da família com ele, apresentando-se como um parente, tentando provar que tinha deixado uma grande propriedade a Kalinda, a criada. Inclusivamente, Patrick contrata um advogado para tratar do caso. Nenhum dos ramos da família acredita nele, mas não seria lógico que alguém sugerisse um teste de ADN para provar o parentesco, o que daria mais credibilidade ao testamento, nem sequer o advogado? Até podia ser interessante porque a doutora Heysen diz que o sangue dos ressuscitados é “invulgar”, o que certamente seria detectado no teste de ADN e abriria uma nova narrativa. Haveria mais exemplos, mas “Glitch” não está interessada em pormenores que desviem a história do enredo principal.
Também não fiquei nada convencida com o fim. Deu-me até a entender que se calhar queriam que a série fosse continuada, mas não foi renovada e tiveram de arranjar alguma coisa à pressa?…
“Glitch” começa em ritmo lento (cada temporada tem apenas 6 episódios), o tempo necessário para que os ressuscitados se adaptem à sua nova situação, recobrem do choque e procurem respostas, mas começa “a abrir” a partir da segunda temporada. Algumas coisas são resolvidas e explicadas, outras são abandonadas. Penso que uma série tão profunda e viciante merecia “pontos mais bem dados”, mas continuo a dizer que vale a pena pelo percurso dos personagens desde que não se olhe muito para o lado e para as questões que não tiveram tempo de ser desenvolvidas.
Nota humorística: quando eles saem das sepulturas, nus e sujos de lama, são levados para um consultório. Em questão de horas todas as mulheres tomam banho e arranjam roupa decente. Dias depois, os homens ainda andam com as orelhas e até o peito sujo de terra, como quem não se lavou como deve ser. Na verdade, só os vi limpinhos na segunda temporada. Não estou a inventar nada, é só ver a série. Achei engraçado.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez
PARA QUEM GOSTA DE: ficção científica, sobrenatural, metafísica, Lost