Acreditem ou não, nunca tinha visto este filme. Imagino que na altura tenha sido uma grande produção, uma coisa de encher o olho, mas o tempo não lhe foi benévolo.
Devido às alterações climáticas e ao derretimento das calotes polares, o planeta está agora todo coberto de oceano e os sobreviventes tentam por tudo encontrar terra seca. Kevin Costner interpreta uma personagem simplesmente designada por Mariner, um nómada dos mares que veleja de povoação em povoação marítima para trocar comida, água doce e outros bens. O bem mais precioso neste mundo pós-apocalíptico é mesmo a terra seca. Algumas pessoas ainda sonham encontrar um pedaço de planeta não coberto pelo mar, mas tal parece cada vez mais um mito.
Achei o filme longo, e longo no pior sentido (isto é, chato), principalmente com todas aquelas cenas no atol flutuante em que o Mariner é preso, e depois de muitas cenas de acção e porrada consegue libertar-se. Isto foi o quê, metade do filme?
O Mariner leva com ele uma mulher e uma criança que o ajudaram a fugir. Depois de muita insistência, ele acaba por revelar de onde vem a terra seca que costuma negociar. Esta é de facto a parte mais interessante do filme. O Mariner é um mutante, desenvolveu guelras e membranas entre os dedos, e consegue mergulhar a grandes profundidades. A terra está no fundo do mar. Neste mergulho, vemos cenas impressionantes do que seria a nossa civilização debaixo de água.
Não podiam faltar os vilões. Aqui estes aparecem na forma de piratas, que se chamam… Fumadores. Isso mesmo, Fumadores, porque todos fumam. Ora, eu compreendo que em 1995 queriam transmitir aos putos a ideia de que fumar não é “cool”, mas por amor de Blogger, vilões Fumadores? Que insulto! E onde é que estes Fumadores iriam arranjar as bateladas de tabaco num mundo em que quase não há água potável nem terra arável para cultivar três tomates e um limão? É o tal problema que acontece quando a lógica vai às urtigas.
“Waterworld” ainda se vê bem, mas parece mais um filme para miúdos do que outra coisa.
13 em 20 (pelos cenários subaquáticos)
domingo, 27 de novembro de 2022
Waterworld (1995)
terça-feira, 22 de novembro de 2022
[Actualizado] Better Call Saul (2015-2022)
[contém spoilers]
[Actualizado: quando fiz o post, por ser tão longo, esqueci-me de falar da cinematografia brilhante; corrigi essa falta no último parágrafo]
Saul Goodman é o melhor advogado do mundo. Se eu precisasse de um advogado podem crer que não pensava duas vezes antes de ligar ao Saul… desde que o pudesse pagar.
Na crítica à primeira temporada disse aqui que Saul Goodman é tão genial como Walter White, na sua especialidade, uma vez que Saul foi dos poucos que sobreviveu literalmente a Walter. Depois de vermos as seis temporadas da prequela descobrimos que Saul Goodman não sobreviveu apenas a Walter White, mas também ao psicopata Tuco Salamanca, ao ardiloso Hector, aos sinistros primos, ao perigoso Eduardo, ao implacável Gustavo Fring, e até mesmo ao fleumático Mike Ehrmantraut. Tendo em conta que Walter White eliminou todos estes personagens, directa ou indirectamente, e que Saul sobreviveu a Walter, acho que temos uma ilacção:
Walter White > [Salamancas, Fring, Ehrmantraut]
Saul Goodman > Walter White
O próprio Saul o diz: “Eu não era apenas um cúmplice. Eu era indispensável. Eu criei o império de Walter White. Sem mim, ele teria sido morto ou preso em menos de um mês”.
Se alguém pensou que a genialidade de “Breaking Bad” não podia ser ultrapassada, “Better Call Saul” pode muito bem vir a provar o contrário. É certo que não existem tantas explosões, perseguições, tiroteios e homicídios, mas transformar uma sessão de tribunal numa cena tensa e “explosiva”, como fazem Vince Gilligan e Peter Gould, não é para todos. É difícil encontrar adjectivos para qualificar o que é perfeito. “Better Call Saul” devia ser uma prequela à volta da personagem comic relief de “Breaking Bad” e tornou-se uma obra prima de storytelling, humor, personagens sólidas e enredo irrepreensível.
Dar em mau
Não existe uma expressão em português para exprimir o significado de “breaking bad”, excepto talvez o brasileiro “virar mau” ou “virar para o mal”, ou “tornar-se mau” ou “dar em mau”. Seguindo o tema da série-mãe, todos aqui viram para o mal. De Saul Goodman nós já sabíamos que ia dar em advogado de criminosos que aconselha Walter a desfazer-se de pessoas mandando-as para o “Belize”, só não sabíamos como é que ele lá chegava. O mesmo podemos dizer de Mike Ehrmantraut. O que desconhecíamos era sobre Ignacio Varga (“Nacho”), Chuck, Kim Wexler, e outras personagens fascinantes que não aparecem em “Breaking Bad”. A questão coloca-se, premente e inquietante, tendo em conta o universo de cartéis em que se movem: o que lhes aconteceu? Obviamente, não posso responder a essa pergunta.
Nacho, Fring, Ehrmantraut
Comecemos talvez por Nacho, o filho de um imigrante estofador de automóveis que quer mais da vida do que passar dia e noite agarrado à máquina de costura sem chegar muito longe. Trabalhando primeiro para o louco Tuco (a quem conhecemos muito bem de “Breaking Bad”), adquire mais responsabilidades quando este é preso. Mais responsabilidades, no universo dos Salamancas, significa mais violência, espancar e matar mais gente. Nacho é aquele rapaz de bom coração que percebe que se meteu em coisas demasiado negras para o que consegue suportar, mas não pode simplesmente fugir. Nacho sabe que fazer isso pode custar a vida ao seu pai, um “civil” que nunca quis nada com criminosos, e que muito provavelmente custará. O seu plano é convencer o pai a fugir, e até já mandou fazer passaportes falsos para ambos. Nacho é daqueles personagens de quem gostamos e por quem torcemos, mas a questão é complicada: como é que se foge aos poderosos Salamanca? Quanto mais Nacho lhes tenta escapar, mais se enrola com Gustavo Fring, o arqui-inimigo dos Salamanca.
De Gustavo Fring não aprendemos muita história passada. Alguns pormenores são-nos esclarecidos, mas no essencial a série-mãe já nos mostrou a sua backstory e a razão por que odeia tanto Hector. Quando muito, descobrimos que Fring é mais brutal do que o imaginávamos.
Já quanto a Mike Ehrmantraut, é uma reviravolta de 180 graus. O ex-polícia que conhecemos na primeira temporada a trabalhar como cobrador de bilhetes num parque de estacionamento era tão “certinho” que não aceitaria um suborno nem para deixar um carro sair sem pagar. Então, o que aconteceu? Uma parte já sabemos. Mike faz tudo pela neta e pela viúva do filho (igualmente um polícia, como o pai, assassinado em serviço). Mas a transformação não é de um dia para o outro. Pressionado pelas despesas da nora, tudo começa por aceitar um “biscate” como guarda-costas de um gajo de um laboratório que quer desviar comprimidos para vender aos gangues (esta substância serve como base à metanfetamina). Quem é que lá está para comprar? Nacho, às escondidas de Tuco. Nacho fica tão impressionado com a postura de autoridade, honestidade e profissionalismo que Mike lhe inspira que recorre a ele para tentar resolver um problema: Tuco, que naquela altura já tem a cabeça tão apanhada pelas drogas que mata homens leais à mínima paranóia. Justificadamente, Nacho receia ser o próximo e quer contratar Mike para matar Tuco. Mike arranja uma maneira melhor de se livrarem dele, mas é assim que se envolve com os Salamancas e acaba enterrado até ao pescoço ao serviço de Fring. A qualquer momento, Mike podia ter escapado, mas no seu caso a culpa é um pedregulho que o esmaga e prende a uma sentença auto-imposta: nos seus dias de polícia, Mike aceitava subornos. Aliás, toda a esquadra era corrupta. Quando chegou a vez do seu filho, Mike aconselhou-o a fazer como os outros se não queria arranjar problemas. Foi assim que o filho de Mike acabou morto e Mike não se consegue perdoar. Talvez por isso Mike sempre tenha exercido uma certa figura paternal com Jesse Pinkman, em “Breaking Bad”, e a repete aqui com Nacho.
James McGill vs Charles McGill
Antes de se chamar Saul Goodman, Saul era Jimmy McGill, irmão do prestigiado advogado Charles McGill, a quem tenta seguir as pisadas. Mas o que Jimmy McGill deseja ardentemente é merecer o respeito do irmão mais velho, e isso nunca conseguirá. Jimmy passou uma juventude de expedientes e pequenos golpes mas decidiu endireitar-se e tirar o curso por correspondência enquanto trabalhava na sala de correio da empresa onde o irmão é sócio: Hamlin, Hamlin e McGill (HHM). Conseguiu completar o curso e entrar na Ordem dos Advogados, tudo sem dizer uma palavra a Charles para a surpresa ser maior (e melhor, julga ele). Quando finalmente atinge este objectivo, conta ao irmão e pede-lhe um emprego na HHM. É aqui que acontece algo que pode ter virado Jimmy para o mal, se não mesmo *a coisa* mais relevante em toda esta escalada descendente. Em vez de uma oportunidade, Jimmy leva um chuto, sendo recusado por outro sócio da firma, Howard Hamlin. Tivesse sido contratado, ter-se-ia endireitado de vez? Nunca saberemos. É daquelas coisas. Mas foi aqui que começou a revolta. Jimmy já era capaz de recorrer a truques e expedientes. Saber que os ricos e privilegiados nunca o vão aceitar entre eles só o justifica mais para contornar a Lei quando lhe convém.
Mas fica pior. Jimmy acaba por descobrir que não foi Howard Hamlin mas o próprio Charles, ou Chuck, como os íntimos lhe chamam, quem lhe deu o chuto. Sem ter sequer a hombridade de lho dizer na cara, mandou o sócio fazer o trabalho sujo. Depois de muito espicaçado, Chuck acaba por confessar a Jimmy que este não pode ser advogado porque a Lei é demasiado sacrossanta para um tipo desonesto que nunca vai mudar. “É como pôr uma metralhadora nas mãos de um gorila”. Isto destrói Jimmy por dentro e envia-o no caminho de Saul. Acontece que Jimmy idolatrava o irmão. Chuck sofre de uma alergia à electricidade (psicológica, mas incapacitante) e vive numa casa a luz de camping gaz, sem frigorífico, sem conseguir sair para não se expor aos campos magnéticos que o “aleijam” lá fora. Durante anos, foi Jimmy quem o visitou todos os dias, logo de madrugada, para lhe levar comida fresca, gelo, mantimentos vários e até o Financial Times. E que recebe como paga? Ser chamado gorila com uma metralhadora nas mãos. Finalmente, Jimmy não desculpa o irmão (que sempre o menosprezou e lhe fez muitas e muitas como esta) e rompe definitivamente com ele. Eu já o teria feito muito antes e aplaudi.
Aqui vou cometer um spoiler. Chuck, furioso consigo próprio porque não conseguiu derrotar Jimmy, e frustrado porque sabe que a sua “doença” é imaginária, suicida-se. Por esta altura Jimmy já o tinha cortado da sua vida, que é o que se faz a pessoas tóxicas, e o suicídio não o afecta externamente. Faz-me confusão que as pessoas ainda esperassem, depois de tudo, que Jimmy sofresse pelo irmão, que o tivesse apoiado mais antes (para levar mais chutos?), porque são “sangue”. Lixe-se o sangue quando é tóxico. Ninguém merece uma vida de humilhação permanente e era isso que Jimmy tinha com Chuck. Até no suicídio, Chuck quis que fosse tudo sobre ele, a pobre vítima do irmão malvado a quem Chuck não conseguiu vencer em tribunal. Isto, sim, foi o que lhe atingiu o orgulho a ponto de se suicidar, e nada mais. Ninguém fica bem nesta fotografia.
Kim Wexler
Por último, a grande surpresa da série, Kim Wexler, ex-colega de Jimmy na sala de correio da HHM que também subiu a pulso na vida. Assistimos a como de amigos se tornam mais do que isso, e começamos a perguntar-nos: se Kim não está em “Breaking Bad”, se Saul Goodman nunca fala dela, o que aconteceu a Kim?
É impossível não nos apaixonarmos por Kim, com os seus defeitos e tudo. Kim começa por ser a bússola moral de Jimmy, avisando-o quando está a ir longe demais, até ao dia em que experimenta ela própria “virar má”. De início é apenas uma brincadeira, um pequeno logro em que ela e Jimmy fazem com que um estranho armado-em-bom lhes pague uma garrafa de tequila de 500 dólares (500 dólares a garrafa!). O que acontece depois é que Kim gostou demasiado da experiência. De amigos, Jimmy e Kim passam a ser amantes e cúmplices, mais tarde marido e mulher. E de novo nos dá um calafrio no estômago: o que aconteceu a Kim?
“Better Call Saul” gira em torno de dois grandes casos jurídicos. O primeiro, encontrado por Jimmy quando andava a ganhar a vida a custo a fazer testamentos a velhinhos por um preço irrisório, até que lhe sai a “lotaria”: descobre que uma grande cadeia de lares cobra demasiado e ilegalmente aos velhinhos, deixando-os apenas com uma pequena “mesada”. Isto transforma-se num litígio tão complexo que envolve a HMM e outras duas ilustres firmas de advogados. O outro caso é quando Kim consegue, sozinha, assegurar como cliente da HMM um banco local, Mesa Verde, ainda de tamanho modesto mas em plena fase de expansão. Desta vez, a culpa é mesmo de Howard Hamlin. Kim esperava ser promovida a sócia, mas é subestimada. O grande erro de Howard foi mesmo esse: subestimar Kim. Uma das firmas envolvidas contrata-a, para grande irritação de Howard, e Jimmy ajuda-a a “roubar” o cliente Mesa Verde à HMM recorrendo a tudo o que foi preciso, legal e ilegalmente. É a primeira vez que trabalham juntos, sabendo ambos que estão a transgredir, mas a verdade é que, ainda mais do que os benefícios materiais, estão ambos a divertir-se imenso. “Tu e eu, juntos, somos veneno”, dirá um dia Kim Wexler a Jimmy, mas ainda não. Agora o alvo é Howard Hamlin. Começa igualmente por ser uma brincadeira, uma conversa de cabeceira, mas Kim vira mesmo para o mal e da conversa passa-se à prática. O caso dos velhinhos explorados ainda não chegou a acordo porque os advogados de cada lado se recusam a ceder. Por cada ano que passe, menos tempo terão os velhinhos para aproveitarem a indemnização. Por outro lado, Jimmy, que aqui já é Saul Goodman, tem direito a um bónus quando o acordo acontecer. Então, porque não dar cabo da imagem de Howard Hamlin, desacreditá-lo, obrigá-lo a chegar a acordo e pôr fim ao processo? Era só isso, sem mais consequências e nem sequer muito graves: insinuações, acusações falsas e desmentíveis. Subitamente, a vida de Howard torna-se um inferno. E ainda assim ele continua a subestimar Kim, julgando que é tudo ideia de Jimmy/Saul, por dinheiro, quando na verdade já é ela quem puxa os cordelinhos, por vingança. (Howard nunca ouviu dizer que a fêmea da espécie é mais letal do que o macho…) Por fim, até Howard abre os olhos e põe o dedo na ferida: “Vocês não me fizeram isto por dinheiro! Vocês fizeram-me isto porque vos está a dar gozo!” Touché!
O homem que viveu duas ou três vezes
Um gozo que acaba em tragédia, e uma tragédia que dá origem ao maior segredo de “Better Call Saul”: a série não é apenas uma prequela; os últimos episódios, filmados a preto e branco, muito à film noir, são uma sequela. A princípio não percebi o preto e branco até me lembrar de Hitchcock. Mas é claro que os génios criativos por detrás de “Breaking Bad” e “Better Call Saul” devem adorar Hitchcock. Até uma das personagens-chave destes últimos episódios se chama Marion, como a personagem de “Psycho” assassinada no duche. Mas confesso que não gostei do preto e branco, o que não passa de uma preferência pessoal de quem cresceu com a TV a cores.
O final também não me convenceu. Não é que não seja válido e chocante, mas depois de tudo e mais alguma coisa Saul Goodman, vencedor, deita tudo a perder por amor? A sério, por amor? A minha natureza cínica revolta-se por dentro. Infelizmente não posso contar mais nada ou explicaria melhor as minhas razões. O que não quer dizer que Saul, novamente transformado em Jimmy McGill, não fosse capaz, mas com recompensas que valessem a pena.
Terminei “Better Call Saul” cheia de vontade de ir ver “Breaking Bad” outra vez, mas mudei de ideias. Não é a mesma série, não é a mesma história, não são as mesmas personagens. “Better Call Saul” vive e completa-se por si própria, não depende de mais nada. E as gargalhadas, ah, as gargalhadas. Quando Jimmy decide convencer o patrão a despedi-lo sem justa causa é o melhor momento de humor da série toda. Mas atenção, isto não é um programa cómico e há aqui passagens tão ou mais pesadas do que no predecessor. Aconselho a toda a gente que gostou de “Breaking Bad” e do humor de Saul Goodman. Genial!
[Actualizado] Cinematografia
Com todo este drama, até me esqueci de falar na cinematografia, e que falha seria não salientar esse trabalho de bastidores. Passa despercebido ao olho leigo, mas nem sequer consigo imaginar a criatividade necessária para filmar cada cena de uma perspectiva de câmara diferente: de dentro de uma mala, de cima da bancada da cozinha, a seguir os passos de Jimmy ou Kim. Nunca sabemos onde a câmara vai estar. O jogo de luz e sombra, o uso de cor e a falta dela, são verdadeiras delícias.
E depois temos momentos quase surrealistas. Lembro-me, por exemplo, da passagem em que Jimmy é obrigado a deitar um cone de gelado de menta para o chão (que vai ser importante mais tarde) e uma formiga solitária o encontra. Seguem-se minutos de beleza e estranheza enquanto todo o formigueiro explora e se apodera deste “festim”, ao mesmo tempo que a formiga solitária atinge o topo do cone. Durante todo este bocado, vimos (e ouvimos?) o mundo da perspectiva das formigas. Tal como na poesia, cada um terá a sua própria interpretação (a haver alguma) do significado deste desvio no âmbito da história. Muita gente diria que esta extravagância não avança o enredo nem desenvolve as personagens e que podia ser cortada. Não posso concordar! A cena das formigas é poesia e a poesia não precisa de justificação.
A cinematografia de “Better Call Saul” é poesia, e está tudo dito.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: Quantas vezes se deve ver uma obra-prima?
domingo, 20 de novembro de 2022
O Convento (1995)
Nunca tinha visto o filme nem lido nada sobre ele (como prefiro fazer sempre). Vi recentemente e vi logo duas vezes seguidas. Primeiro, porque nem acreditava no que estava a ver; segundo, porque queria tentar compreender o final. Consegui o primeiro, não consegui o segundo.
Um casal em crise, Hélène (Catherine Deneuve) e Michael Padovic (John Malkovich) visitam um convento na Arrábida onde este investigador julga poder encontrar provas de que Shakespeare teria ascendência espanhola. A recebê-los, o curador do convento, que se apresenta apenas por Baltar (Luís Miguel Cintra) manifesta imediatamente uma atracção por Hélène. É também este quem lhes apresenta o assistente Baltazar (João Bénard da Costa) e a governanta Berta (a conhecida astróloga Heloísa Miranda num papel delicioso). Para ajudar o professor, Baltar chama também a conservadora dos arquivos, a recatada e religiosa Piedade (Leonor Silveira).
E depois começam a acontecer coisas estranhas. Baltazar e Berta são adoradores do Diabo em pleno convento. Baltar, ele próprio, parece ser o Diabo, ou apenas um demónio, que, qual Mefistófeles a Fausto, quer tentar o orgulho do professor Padovic a aspirar à imortalidade.
Como em todos os filmes de Manoel de Oliveira, há aqui demasiada filosofia para resumir numa crítica curtinha, mas pergunto-me que Mefistófeles teria ainda algum poder para desencaminhar um homem moderno e científico para quem a alma é uma abstracção simbólica.
Nada expressa melhor esta ideia do que a conversa entre Hélène e Baltar, quando este a leva à Floresta das Bruxas (como ele lhe chama) e fala dos tempos em que não havia diferença entre o Bem e o Mal. “Como agora?”, provoca ela, cinicamente. “É melhor agora, porque agora faz-se o Mal sem qualquer escrúpulo", responde ele.
Enquanto Baltar tenta seduzir Hélène, um outro romance começa a despontar entre o professor Padovic e a sua assistente Piedade. Mas será mesmo um romance, ou uma relação de admiração de uma filha para com um pai, como esta confessa a Baltar? Quem está a dizer a verdade, quem está a ser manipulado? Hélène, alegando ciúmes, “promete-se” a Baltar se este levar Piedade à Floresta das Bruxas e a “perder completamente”. O próprio Baltar hesita perante isto, porque reservava outro destino a Piedade: perdê-la num “grande pecado”. Mas aceita o desafio para conquistar Hélène.
Entre as conversas filosóficas, as estátuas de santos mutilados, a adoração demoníaca num convento, o jogo de manipulação, a possibilidade de Baltar ser o próprio Diabo (e parece que é), a música dissonante e estridente a lembrar um filme de terror, eu estava quase a dar 20 em 20 ao filme, quando o fim se torna confuso.
Piedade e Baltar vão à floresta, mas não me parece que este a consiga “perder”. “Tenho saudades de Deus”, diz ela, e o suposto demónio quase tem um ataque de depressão. Entretanto, no convento, o professor Padovic pensa que vê a mulher, Hélène, entrar na sala de arquivos com a aparência de Piedade. Hélène deixa-lhe um livro aberto sobre Helena de Tróia. Subitamente, Padovic decide que Helena de Tróia tinha o poder da ubiquidade, e vai encontrar Hélène na praia. Não conto mais, mas a nível de resolução não temos mais do que isto.
Que significa este final? Que Hélène e Piedade eram uma só e a mesma? Mas como, se foi Baltar quem apresentou Piedade ao casal e já a conhecia antes? E se Hélène já estava no convento muito antes de Padovic chegar (graças à tal ubiquidade), terá sido tudo isto para reconquistar o marido?
Não percebi. E, ao contrário de outros espectadores que gostam de especular, até mesmo aquilo que não tem especulação possível, eu prefiro os finais que oferecem uma explicação lógica. Ou melhor, uma explicação qualquer, mesmo que não seja lógica. Isto não significa que eu tenha preguiça de pensar, ou mesmo de especular. Muito pelo contrário. Gosto da explicação do autor para posteriormente lhe analisar os méritos e deméritos.
Sem dúvida que “O Convento” é um grande filme, sem dúvida de que gostei tanto que vi duas vezes de seguida, mas não me encheu as medidas todas. Tal como Baltar e Piedade, também a história se esfumou em nevoeiro quando tudo até ao momento se prometia materializar com um estrondo.
Por último, um elogio. Tenho-me queixado repetidamente, como AQUI e AQUI e AQUI, dos problemas de áudio nas produções portuguesas mais recentes. Caros técnicos de som, ponham os olhos neste filme. Ou melhor, os ouvidos. Mesmo com a música incessante e estridente, mesmo com as personagens a falar em línguas diferentes, mesmo com os sons de fundo, nunca em “O Convento” se notam problemas de áudio e dicção. Percebe-se tudo, ouve-se tudo, sem ter de se andar com o comando a levantar e a baixar o som constantemente. Para bom entendedor meia palavra basta e está tudo dito.
18 em 20
domingo, 6 de novembro de 2022
San Andreas (2015)
A falha sísmica de San Andreas, que acompanha toda a costa da Califórnia, é para eles o mesmo terror que para nós significa a falha sísmica a sudoeste do Cabo de São Vicente que se acredita ter causado o terramoto de 1755. San Andreas já provocou na Califórnia o grande terramoto de 1906. Tendo em conta que estes fenómenos acontecem aproximadamente de 100 em 100 anos, a questão aqui (para eles e para nós) não é “se” mas “quando”.
“San Andreas” é um filme-catástrofe que retrata o futuro “Big One” de forma muito realista e aparatosa, com a total destruição de São Francisco e a tsunami subsequente. Nem a ponte Golden Gate escapa (aquela mesma que parece a nossa ponte 25 de Abril). Não é um filme aconselhável a pessoas susceptíveis de terem insónias a imaginar terramotos (como eu).
Não há muito mais a dizer deste filme. As personagens só lá estão para termos alguém por quem torcer enquanto o apocalipse se abate sobre a cidade. Saliento os efeitos especiais da tsunami, que mete mesmo medo. Este é um filme que vale pela espectacularidade, não pretende ser um drama. O objectivo é aterrorizar-nos, e consegue, especialmente quando se vive em Lisboa.
Fico sempre perplexa quando, depois de uma destruição a esta escala, alguma personagem diz “vamos reconstruir”. Reconstruir, ali? Se isto acontecer em Lisboa no meu tempo, e se eu sobreviver, podem crer que não me apanham mais aqui.
14 em 15