[contém alguns spoilers]
Quando vemos as duas primeiras temporadas de ”Bates Motel” podemos ter a sensação errada de que servem para encher chouriços. Afinal, toda a gente conhece a história e sabe como vai acabar. Só resta saber como é que se vai chegar lá. Como é que aquele rapazinho amoroso se vai transformar no louco assassino Norman Bates.
No entanto, ao rever estas mesmas temporadas compreendemos a sua importância, e que nos mostram como era a vida “normal” da família Bates antes de tudo descambar numa espiral trágica de destruição. E até percebemos outra coisa, que o jovem actor Freddie Highmore já mostra em Norman um distanciamento dos outros, um pouco à-vontade, uma série de tiques que pareciam normais num rapaz de 17 anos mas que prenunciavam algo de muito mais grave.
Quem diria que seria Dylan, o meio-irmão de Norman e igualmente filho de Norma, que nem sequer existe no filme, a resolver tudo no fim?
Estas primeiras temporadas, com os seus enredos de traficantes de droga (e não só) mostram-nos que por muito disfuncional que seja o submundo do crime, não existe nada mais disfuncional em White Pine Bay do que o que se passa em casa dos Bates. É entre aquelas quatro paredes da casa icónica sobranceira ao motel que o drama ferve, todos os episódios.
Chegamos à terceira temporada e a família disfuncional começa a desagregar-se de maneiras que nunca poderíamos ter adivinhado. De “apagão” em ”apagão”, Norman transforma-se num assassino. Continuamos a empatizar com ele porque Norman também não sabe quem é quando perde a consciência. Foi arrepiante observar como Freddie Highmore se transforma de Norman em Norma em frente ao psiquiatra. Foi arrepiante descobrir que alguns destes encontros com o psiquiatra só aconteceram na cabeça de Norman. Foi arrepiante sabermos que a certa altura Norman saía de casa e comportava-se como Norma, sem que de tal tivesse consciência.
Chegamos à quarta temporada e é altura de a série nos partir o coração. Longe da influência de Norman (que está institucionalizado), Norma e Romero apaixonam-se, e por uma vez na vida Norma experimenta uma relação normal. Se isto não fosse uma tragédia, até poderíamos sonhar com um final feliz. Norma e Romero estão felizes. Romero está tão apaixonado e empenhado na relação que casa com Norma de um dia para o outro, para ela ter seguro para poder internar Norman numa instituição de luxo. Mas é claro que Norman não fica nada feliz quando descobre que a mãe casou com “outro” homem. Como ele próprio diz à mãe: “Nada disto é normal. Éramos só nós dois, lembras-te? O cordão que nos unia para sempre? E agora pões-me de parte como se eu não fosse importante para ti?” Ele tem razão. Muita da culpa da relação disfuncional mãe/filho é efectivamente de Norma. Quando ela se quis afastar, Norman não abriu mão dela. Há muito tempo que aquela relação era tudo menos normal. Por exemplo, foi tudo tão rápido que Norma não quer contar a Norman que se casou, e que se casou principalmente por causa dele, para ter direito ao seguro de Romero, e manda o marido embora por umas noites até ter tempo de explicar o casamento ao filho. Logo nessa noite, Norman está a dormir na cama dela.
Nunca há incesto, de forma alguma. A possessividade de Norman em relação à mãe é de outra natureza, uma natureza que um rapaz mentalmente equilibrado conseguiria ultrapassar, mas Norman não é um rapaz equilibrado. Pela primeira vez, vira a sua fúria contra a mãe. Norma foi avisada, tanto pelo filho Dylan como pelo marido Romero, e chegam a encontrar-se os dois para decidirem um plano de acção. Mas, como eles dizem, Norma é cega em relação a Norman e prefere rejeitá-los a aceitar ajuda contra o filho. O único resultado é a tragédia.
Na quinta temporada, Romero quer vingança. Por sorte de Norman, Romero não a consegue de imediato, deixando o novo assassino em série liberto para continuar o seu reino de terror durante mais algum tempo. Este sim, é o Norman Bates que nós já conhecemos do filme “Psycho” (embora mais novo), com a cena do chuveiro e tudo.
Mas não se pense que Norma (Vera Farmiga) sai de cena. Norma está sempre presente, um alter ego de Norman que “toma controlo da situação” quando Norman se sente assoberbado. Norma, personalidade secreta de Norman, mata para o proteger. Por esta altura, Norman está completamente descontrolado, vivendo num mundo de fantasia na sua cabeça em que Norma está viva, em que até põe comida, todos os dias, à sua cadela que ele próprio empalhou depois de atropelada. É a personalidade completamente desagregada.
Valeu a pena ver as primeiras temporadas, como eu dizia, para percebermos como é que se chegou aqui. Não de um momento para o outro mas passo a passo, observando o miúdo adorável de 17 anos transformar-se num serial killer confuso e desorganizado que mal consegue esconder o que está a fazer.
E depois temos Vera Farmiga, uma força da natureza, tão boa no papel de morta como o era no papel de viva. Porque às vezes o que nos perturba mais são os pormenores: a cozinha de pantanas, a tigela de cão a transbordar, os jantares em que Norman insiste em pôr dois pratos, as conversas em que Norma é incluída embora lá não esteja. Verdadeiramente arrepiante. Conseguimos sentir e partilhar o terror ou desconforto, conforme, de quem se apercebe da situação em que caiu.
Quem diria que o que começou tão normalmente, mãe e filho a chegarem a uma casa nova para gerir o negócio do hotel, ia acabar em tal insanidade? Uma insanidade que nós vamos acompanhando e compreendendo, como se Norman, ele próprio, fosse um edifício que vai ruindo aos poucos até já nem restarem alicerces onde se apoiar.
Recomendo esta grande série e direi mesmo que as três últimas temporadas são imperdíveis para os amantes do género. Se já antes conhecíamos Norman Bates, nunca o olharemos da mesma maneira.
domingo, 31 de outubro de 2021
Bates Motel (2013–2017)
terça-feira, 26 de outubro de 2021
"Elysion", novo livro de D. D. Maio
Disponível em papel e ebook na Bubok: www.bubok.pt/livros/266740/Elysion
Sinopse
Quanto tempo pode durar a felicidade? Ainda é verão, paraíso breve. Reena e o imperador encontram-se no jardim do novo palácio para debaterem filosofia. Depressa a conversa se volta para o passado. Eric, o imperador, sempre pensou que tinha travado uma guerra para sobreviver. Na verdade, o que queria era despeitar o seu pai.
Reena só queria ser uma rapariga como as outras.
Axel só queria ser alguém.
Camilla e Alexander queriam o que não podiam ter.
Gherrard e Sunya já tinham tudo o que queriam.
Hildegaard, sem nada querer, conseguiu esvaziar a sua vida.
Rosa só desejava um lar onde pertencer.
Rurik queria de volta o lar que perdera.
Kelma queria escapar para lá do seu horizonte.
Selma queria poder.
Elena queria vingança.
“Elysion” é um drama no género Low Fantasy, romântico, filosófico e psicológico, com elementos sobrenaturais.
A acção passa-se após “Nepenthos”, “Miasma” e “Solstício”, mas “Elysion” pode ser lido como livro autónomo.
Os leitores familiarizados com a série vão gostar de aprofundar as histórias dos personagens já seus conhecidos, bem como de descobrir personagens novos.
domingo, 24 de outubro de 2021
Convergente / Allegiant (2016)
Detestei o primeiro filme, detestei ainda mais o livro, detestei de tal modo o segundo filme, “Insurgente”, que tive de ir ali à lista lembrar-me se tinha escrito sobre ele. Não escrevi muito porque não há muito para dizer.
Mas vamos lá a um bocadinho de contexto. Beatrice acaba de saber que é divergente e que é a única que consegue manipular as simulações a que a população lá da terra (Chicago, no futuro) é constantemente submetida. Aquilo não é vida, é um jogo de vídeo. A classe dominante quer matar todos os divergentes “porque sim”, e Beatrice tem de fugir e perde os pais. Entretanto descobrimos que o namorado dela, Quatro, também é um bocadinho divergente. (Foi isso, não foi?) Beatrice é a única que pode decifrar uma mensagem surpreendente: há vida fora de Chicago.
Em “Convergente”, Beatrice e Quatro saem de Chicago à procura dessa civilização humana que julgavam extinta e descobrem outra distopia. Afinal o sistema de castas de Chicago foi tudo uma experiência para provar que os seres humanos não podem ser catalogados em estereótipos de personalidade porque todos têm um pouco uns dos outros (olha o que eles descobriram!). Nesta outra distopia, Beatrice é a única considerada Pura, por ser divergente, enquanto que as pessoas mais adaptadas às castas são consideradas Danificadas. (Não me perguntem!) Beatrice é, pois, a prova de que… de que… não sei do quê, porque os autores da experiência são todos divergentes também. A prova de que mesmo num sistema de castas há alguém que não pertence ao rebanho? (Olha o que eles descobriram!)
Aqui perdi-me, confesso. Acho que a principal razão para não gostar destes filmes é um excesso de ficção científica que me distrai da história a ponto de deixar de acompanhá-la. Por exemplo, aquela redoma invisível que impede os habitantes de Chicago de verem que existe mundo para lá da cidade. Um mundo destruído, mas existe. Muito do filme/série se passa em torno destas coisas que não me interessam nada: carros voadores, redomas invisíveis, simuladores, drones, chips. Muito espectáculo, pouco conteúdo. Numa distopia, o importante seria a análise filosófica e sociológica da sociedade disfuncional. Eu quero lá saber da redoma invisível quando o mais interessante mal é abordado!
Com a implosão do sistema de castas rebentou a guerra em Chicago, e Beatrice descobre que os autores da experiência podem intervir mas não o fazem. Ou seja, a civilização em que ela punha todas as esperanças de escapar é tão má, ou pior, do que aquela que já conhecia.
Em Chicago, as coisas estão mesmo muito más. Há execuções sumárias de todos os que participaram na tentativa de golpe de Estado. Parece a União Soviética em plena revolução bolchevique ou a França depois da queda da Bastilha, só faltando as guilhotinas. Mas Beatrice chega, aponta o verdadeiro inimigo fora das fronteiras da cidade, e todo o sangue derramado é imediatamente esquecido. Não, meus senhores, não. É por causa deste sangue derramado na vingança que se dão as guerras civis. Não basta chegar uma miúda e dizer que os Maus são aqueles. Em Chicago já não havia volta a dar. Era a guerra civil mesmo.
E com este momento de história infantil com final feliz que não respeita o que acontece na História real termina esta série medíocre, com um enredo medíocre e personagens medíocres. Uma perda de tempo descomunal.
10 em 20
terça-feira, 19 de outubro de 2021
"Elysion", novo livro de D. D. Maio
Disponível em papel e ebook na Bubok: www.bubok.pt/livros/266740/Elysion
Sinopse
Quanto tempo pode durar a felicidade? Ainda é verão, paraíso breve. Reena e o imperador encontram-se no jardim do novo palácio para debaterem filosofia. Depressa a conversa se volta para o passado. Eric, o imperador, sempre pensou que tinha travado uma guerra para sobreviver. Na verdade, o que queria era despeitar o seu pai.
Reena só queria ser uma rapariga como as outras.
Axel só queria ser alguém.
Camilla e Alexander queriam o que não podiam ter.
Gherrard e Sunya já tinham tudo o que queriam.
Hildegaard, sem nada querer, conseguiu esvaziar a sua vida.
Rosa só desejava um lar onde pertencer.
Rurik queria de volta o lar que perdera.
Kelma queria escapar para lá do seu horizonte.
Selma queria poder.
Elena queria vingança.
“Elysion” é um drama no género Low Fantasy, romântico, filosófico e psicológico, com elementos sobrenaturais.
A acção passa-se após “Nepenthos”, “Miasma” e “Solstício”, mas “Elysion” pode ser lido como livro autónomo.
Os leitores familiarizados com a série vão gostar de aprofundar as histórias dos personagens já seus conhecidos, bem como de descobrir personagens novos.
domingo, 17 de outubro de 2021
Supernatural / Sobrenatural (2005 - 2020)
[alguns spoilers inevitáveis mas não revela o fim, era só o que faltava depois de 15 temporadas!]
Quinze anos. Quinze temporadas. Sem um único episódio mau. Ou melhor, até os episódios mais fracos eram bons. Não é para todos, e “Sobrenatural” é uma das séries mais subestimadas de todos os tempos.
Para quem não sabe, “Sobrenatural” foi pensado para cinco temporadas. Dois irmãos caçadores de monstros (o negócio de família, como eles dizem), um monstro da semana, 23 episódios do mesmo todas as temporadas. Mas a certa a altura a coisa cresceu, muito por responsabilidade dos excelentes actores capazes do mais dramático e do mais cómico, Jared Padalecki e Jensen Ackles, a que brevemente se juntou Misha Collins que imediatamente nos “convenceu” de que era mesmo um anjo.
As interpretações, das personagens principais às secundárias, são extraordinárias e envergonham muitas outras séries mais vistas e ditas de qualidade. (Vou ter de recorrer a cábulas para isto, porque foram muitas, muitas personagens. Quinze temporadas!) Mark Pellegrino foi um dos melhores Lúciferes que eu já vi, em filme ou televisão. O mesmo posso dizer de Julian Richings no papel de Morte (a Morte mesmo, um dos cavaleiros do Apocalipse). Julian Richings fez uma Morte tão sinistra que a partir de agora não o vou conseguir ver de outra maneira. Mas não descuremos a Morte que o substituiu quando a primeira Morte morreu (sim, nesta série a Morte foi para o Outro Mundo), a fantástica Billie (Lisa Berrie) que quase conseguiu ser tão sinistra como o seu “patrão”, mas a actriz é demasiado bonita para ser tão ameaçadora, diga-se a verdade, e mesmo assim fez uma Morte de meter medo.
Não nos podemos esquecer do carismático Crowley (Mark Sheppard), primeiro um humilde Demónio de Encruzilhadas promovido a Rei do Inferno, que sempre que entrava em cena roubava o cenário todo. O que me lembra a mãe dele, Rowena (Ruth Connell), bruxa centenária, umas vezes vilã outras aliada, conforme lhe dava mais jeito.
Receio cometer a injustiça de me esquecer de alguém, porque algo que “Sobrenatural” sempre fez bem foi desenvolver excepcionalmente as personagens, dos heróis aos vilões. Quando alguém morria a gente sentia, e de que maneira. Por exemplo, Bobby (Jim Beaver). Custou-me uns dois episódios a acreditar que ele tinha morrido mesmo. (E penso que foi a primeira vez que Dean disse que se Bobby morresse ele matava Deus, mas toda a gente pensou que era um desabafo do luto…) Mas em “Sobrenatural” ninguém morre mesmo, o que ainda deu umas cenas hilariantes no Céu.
Para não descurar ninguém, remeto os leitores para a página dos créditos do IMDB, onde poderão recordar todos os personagens e actores. Inesquecíveis, mas é impossível lembrar todos de uma vez só para este post. Por mim, tenciono ver a série toda outra vez, desde a primeira temporada. Foi muito riso, muita emoção. Quando via um episódio de “Sobrenatural”, sabia que ia ficar bem disposta. Tirando aqueles em que morria mesmo gente. Esses não eram divertidos. “Sobrenatural” tinha uma faceta cómica, é inegável, mas o drama podia ser pesado.
Mais Sobrenatural não há
Sam e Dean são heróis imbatíveis, mas nunca super-heróis. Como humanos que são, correm todos os riscos que qualquer pessoa correria. Mesmo assim, evitaram o Apocalipse, foram ao Inferno, foram ao Céu, morreram várias vezes, foram ao Purgatório. Para além da legião de vampiros, lobisomens, djinns, wendigos e que tais que eram os ossos do ofício, enfrentaram entidades cósmicas cada vez mais poderosas: demónios, Lúcifer, anjos e serafins e arcanjos, o Rei do Inferno, a bruxa mais competente do planeta, eles próprios quase se transformaram em demónios também (entre outros monstros que os “infectaram”), Hitler (que não é uma entidade cósmica mas é sem dúvida um super-vilão), a Escuridão, irmã de Deus (Amara, Emily Swallow) ─ sim, Deus tem uma irmã! Ainda estou de boca aberta por uma cadeia de televisão americana ter deixado isto passar. Se calhar por causa do humor não perceberam o potencial blasfemo, ou porque a série teve o cuidado de nunca tocar no nome de Jesus, ainda mais sensível para os cristãos do que o próprio Deus, aliás, um Deus muito à Velho Testamento. No fim, os irmãos Winchester tiveram de enfrentar o Ser mais sobrenatural de todos, o Ser que criou o Natural, logo, está acima dele: tiveram de combater Deus!
É verdade que o Deus de “Sobrenatural” não é o “nosso” Deus, antes um escritor falhado e caprichoso que insiste que o tratem por Chuck, mas não deixa de ser o Todo-Poderoso. Como poderiam Sam, Dean e Castiel, auto-intitulados Equipa Livre-arbítrio, contrariar o destino que Chuck tinha delineado para eles e para toda a Criação?
Que mais dizer de uma série que durou quinze anos e quinze temporadas, que nunca se tornou irrelevante, que manteve sempre o suspense e acabou enquanto era boa? Confesso que esperava outro fim. Por muito que os protagonistas avisassem que o fim seria sangrento, eu sempre tive esperança de um final feliz para os rapazes… E foi um fim feliz, mais ou menos. Mas para compreender isto é preciso aceitar a sólida mitologia da série. Quem diria, na quinta temporada, quando a sinistra Morte comentou que um dia Deus também seria “ceifado”, que os variados escritores que vieram depois nunca tivessem deixado cair essa ideia? É tão raro ver um enredo bem construído, sem pontas soltas, especialmente numa série desta longevidade!
Só posso aconselhar a que se veja do princípio, desde o primeiro episódio até ao último. Vou sentir falta do divertimento (muitas vezes negro e amargo) que “Sobrenatural” me trazia todas as semanas. Mas se é para acabar, e tudo acaba, mais vale acabar enquanto é bom.
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
domingo, 10 de outubro de 2021
Contagion / Contágio (2011)
Este foi mais um dos filmes repescados durante a pandemia. Por acaso já tinha visto, mas só me lembrei com a cena em que ambos sopram a moeda no casino.
Em “Contágio”, um vírus mesmo muito mortal, um vírus a sério, mata depressa e mata toda a gente: adultos, crianças, velhos.
E mesmo assim, e apesar de tudo, o meu cansaço pandémico é tal que achei o filme uma seca do princípio ao fim e tive de dividir a visualização em três vezes. Já não há pachorra, por muito que ver a Kate Winslet a explicar o que é o R seja muito mais interessante do que a Dona Graça e a Martinha.
O filme não se enganou muito, excepto em alguns aspectos fundamentais. Previam-se motins, pilhagens, um caos descontrolado. Nada disso aconteceu na nossa realidade, mostrando que as pessoas até são civilizadas (tirando o açambarcamento do papel higiénico, que vai ficar para a história). Por outro lado, no filme, os governos foram extremamente lentos a decretar lockdowns, quando o vírus já estava completamente descontrolado.
Outra grande diferença, porque acho que ninguém previa o contrário na altura, é que o pânico e o medo não foram incentivados pelos media tradicionais, mas antes por um blogger solitário na tentativa de vender a sua banha da cobra como cura. No filme, os governos fazem tudo para evitar o pânico. Quem diria que seria exactamente o contrário na realidade, que seriam os media a propagar o medo para criar audiências e os bloggers solitários os únicos a falar para o deserto, porque todas as vozes divergentes foram silenciadas e chamadas “negacionistas” e pior? O pânico aconteceu porque as pessoas são medrosas e os media aproveitam-se disso, ou as pessoas ficaram medrosas porque os media as massacraram (e ainda massacram) com os números de mortos todos os dias? Ao mesmo tempo que os transportes públicos andam à pinha porque toda a gente sabe que nem o Covid quer entrar nos transportes públicos. Aconteceu-me ter ido num autocarro sobrelotado levar a vacina, só para chegar ao pavilhão e ser recebida com tanta mariquice que até me deixei rir. A minha máscara social foi boa para um autocarro onde o distanciamento social era zero, mesmo zero, tudo colado uns aos outros, mas no pavilhão obrigaram-me a usar uma máscara cirúrgica e a manter um distanciamento de 2 metros. Hipocrisia, loucura, surrealismo.
Mas voltemos ao filme, que afinal até não é muito diferente do que acabámos de viver, daí a minha falta de interesse por ele.
Disseram, a certa altura, que o novo vírus tinha evoluído do encontro do “porco errado” com o “morcego errado”, e que ninguém jamais ia saber como. Mas o filme mostra, e foi a minha parte preferida, A crueldade para com os animais puniu os que os maltratam. Gostei.
De resto, não há mais nada a dizer sobre este filme. Apesar do elenco de luxo (Jude Law, Matt Damon, Laurence Fishburne, Gwyneth Paltrow, Kate Winslet, Jennifer Ehle), todas as personagens são bidimensionais e pouco nos importa se morrem ou não. Mais um para alimentar o pânico e nada mais.
12 em 20
domingo, 3 de outubro de 2021
Child of the Prophecy, de Juliet Marillier
[contém alguns spoilers inevitáveis]
“Child of the Prophecy” é o terceiro livro da trilogia Sevenwaters iniciada com “Daughter of the Forest”. Desde o primeiro livro, fui muito crítica com certos problemas da autora, nomeadamente os anacronismos (o piquenique), a falta de massa crítica das personagens (que foi melhorando), e, acima de tudo, os enredos em que a bota não bate com a perdigota, e não há nada que me chateie mais do que este último. Até parece que autora foi lendo as minhas críticas porque os livros foram melhorando de volume para volume, e desta vez até conseguiu arrancar-me um 5 no Goodreads, o que não acontece frequentemente.
Se calhar porque é o último livro e eu já tinha muita bagagem para trás a influenciar-me, o início de “Child of the Prophecy” é um dos melhores primeiros capítulos que já li na vida.
Chiaran sempre se reuniu com Niamh ainda no segundo livro, onde ninguém os conhecesse (apesar de tio e sobrinha), e tiveram uma filha, Fainne, que foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Ficamos logo a saber que Niamh, incompreensivelmente, se suicidou quando Fainne era pequenina, atirando-se de um penhasco. Este “suicídio” é suspeito, como assinala Bran (o marido de Liadan, irmã de Niamh, num dos seus poucos momentos de brilhantismo), mas mais tarde acabamos por saber tudo, tudinho. Chiaran acredita no suicídio (julga que Niahm não conseguiu viver com a relação amaldiçoada entre eles) e fica completamente destruído.
Adorei a personagem Chiaran, um homem destroçado que vive para a filha, o que lhe resta de um amor perdido. Fainne tem os mesmos poderes de feitiçaria do pai e este faz questão de lhe ensinar tudo o que sabe conforme esta vai tendo idade. Mas de repente Chiaran fica doente (o que é incomum para um feiticeiro), com todos os sintomas de tuberculose. Até então, Chiaran nunca tinha contado a Fainne os pormenores que esta devia saber sobre a sua mãe, a sua avó e a sua família em Sevenwaters. Subitamente, conta-lhe tudo, e diz-lhe que vai mandar vir a avó (a Lady Oonagh) para lhe ensinar as coisas que uma rapariga deve saber, e que depois disso a vai enviar para Sevenwaters. Fainne não percebe, naquela negação de quem não quer ver que o pai está a despedir-se e a fazer planos para depois da morte dele. Isto é daquelas coisas que me fazem chorar, e chorei copiosamente. Quando Fainne lhe pergunta se está alguma coisa mal, ele responde sarcasticamente: “Há alguma coisa que esteja bem?” Como não amar um personagem destes? Mas Fainne demora a perceber porque não quer acreditar no que os seus olhos vêem, o lento definhar que está a acontecer ao seu pai.
Já sabíamos que a Lady Oonagh é uma megera. Mas este terceiro livro mostra-nos realmente que tipo de megera ela é. Aqui tenho de criticar novamente, porque esperava mais profundidade desta vilã. Marillier ainda não se consegue livrar (neste livro) dos vilões 100% malvados, daqueles que só servem para fazer mal. Lady Oonagh, afinal, é outra destas, uma vilã sem interioridade. Fiquei desapontada, confesso. Desde o primeiro livro que a Lady Oonagh é a vilã “número um”, merecia mais tridimensionalidade do que teve.
Pois esta megera não mudou nada, e assim que se apanha sozinha com Fainne diz-lhe que é ela quem está a fazer o filho adoecer (o próprio filho, Chiaran!). Para quê? Para controlar Fainne. A Lady Oonagh quer que Fainne vá para Sevenwaters acabar o que ela própria não conseguiu: destruir Sevenwaters e impedi-los de recuperar as ilhas sagradas.
Finalmente compreendemos, mais ou menos, porque é que as ilhas sagradas são tão importantes, e porque é que a Lady Oonagh disse, logo no primeiro livro, que ela e a Senhora da Floresta eram “a mesma”. Quanto a isso, a conclusão é satisfatória, embora tenha ficado um mistério a pairar. Parece que os feiticeiros pertenciam aos Fair Folk e foram expulsos porque alguém de entre eles usou o seu poder para lançar ao mundo um grande Mal, Mal este que nunca é explicado. Fiquei com a ideia de que quem fez isso foi também a Lady Oonagh, mas é dito tão depressa que tive dúvidas. Não me surpreendia nada que tivesse sido TUDO ela, porque a Lady Oonagh é má como as cobras e só sabe fazer o Mal.
Por falar em Mal, a Lady Oonagh confessa que nunca pensou que os seis irmãos transformados em cisnes (“Daughter of the Forest”) sobrevivessem. O que não é muito inteligente, especialmente tendo em conta que ela sabia perfeitamente que tinha os Fair Folk contra ela e bastante capazes de intervir, como intervieram. Parece que a autora também “leu” as minhas críticas neste ponto porque a questão das “empadas” é abordada, uma das vezes sem graça nenhuma (a rapariga transformada em peixe que é incautamente comida pela família). A Lady Oonagh também não teve um fim nada glorioso, desculpem lá o spoiler.
Fiquei contente por ver que finalmente os irmãos restantes se tinham preparado para combater a Lady Oonagh, ao contrário do primeiro livro em que depois de “desencantados” regressam a casa sem qualquer plano, mesmo a pedir para serem transformados em empadas.
(Faço aqui um aparte para comentar que é mesmo por causa destas incoerências de lógica que os contos infantis raramente resultam como ficção para adultos. Se a Lady Oonagh quisesse de facto matar os enteados não os transformava em cisnes só para os deixar ir, arriscando que os seus inimigos fornecessem o contra-feitiço para a derrotarem. Não, transformava-os em patos e fazia empadas com eles. Mas aqui acabava-se a história e não havia trilogia, não era? Logo, muita coerência teve de ser sacrificada em prol de existir um enredo.)
Fainne foi a minha personagem preferida nesta saga toda, e nem sequer por ser feiticeira. Aqui ela é apenas uma miúda assustada a tentar salvar o pai e os amigos das ameaças da Lady Oonagh, compreensivelmente receosa de não ser tão poderosa como a avó.
O final deixa algo de tristeza, porque afinal, pelo que me parece, mesmo salvas as ilhas sagradas, aquilo que os Fair Folk e os Old Ones mais temiam acabou por acontecer: perdemos a conexão com a espiritualidade da Terra e da Natureza, um assunto muito melhor abordado em “As Brumas de Avalon” que aqui é simplesmente tocado ao de leve. Ou será que o facto de estarmos a ler esta saga significa exactamente o contrário, que afinal pelo menos alguns de nós nos reconectámos, ao fim destes séculos todos? Mesmo sem ilhas sagradas, pois as ilhas sagradas estão dentro de nós.
Mas agora já sou eu a filosofar.
Adorei esta saga, mesmo com todos os problemas que assinalei, e reparei que a autora foi melhorando de livro para livro. Por exemplo, aqui não pôde recorrer ao “truque” de mostrar o que o personagem não presenciava através do dom da Visão, que era muito conveniente em termos de escrita mas que se tornou até abusivo no segundo livro. (Para isso, mais valia recorrer ao Narrador Omnisciente, e daqui ninguém me tira.) Vou continuar a ler a autora na esperança de que mais coisas boas venham daqui.
Recomendo vivamente, e que comecem pelo princípio, “Daughter of the Forest”, embora este terceiro livro tenha sido de longe o meu favorito.
Desta vez fico-me por aqui para não incorrer em mais spoilers. Direi, como conclusão, que as perguntas por responder dos livros anteriores tiveram uma resposta satisfatória e que Chiaran (mais até do que Fainne) ficará no meu panteão de personagens preferidos de sempre.