Na sequência de um naufrágio, bóia no mar o cadáver de um escravo. Um corvo tenta alimentar-se do cadáver. E é só isto. Apesar da temática mórbida, este é um conto que eu identifico muito mais com o realismo do que com alguma sensibilidade a que se possa chamar gótica. O autor observa a cena e comenta-a, “O negro lá continua de bruços sobre as ondas, hirtas as pernas, o cavername do tronco abroquelado em glaciais musculaturas, os ombros sempre unidos, a cabeça debaixo do peito, como em vivo fizera, quando o chicote do amo lhe arava as carnes, delas fazendo suar martírio e sangue”, no que é uma posição política implícita contra a escravatura, e atira invectivas ao corvo como se o pássaro tivesse alguma culpa por se alimentar.
É claro que existe aqui uma metáfora no corvo, “Só o corvo prossegue na sua tarefa exaustinada, e imagem do ódio, ei-lo armando em força a cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade — como esses vencidos que se desforram da humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear os cadáveres dos vencedores”, mas como no caso do conto “O Mistério da Árvore”, de Raul Brandão, faltam-me as referências para identificar a quem se destina a crítica virulenta sem ter de ir procurar fora do conto. É assim que as obras panfletárias ficam datadas e perdem relevância.
Posso estar a ser infinitamente injusta, mas também não gostei da escrita rebuscada do início , versão “o homem que engoliu um dicionário”: “Aos primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente. Para qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma bostela de nuvens cor de chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma banda, erguendo té descobrir sobre a linha do mar uma fímbria d’alva muito pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plaino líquido. E esse plaino amainava e começara a perder os vagalhões… Sobre as águas se erguia, à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babugenta; por cima as nuvens galopavam, embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.” Felizmente este estilo é abandonado assim que entramos na história propriamente dita.
O gótico baseia-se muitas vezes no mórbido, mas nem tudo o que é mórbido é gótico. Na minha opinião, este é precisamente o caso. Não reconheço neste conto o “belo do horrível”, apenas o horrível e panfletário.
É claro que existe aqui uma metáfora no corvo, “Só o corvo prossegue na sua tarefa exaustinada, e imagem do ódio, ei-lo armando em força a cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade — como esses vencidos que se desforram da humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear os cadáveres dos vencedores”, mas como no caso do conto “O Mistério da Árvore”, de Raul Brandão, faltam-me as referências para identificar a quem se destina a crítica virulenta sem ter de ir procurar fora do conto. É assim que as obras panfletárias ficam datadas e perdem relevância.
Posso estar a ser infinitamente injusta, mas também não gostei da escrita rebuscada do início , versão “o homem que engoliu um dicionário”: “Aos primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente. Para qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma bostela de nuvens cor de chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma banda, erguendo té descobrir sobre a linha do mar uma fímbria d’alva muito pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plaino líquido. E esse plaino amainava e começara a perder os vagalhões… Sobre as águas se erguia, à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babugenta; por cima as nuvens galopavam, embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.” Felizmente este estilo é abandonado assim que entramos na história propriamente dita.
O gótico baseia-se muitas vezes no mórbido, mas nem tudo o que é mórbido é gótico. Na minha opinião, este é precisamente o caso. Não reconheço neste conto o “belo do horrível”, apenas o horrível e panfletário.
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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute –
Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.
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