domingo, 28 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 09, 2004

"Amélie", por Klatuu Niktos
Klatuu, bem conhecido dos comentadores habituais do blog, pediu-me que publicasse este conto (ou episódio?) da sua autoria. Espero que gostem.

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Um conjunto destes relatos só poderia ter por título "Diário De Um Vampiro", a este relato isolado só posso intitular "Amélie".


[Tradução. Original em francês.]


França, 8 de Maio de 1704, condado de … … … .

Há três noites enviei Amélie à cidade por causa do livro que mandei vir da Holanda sobre construção de lunetas. Ontem Amélie não voltou e quando saí para a noite encontrei-a na floresta, assassinada, violada e com o corpo já meio devorado pelos lobos. Não pude deixar de sorrir da inevitabilidade do destino e do meu capricho. Faz um ano que Amélie se tornou a minha serviçal, deparei-me com ela junto ao regato, cercada pela alcateia, tentando defender-se com um ramo verde, mal ferida num ombro e numa perna e, na altura, salvei-a, nem sei bem porquê. A verdade é que odeio lobos e, depois de ter morto dois deles e os restantes terem debandado, seria ilógico tornar-me eu o carrasco daquela criança que tinha roubado à morte, mesmo que o seu sangue fresco e doce me inebriasse a vontade. Além do mais não preciso de disputar carne aos lobos!
Ergui-a nos braços e ela agarrou-se muito a mim. Não chorava, apenas tremia e murmurava sem nexo. Era uma criança do povo com doze anos de corpo mirrado por uma ascendência de alcoolismo, fome e promiscuidade. O seu rosto era uma caricatura da miséria. Magro, de nariz esborrachado, as maçãs do rosto salientes e sempre avermelhadas, os dentes mal implantados, com uns olhos pequenos sempre perplexos. Amélie não passava de comida para lobos e o mundo tinha decidido o seu destino logo ao nascimento, mas levei-a para o pavilhão. Deitei-a, e procurei entre as coisas do alquimista e nos seus preciosos livros os sais e a sabedoria com que lhe tratei as feridas. As feridas cicatrizaram depressa e sem pus e Amélie ficou ao meu serviço. O Conde achou natural que eu tivesse uma mulher à mercê dos meus vícios, ainda que feia e sem malícia. Ele mesmo me teria dado as mulheres todas da aldeia, se eu assim o desejasse. O Conde tinha em mim um aliado que valia bem o seu peso em ouro.
Amélie passou a habitar esta lúgubre casa comigo, esta casa que tinha assistido à morte do seu último hóspede, apunhalado pelos esbirros do Conde, que atribuiu umas febres que teve à magia do seu anterior protegido neste pavilhão decadente. A criança feia era demasiado ignorante para entender que coabitava com uma sombra, depressa se acostumou aos meus hábitos, predestinada por uma linhagem nascida para obedecer, mas passou a chamar-me "Rei dos Lobos". Nem achei isso insólito, ela era como um gato, um ser inútil com quem eu partilhava displicentemente esta toca de pedra. Os gatos produzem estranhos e incompreensíveis sons e também Amélie, que diz coisas tontas e canta, sem motivo, canções camponesas.
Nunca a vi triste. Dizia que era muito feliz ao lado do Seu Senhor Rei dos Lobos, que a tratava muito bem, como uma filha, e que, quando ela casasse, lhe daria um dote. Era uma criatura singular, fazia parte das pequeníssimas e insignificantes coisas do mundo, como as moscas que se acumulavam nas janelas ou as mínimas flores silvestres que ela apanhava nos campos, que juntava em ramos e espalhava pelas duas salas e a antecâmara do pavilhão. Raramente a via, a não ser ao crepúsculo, quando precisava de lhe falar, mas muitas noites Amélie esperava-me, quase vencida pelo sono e beijava-me as mãos e dizia-me para eu punir todos os lobos maus e chamava os seus patéticos deuses em minha protecção. Por vezes o sono derrotava-a e dava com ela aninhada no tapete junto à lareira e, nem sei porquê, levantava-a e estendia-a no seu leito e era então que a fome de provar o seu sangue era mais forte, olhava-a por um momento e depois saía para a noite.
Hoje o Conde organizou uma batida na floresta e encontrou os assassinos de Amélie. O bando de salteadores há semanas que aterrorizava as aldeias. Um foi morto na refrega e aos três que foram capturados ordenou o Conde que fossem esfolados vivos e depois mandou cortar a cabeça aos quatro, que fez espetar em postes, e os corpos foram esquartejados e dados aos cães. Dos dois que escaparam coube-me a mim persegui-los, não fosse eu o cão de caça preferido do Conde! Tinham fugido em direcção às colinas e por todo o trajecto senti o seu cheiro fétido, mescla de suor, sangue e medo. Quando um valado os separou lancei-me sobre o último, o outro não veio em sua ajuda, antes incitou a montada com gritos e bastonadas da espada. Aquele caiu de bruços e vendo que já não conseguia montar de novo, porque o cavalo se afastava em pânico, virou-se para mim e decidiu enfrentar-me, resolutamente, como só os néscios podem.
Era um brutamontes com mãos e ombros de lenhador e nem por um instante lhe ocorreu render-se, o seu parco entendimento privava-o de perceber o que tinha pela frente e com um urro desferiu uma estocada que me atravessou um braço. Permaneci imóvel a olhá-lo. Por estranho que pareça não me importo de ser ferido. Apesar de imortal eu posso sentir a dor física, a única dor que posso sentir, e a dor traz-me memórias. O homem tinha mais ímpeto que engenho e a segunda estocada mal me roçou. Parti-lhe o pescoço, soçobrou a meus pés como um capote atirado para o chão, e alimentei-me dele.
O sangue não é apenas vida, é também alma. A podridão, a crueldade cega e ávida, a sujidade do seu corpo em cima do corpo moribundo de Amélie, a escuridão de toda uma vida sem desígnio, os crimes, os roubos, os lugares, as vítimas, as emoções elementares, comer, fornicar, rir, invadiram o meu ser. Mesmo sabendo que estou mais próximo das feras que dos homens, como não poderia sentir-me superior a ambos? Se eu mato é porque faço parte do códice do mundo e pertenço ao ministério superior da morte, é em mim que terminam todas as ilusões de poderio e a majestade do tempo afirma o seu reino, nunca me sinto perverso, nunca me deleito ou regozijo, sou o decreto vivo que lembra às criaturas que o pó as exige e refreia e é tudo.
A sombra rápida no encalce de um homem, não era mais um vampiro, era o Rei dos Lobos, o vingador de Amélie! O escuro da noite era como um rio sobre cujas águas eu corria. O foragido tinha-se apeado no sopé das colinas e tentava escapar por entre a vegetação densa. Rodeei-o e a noite rodou comigo. Dentro do antiquíssimo silêncio que liga o caçador e a presa o homem deteve-se, ergueu a espada e virou-se de repente para mim. Nesse olhar todas as suas convicções se desfizeram como fumo, a vida era um inferno premeditado e tudo era falso. O seu rosto começou a transfigurar-se e abanava a cabeça, incrédulo e demente. Já estava morto e sabia-o. O Conde tinha-me informado que o chefe do bando era versado na arte da guerra e um exímio esgrimista, sabia ler e tinha viajado, um burguês caído em desgraça.
Fez menção de se defender, mas todo o seu corpo tremia e o rosto, cada vez mais transtornado, revelava agora a caveira oculta que sempre tinha espreitado aquele dia, o último, o dia do horror absoluto em que o nada abriria as mandíbulas por sobre o saco de fel que era a sua alma. Com um gemido largou a espada e ajoelhou-se, uivava e chorava e pedia perdão e pedia à Virgem! Aquele triste e nojento pedaço de carne, que nada tinha visto de sagrado na inocência de Amélie, invocava agora um folhetim de judeus devorado pelas eras. Com as garras da mão esquerda ceguei-o de um golpe.
O homem tombou e soluçava alto, abençoava-se e maldizia-se, ora erguia o tronco ora rastejava de lado como uma cobra espezinhada e com os dedos rasgava a terra. Porque chorava sem olhos acreditaria que uma qualquer eternidade o esperava em vez do tenebroso vazio sem fim? Com a boca cheia de sangue e de lama sentou-se e a língua saiu-lhe para fora num ululo sem nome. Que patética espécie é a humanidade! Agarrei a espada do chão e trespassei-lhe o peito.
Deixei-o ali, para que as feras esfaimadas construíssem a sua eternidade, e trouxe comigo, pela rédea, a montada de Amélie, um presente do Conde que eu tinha posto ao seu dispor. Nunca me sento num cavalo, a farsa de partilhar o mundo com os homens não me leva a tanto, nenhum propósito teria montar um animal que é menos veloz do que eu. A noite corria a meu lado e parecia contente. Amélie estava vingada.
Pelo caminho os lobos e os mochos espreitavam-me e mais de uma vez tive vontade de atacar aquele alazão branco, de sentir-me invadido pela inconsciência dos brutos e a sua vida mortal. Acho as bestas superiores aos homens, têm uma pureza de pedra e não conhecem a culpa. Entre os livros do alquimista há um de que gosto particularmente, um com gravuras de animais do país dos cafres, para além do oceano. Gostaria de ser um leopardo e não haver nada em mim que entendesse o homem, essa doença de pele do mundo que espalha a guerra pelas terras e pelos mares. A sua única utilidade é justificar a minha existência e confirmar o meu destino.
Pensava no sangue do cavalo, mas também no sangue de Amélie. O sangue de Amélie a ensinar-me a cantar canções camponesas e a vaguear pelos prados, leve como a brisa, e achar isso belo. Quando cheguei ao pavilhão sentei-me no alpendre, virado para o sol nascente. O dia fechava-se para mim e o tempo fechava-se sobre estes ferozes eventos. A morte estende o seu domínio sobre todos os sonhos e eu, seu servo, só poderia aquiescer. Tudo seria devorado, este pavilhão lúgubre, estes dias azedos, este Conde cruel amado pelo povo. Eu continuaria e só dentro de mim a lembrança do que se passou aqui teria o seu epitáfio, nos infindos rolos da minha memória qual vasto cemitério, onde, por entre os crânios, um pobre ramo seco de flores silvestres seria a breve vida de Amélie.
Nos escritos que deixou, o alquimista delira que os orbes acima de mim são as raízes de múltiplos seres. Se assim fosse, que terrores infindos esconderia a escuridão dos céus?

Klatuu Niktos

Publicado por _gotika_ em 11:40 PM | Comentários: (28)


“You could call me a Goth, I think”

(Lestat:) “My longing for the microphone is gone, but I won’t give up the fancy clothes. I can’t give them up. I’m the prisoner of capricious fashion and am actually quite plain tonight. I think nothing of piling on the lace and the diamond cuff links, and I envy Quinn that snappy leather coat he’s wearing. You could call me a Goth, I think” He glanced at me very naturally, as though we were both simple humans. “Don’t they call us snappy antique dresses Goth now, Quinn?”
“I think they do”, I said, trying to catch up.

“Blackwood Farm”, Anne Rice


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Queridíssimo Lestat, ser gótico não está na roupa que se veste. É certo que o visual é muito importante para nós góticos - e não preciso de lhe explicar porque sei que nos compreende perfeitamente - mas não há nada mais blasfemo que uma criatura insegura e solitária começar a vestir-se “assim” para se sentir integrada durante os anos de caça à queca.
Bem sei, Monsieur de Lioncourt, que a sua caça é outra. Quem sou eu para criticar as necessidades alheias?... E compreendo que só no meio de nós a sua estranheza de aparência passe despercebida aos simples mortais, e que isso lhe deva ser muito conveniente.
Mas não esqueça, senhor Lestat, que os verdadeiros góticos - um pouco à semelhança da sua “gente” - também se reconhecem uns aos outros à distância. Parece que estão sempre distraídos, mas garanto-lhe que estão a controlar tudo e mais alguma coisa.
Não serão as rendas e os botões de punho que o salvarão, Lestat de Lioncourt. Está avisado: pode parecer igual a nós para os outros todos, mas nós sabemos quem é quem. Não passará despercebido. O verdadeiro gótico sabe o que é pó de arroz branco e o que é pele. Tenha cuidado. Use o pó de arroz. Não custa nada.
Mas não desista já! Apesar da nossa inegável frieza para com estranhos, nunca o movimento gótico deixou de acolher um irmão espiritual. O caminho é árduo e implica duras provas... Anos e anos de música e noite, de noite e música. Muito dinheiro gasto em roupinha. Muitos acessórios, muitos sapatos, muito verniz. Muitas horas à frente do espelho a pintar a cara e a arranjar o cabelo. Mas tempo é o que não lhe falta, deveras? Insista. Não desista. Uma destas noites alguém falará consigo. Se tiver sorte, talvez até um verdadeiro gótico lhe dirija mais do que três palavras e dois olhares furtivos.
Não espere que lá por ser um verdadeiro vampiro os góticos o acolham de braços abertos. Era só o que faltava. No movimento gótico são todos iguais: brancos e pretos, homens e mulheres, bruxas e vampiros. São muitos anos a bater à porta para entrar. É muito eyeliner.
E lembre-se, senhor “eu sou o vampiro Lestat”, gótico a sério é o Corvo porque está morto. Gótico a sério é o seu amigo Louis, que nunca disse que é gótico e se vai chorando da vida entre duas dentadas.
O tempo só recompensa os perseverantes. E a recompensa também não é nada de jeito. Por isso é que a maioria dos candidatos a gótico acaba por ir parar às Docas.
A recompensa é apenas uma noite atrás da outra. Poucos são os chamados e menos ainda os escolhidos. Só se sente em casa quem está em casa.
Se é a sua casa, entre à vontade e sente-se onde quiser.
O Gótico abraça quem abraça o Gótico.

Publicado por _gotika_ em 12:32 AM | Comentários: (16)

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Chelsea Quinn Yarbro, “A Baroque Fable”

Um conto para crianças pequenas e crianças grandes

Como é que eu acabei a ler um conto de fadas? Por acidente. Procurava histórias de Chelsea Quinn Yarbro, de quem aqui já falei a propósito da saga de vampiros por que é mais famosa, quando me deparei com este título, “A Baroque Fable”. Imaginei que o título fosse irónico, até porque não deve melhor época para a sátira do que a época barroca, e conhecendo a autora como já conhecia até agora era por aí que andavam as minhas expectativas.
Ao começar a ler, para meu espanto, apercebi-me de que isto não era o conto satírico e socialmente crítico que eu esperava, mas antes um conto de fadas, para crianças! Ou melhor, como se diz na classificação de filmes familiares, “para todos”.
Admito que muitas vezes me divertiu, e que até ao fim tive medo que fosse uma armadilha, e que de repente acabasse com um final adulto, sangrento, horrível. E conforme me ia embrenhando na história (uma história simples e contada de forma simples) cada vez me apetecia menos que acabasse mal, porque afinal é um conto de fadas e os contos de fadas não podem acabar mal. Como todas as crianças sabem, e nem devem desconfiar de outra coisa.
Estou a fazer um post sobre este “Baroque Fable” com um intuito diferente do que geralmente que me leva a partilhar as minhas leituras por aqui. Desta vez falo para aqueles que tem miúdos e que precisam de histórias de jeito (saliento, de jeito!, para os entreter).
Não faço ideia se Chelsea Quinn Yarbro tinha a intenção de escrever para crianças ou se queria apenas produzir uma história divertida, com bruxas e feiticeiros, dragões, trolls, e cantigas, algo que se pode ver num filme ou desenho animado. Aliás, admiro-me que esta história ainda não tenha sido adaptada ao cinema porque é muito mais interessante do que as coisas insonsas que se dão actualmente às criancinhas. As criancinhas não gostam de coisas insonsas. Gostam de histórias que parecem histórias de adultos, daquelas que só os adultos sabem que o não são. Esta é uma dessas.
A bruxa má Alfreida, que mora num bosque escuro e assustador como devem ser os bosques onde moram as bruxas, transforma a sua bonita e boazinha criada Esmeralda num dragão. Porquê? Só para provar que tem talento.
Ao tomar conhecimento disso, no reino de Alabaster-on-Gelasta, o jovem príncipe Andre decide imediatamente ir caçar o dragão, o que nesta versão soft significa arranjar um animal de estimação. O rei, cujo passatempo é fazer malha, aprova a coragem do filho, enquanto a sua mãe, a rainha histriónica, faz uma cena. É bom para os putos saberem que nem sempre as mães histriónicas que gritam e choram e se fazem de vítimas devem ser levadas a sério.
A princesa, de nome Felicia, uma rapariguinha emo, que está sempre sempre aborrecida porque no reino nunca acontece nada, decide ir com o irmão para espantar o tédio, e é assim que o príncipe e a princesa, e o pasteleiro do reino (porque o mais importante quando se caça dragões é levar o pasteleiro que faça o pequeno almoço), viajam para a floresta sombria, sozinhos. O dragão não é difícil de caçar, porque não é um dragão mas uma rapariga encantada (e desejosa de ser caçada pelo príncipe). Mais difícil é para os heróis fugirem do reino tirânico de Addlepate, onde o príncipe é raptado pelo resgate, mas nada que a princesa aborrecida e a rapariga-dragão não consigam ultrapassar sozinhas e salvar o príncipe.
No fim, e conto o fim para os meus leitores não pensarem que afinal isto não é para crianças, o pasteleiro é na realidade um príncipe (e já pode casar com a princesa), o outro príncipe descobre que o dragão não é um dragão, e até a bruxa má (que afinal não é assim tão má) encontra o amor da sua juventude. E todos viveram felizes para sempre.
Recomendaria esta história a adultos? Só àqueles que ainda têm, lá no fundo, no fundo, um coração de criança, e sentido de humor, e miúdos pequenos insatisfeitos com “histórias para crianças”. Os miúdos vão adorar, e os pais vão sorrir com as insinuações que só eles vão perceber. Para toda a família.








quarta-feira, 24 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 07, 2004

“Mulholland Drive”: A poesia filmada




David Lynch. 2001.

Ficar em casa num sábado à noite para ver um filme não faz parte dos meus hábitos. Mas ainda não tinha visto “Mulholland Drive”. Dou o tempo por mais que bem empregue. Não é todos os dias, anos, décadas, que se vê um filme assim.
Há muito tempo que David Lynch deixou de ser “bom”. Passou o estatuto de excepcional, de genial, e agora não faz cinema, faz poesia fílmica.
A piada desse ano, na gala dos óscares, foi: “criámos uma nova categoria para quem entendeu ‘Mulholland Drive’”. Digo eu que os últimos filmes de David Lynch não são tanto para compreender logicamente como para interpretar. Cada cena fala por si, como cada poema de um mesmo livro. Se por acaso o primeiro poema fizer algum sentido em relação ao último, é interessante, mas não obrigatório.
O que se passa em “Mulholland Drive”? Um sonho? O último voo da imaginação à beira da morte? Uma sequela das referências já lançadas em “Lost Highway”? Espera-se uma trilogia? Na verdade, não importa. Como se diz o filme, “tudo é ilusão”. A própria memória que temos das nossas vidas pode não passar da ilusão de uma série de imagens mais ou menos ficcionadas que por qualquer razão decidimos guardar para revisitar mais tarde. A continuidade, a rotina, o dia a seguir ao outro, isso raramente guardamos e se o fazemos é porque esse todo ajuda a recordar uma parte especial.
Sim, a parte, aqui, é mais importante do que o todo. Cada imagem é por si só uma história completa.
Nem toda a gente gostará do estilo. Devem-me perdoar até uma certa falta do entusiasmo que David Lynch merecia mas acontece que é um amor antigo. Quando se ama algo/alguém há muito tempo, a reacção já não é tão efusiva como nos tempos de paixão... E quanto a mim, David Lynch - que é simplesmente o autor do meu filme preferido, “O Homem Elefante” - pode agora dedicar-se tranquilamente à sua poesia de sombras, medo e beleza. Eu continuo a “lê-lo” com todo o prazer.

Publicado por _gotika_ em 07:06 PM | Comentários: (6)

sábado, 20 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 05, 2004


“Blood and Gold” - a história de Marius

Venus and Mars
Painter: Sandro Botticelli
(1445-1510)


“Blood and Gold” (“Sangue e Ouro”, Anne Rice) é a história do vampiro Marius, um ser tão antigo quanto Cristo, ou mais ainda.
O livro percorre os últimos 2000 anos pela perspectiva de Marius. É uma leitura extremamente excitante para quem gosta de História (quem não gosta pode sempre passar à frente...). E por ser a história de um dos patriarcas dos vampiros, um Filho dos Milénios (“Child of the Millenia” no original), “Blood and Gold” pode servir também como um excelente resumo das Vampire Chronicles no seu todo, uma espécie de sumário das origens da maioria das personagens que a seu tempo se vão cruzando na vida de Marius e compondo a inesperada teia de relações que percorre a saga.
Disse eu aqui, quando comentei “Merrick”: “É o melhor livro de Anne Rice que já li”. OK, risquem. Actualizem. As mesmas palavras vão agora para “Blood and Gold”. É mesmo verdade que os escritores envelhecem como o vinho do Porto. Gostei de ter demorado a ler “Blood and Gold”, gostei de ser obrigada a parar para reflectir, gostei da profundidade dos diálogos e das emoções das personagens.
E ainda não li nada de Anne Rice escrito depois do 11 de Setembro... A curiosidade mata-me.


A data precisa do nascimento de Marius não nos é revelada, apenas que nasceu no reinado do Imperador Augusto - que durou nada mais nada menos do que 44 anos (de 31 Antes de Cristo a 14 Depois de Cristo).
Por esta altura nasceu Marius, um rico Senador da Roma Imperial, um intelectual do seu tempo, um estudioso que se dedicava às viagens e à escrita de volumes e volumes de História. Não havia em Marius a mais pequena sombra de escuridão ou perversidade. Nada poderia fazer supor que fosse subitamente arrancado à vida para uma existência que lhe era completamente alheia só porque falava línguas, conhecia o Egipto e era elegível para a missão de resgatar os primeiros pais de todos os vampiros.
A sua existência tornou-se no balanço entre o sangue que tirava e o ouro que dava de volta (o título é eloquente), numa tentativa constante de preservar os inocentes e satisfazer as suas necessidades assassinas apenas através do sacrifício do Malfeitor. Como o próprio Marius reconhece, alimentar-se apenas daqueles que julga piores que ele próprio é a sua desculpa para manter uma consciência limpa.
Apesar desta tragédia, desta injustiça que lhe foi imposta contra a sua vontade, deste pesadelo que se abateu eternamente sobre ele, Marius nunca se revolta contra a existência, nunca desespera, nunca perde o gosto pela vida. Nem depois dos golpes mais dolorosos dos seus inimigos, nem da perda sucessiva de todos os que ama, nem da mais completa solidão.
Admiro Marius e as pessoas como Marius, que nunca se apaixonam pela morte por mais terrível que se torne a vida. Onde poderá Marius ter ido buscar tanta força, tanta resistência? Ao incorruptível sentido de Justiça, à sua inabalável confiança no progresso da Humanidade, à inalienável Bondade do seu carácter?
Como é que Marius nunca enlouquece, nem nos momentos mais negros? Qual é o segredo desse equilíbrio? Nas antípodas, temos um Louis depressivo para quem a crueldade da natureza é por si só motivo de sofrimento insuportável. Pelo meio, temos um Lestat maníaco-depressivo que, como a doença indica, oscila entre períodos de profunda depressão e de perigosa euforia. Qual é, então, o segredo de Marius?


Pensamento do dia: quem são os teus deuses?
Marius começa a contar a sua história quando encontra um outro vampiro antigo, o viking Thorne, que tinha estado adormecido e afastado do avanço da civilização durante séculos e séculos.
“Quais eram os teus deuses?”, pergunta-lhe Thorne.

---------- Imaginem agora o mesmo diálogo daqui por uns mil, dois mil anos. A mesma pergunta da mesma criatura viking. A resposta de um ser do século XX deste lado do mundo: “Não existem deuses mas um só Deus, Absoluto, Único, e o Seu filho Jesus Cristo”. Pergunta alguém do ano 3000/4000: “O que é deus?” ------------


The evil doer, the little drink e a consciência pesada
Quando se é um vampiro e se procura o que Marius chama uma “paz com o mundo”, uma consciência tranquila, é preciso elaborar um esquema de moralidade em que o sacrifício da vida humana seja justificado. Para Marius, isto significava dar caça apenas ao Malfeitor (o famoso “evil doer” no original). Thorne preferia a “pequena bebida” (“little drink”), pousando sobre mortais como um colibri de flor em flor mas sem lhes tirar a vida. Marius e Thorne vão juntos a um night club - penso que é um night club porque é um local onde os casais dançam agarrados - e alimentam-se dos presentes sem lhes causar a morte. Mas esta proeza requer já uma perícia de séculos. No mínimo, requer que o vampiro se disponha a esse trabalho. E requer o tal sistema moral que, por exemplo, Louis subverte completamente.
Para Louis, exactamente ao contrário de Marius, o imoral é escolher as vítimas, é julgar este ou aquele como “pior que eu”, é decidir quem vive ou quem morre. Por isso a própria Rainha dos Malditos, Akasha, o acusou de ser o mais predatório de todos os vampiros por não fazer distinção entre velhos e crianças, homens e mulheres, bons e maus. Louis simplesmente tomava para si o primeiro que se atravessasse no seu caminho. Mas não todos. Só os estranhos. Mesmo na sua recusa de julgar, era incapaz de suportar na consciência a morte de alguém que o tinha como amigo.
De Louis, diz Lestat em “The Tale of the Body Thief”:
“For a long moment, I spied upon him. I loved to do this. Often I followed him went he went hunting, simply to watch him feed. The modern world doesn’t mean anything to Louis. He walks the streets like a phantom, soundlessly, drawn slowly to those who welcome death, or seem to welcome it. (I’m not sure people really ever welcome death.) And when he feeds, it is painless and delicate and swift. He must take life when he feeds. He does not know how to spare the victim. He was never strong enough for the “little drink” which carries me through so many nights; or did before I became the ravenous god.”

-------- À parte, um poema de amor:
(Lestat)
His face, quite thin and finely drawn by nature, an exquisitely delicate face for all its obvious strength, was gorgeously flushed. He had hunted early, I’d missed it. I was for one second completely crushed.
Nevertheless it was tantalizing to see him so enlivened by the low throb of human blood. I could smell the blood too, which gave a curious dimension to being near him. His beauty has always maddened me. I think I idealize him in my mind when I’m not with him; but then when I see again I’m overcome.
Of course it was his beauty which drew me to him, in my first nights here in Louisiana, when it was a savage, lawless colony, and he was a reckless, drunken fool, gambling and picking fights in taverns, and doing what he could to bring about his own death. Well, he got what he thought he wanted, more or less.
-------- Peço desculpa pela interrupção. O artigo segue dentro de momentos. Continuo a recusar-me a traduzir “The Tale of the Body Thief”. Gosto demasiado do original.

Lestat, como o próprio diz, não acredita que alguém realmente deseje a morte. As suas vítimas são delicadamente escolhidas por serem perversas... ou por serem boas. Ou por outra amoral razão qualquer que se prende mais com uma escolha estética ou um puro capricho do momento. Lestat é sempre imprevisível, até quando mata.
Armand, por outro lado, e ao contrário do que pensa, sempre conseguiu ensinar a Louis o seu método de procurar levar a morte aos que desejam morrer - o que não deixa de ser uma infernal doçura. Em “Merrick”, Louis chega mesmo a escutar as preces dos mortais e atendê-las. Por isso lhe chamam também “Merciful Death” (morte misericordiosa).
David, mais poderoso embora mais novo no Sangue, entretêm-se com a lendária “little drink”.

------- Tenho para mim, apesar de toda a minha hipócrita moralidade cristã, que se fosse um vampiro acabava por fazer como Lestat: a vitória do capricho. Qual moralidade, qual Malfeitor. Nada de caçar ratos, como Louis fazia no princípio, antes de conseguir suportar a morte humana. Nada de me armar em Anjo Exterminador do Juízo Final, como Marius. Mas pouparia as crianças. As crianças merecem uma hipótese de me provar que estou errada, que o ser humano não é pior do que os animais. --------


Os segredos de Marius
Infelizmente para mim, Anne Rice prefere descrever as antigas civilizações de esplendor, progresso e espalhafato. Roma Antiga, Bizâncio, Egipto, o Renascimento, o Barroco. Da negra Idade Média, ou até do negro século XX durante a guerra, Anne Rice não gosta de falar. É pena.
E assim Marius salta toda a sua existência na Idade Média, queixando-se da Peste Negra e das mentalidades atrasadas desse tempo, até da arte medieval - sem deixar de mencionar que o Gótico era algo de novo e fascinante - até chegar ao Renascimento. Os artistas voltaram-se para o seu tempo, o tempo de Marius, em busca de inspiração. As deusas e deuses da Grécia e Roma antigas voltaram a embelezar os palácios da Europa. Era apenas natural que Marius ficasse irremediavelmente perdido de amores pela arte da época. E por Boticelli. De facto, Boticelli entra na história, conversa com Marius, e é para Boticelli que Marius inventa o sobrenome “de Romanus”. Sandro para aqui, Sandro para ali, foi por muito pouco que Marius, apaixonado pelo homem e pela sua arte, não transformou Boticelli num vampiro. E hoje teríamos uma Vénus a nascer das ondas com dentinhos de vampira - o que não deixava de ser muito mais interessante do que a monotonia do quadro original. (Mas aqui perdoem-me a blasfémia de uma mentalidade do século XX!...)
Marius volta a entrar no mundo dos mortais ao comprar um palácio em Veneza onde abriga jovens rapazes aprendizes da pintura e das outras artes, e onde conhece Amadeo (Armand) e Bianca.
Marius, Amadeo e Bianca são protagonistas das cenas mais quentes de todas as Vampire Chronicles. Há até um episódio a três, quando os dois homens já são vampiros e Bianca é apenas mortal, que... Não. Este é um blog decente. E por ser um blog depressivo, passemos para o episódio em que os vampiros satânicos de Roma destroem a casa e a vida de Marius por o considerarem um herege sem Deus - será uma piada ao Vaticano? Não é o coven de Roma que obriga os seus vampiros a viverem uma vida de eterna penitência e sacrifício? Não é o coven de Roma que canta incessantemente o Dies Irae? Não é o coven de Roma que corrompe a fé do inocente Amadeo e a converte no fanatismo do monstro Armand?

(Marius, no Renascimento)
“De facto, eu estava a desfruir de um Tempo Perfeito. Perguntava-me se para cada imortal haveria um Tempo Perfeito. Perguntava-me se corresponderia ao auge da vida dos mortais - aqueles anos quando se é mais forte e se vê as coisas com a maior clareza, aqueles anos em que uma pessoa pode mais fielmente confiar nos outros, e procurar alcançar uma felicidade perfeita para si próprio.
Boticelli, Bianca, Amadeo - estes eram os amores do meu Tempo Perfeito.”

------- Melhor do que viver um Tempo Perfeito é ter a consciência de que ele está a acontecer, diria eu. Nada mais triste do que só dar por ele quando já passou. --------

Marius seria muito provavelmente um grande homem de Estado ou das Artes ou do Saber se não tivesse sido subitamente levado para as trevas. Mesmo do Outro Lado, continua a ser respeitado como uma espécie de Senador do mundo dos vampiros, um sábio, o antigo guardião dos Primeiros Pais, um ser digno de confiança pela sua noção de Honra e Justiça.
Mas não perfeito. Conhecido pelas suas fúrias memoráveis, por ser demasiado controlador e demasiado orgulhoso, Marius perde todos os que ama exactamente porque a sua possessividade acaba por asfixiá-los.
Não se pode ser bom a tudo.
Marius termina sozinho, no fim do século XX, tirando as ocasionais e breves visitas da sua eterna Pandora e do seu anjo de Boticelli, Armand (Amadeo). Mas nunca mais juntos. Talvez a relação entre eles já seja tão íntima que não permite a harmonia. É sabido que a proximidade arruina o amor mais depressa do que a distância...
Na sua casa, Marius recolheu o vampiro Daniel, o mesmo rapaz da “Entrevista” a Louis, o mesmo que Armand trouxe para os vampiros, porque Daniel está pura e simplesmente louco e não pode ficar sozinho - diz-se que foi do alcoolismo da sua vida mortal. Mais uma vez, Marius é o bom samaritano, o santo, o anfitrião. O eterno solitário.
Tal como as pessoas não conseguem compreender a melancolia de Louis, eu não percebo o amor que Marius tem pela vida. Nunca desejou a morte? Porquê? Qual é o seu segredo?
O segredo de Marius está-me vedado.

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terça-feira, 16 de abril de 2013

Gotika: arquivos Maio 2004

maio 28, 2004

Clássicos seleccionados II

Sergei Prokofiev “Montéquios e Capuletos (Romeu e Julieta)”
Se alguma obra musical pode descrever a malvadez, é esta ameaça em forma de música que está presente no conhecidíssimo trecho de “Romeu e Julieta”. Correndo o risco de fazer poesia, ouvem-se punhais nas notas tocadas pelos violinos. O crescendo é um pouco épico e muito inquietante. A tragédia espreita.
Prokofiev nasceu a 23 de Abril de 1891 e morreu a 5 de Março de 1953. É considerado um compositor neo-clássico. O bailado "Romeu e Julieta” data de 1935.

Richard Strauss “Alvorada (Assim Falou Zaratrusta)”
É difícil ouvir certos temas sem lhe associar imagens transmitidas pelos media. O que, de certa maneira, é uma pena. A música tem que valer por si só, tem que desenhar imagens na escuridão e não ser o acompanhamento de imagens alheias. Aqui não consigo dissociar uma coisa de outra e dou por mim a imaginar encontros imediatos com naves espaciais... E o mais grave é que nem sei de onde tirei a ideia.
Richard Strauss nasceu a 11 de Junho de 1864 e veio a morrer a 8 de Setembro de 1949. Biografia e algum som aqui.






Giuseppe Verdi “Coro dos Escravos (Nabuccodonosor)”
Incluída na ópera “Nabuccodonosor”, de 1842, a canção dos hebreus escravizados na Babilónia, que recordam Sião e choram a pátria, está cheia de nostalgia, esperança e desejo de redenção em vez de revolta: “Que inspire o Senhor, ao sofrimento, virtude”.
Verdi era um compositor popular já no seu tempo. Queria encher os teatros com o povo. A sua música era extremamente apelativa e facilmente ficava no ouvido. Enfim, foi um percursor da pop... Acima de tudo, o “Coro dos Hebreus” é uma música bonita. Com tudo de mau e de bom que isso implica. Geralmente implica que na maior parte das audições não aquece nem arrefece.
Verdi compôs na época romântica. Nasceu a 10 de Outubro de 1813 e morreu a 27 de Janeiro de 1901.

Giuseppe Verdi “Dies Irae (Requiem)”
O Dies Irae é uma das partes de um Requiem. A Missa de Requiem de Verdi data de 1874.
Um requiem é uma missa católica usada em funerais e na liturgia do dia de Fiéis Defuntos. O seu nome deriva das palavras introdutórias, “Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis”. É diferente da missa normal por substituir certas partes mais gozosas, como o Aleluia, por outros hinos, como precisamente o Dies Irae (“Dia do Julgamento”). Este hino aterrador sobre o dia do Juízo Final foi escrito por Thomas de Celano, um dos doze discípulos de Francisco de Assis, por volta de 1250.

Giacomo Puccini “Nessum Dorma (Turandot)”
Ouvida num estado de paixão, esta “canção” deve ser deliciosa. Num estado de não paixão, faz-nos querer apaixonar. O que também é delicioso.
Mas não deixa de ser uma música bonita (ver acima). Pior mesmo é a choraminguice da “Madame Butterfly”, do mesmo Puccini - não há pachorra.
Puccini nasceu a 22 de Dezembro de 1858 e morreu a 29 de Novembro de 1924. É considerado um moderno. Devido à morte do compositor, a ópera “Turandot” também ficou inacabada.

Antonio Vivaldi “As Quatro Estações, Verão”
Primeiro, foi preciso de facto apagar da mente todas as imagens televisivas de borboletas a esvoaçar e flores a desabrochar. Depois, sim, fez-se espaço para apreciar a música. Não diria que ouço aqui o Verão. Antes pelo contrário, parece-me o Outono. Não é por isso que gosto desta composição, mas porque é rápida, enérgica, forte e faz-me pensar impetuosidade dos momentos decisivos. Seja lá o que isso for.
Vivaldi (1678-1741) é um compositor barroco.

Ludwig Van Beethoven “Sonata Ao Luar (Adagio Sostenuto)”
E já que se fala em estações do ano, esta sonata faz-me lembrar o mais profundo inverno. Sozinho, de noite, um homem idoso toca piano. Recorda os dias da juventude longínqua, revisita os momentos e as pessoas que entraram na sua vida, sabe que já não lhe resta muito tempo. Mas aceita o facto placidamente, quase sem lamentação. Quase.
Aborrece-me o facto de este tema também ser demasiado tocado pelos media em geral. Tudo o que é demais enjoa. Mas a verdade é que a própria sonata já é um bocadinho enjoativa por si própria.
Beethoven (1770-1827) compôs entre os períodos clássico e romântico. A sua “Moonlight Sonata” ou “Sonata quasi una fantasia” é de 1801.






Samuel Barber “Adagio”
Esta é, provavelmente, a música mais triste que já ouvi na vida. Aqui não há esperança, não há saída, é a voz de um insuportável desespero que, mais uma vez, apenas a beleza da arte pode redimir. Mas a beleza da arte não é deste mundo, é do outro. De outro mundo de onde chega a inspiração para compor estes sons maiores do que a vida.
Nascido a 9 de Março de 1910 (morreu a 23 de Janeiro de 1981), Samuel Barber é um compositor contemporâneo de estilo dificilmente definível. O seu adagio foi usado em filmes e tocado após as mortes de Roosevelt e Kennedy (Barber era americano):

Barber was the recipient of numerous awards and prizes including the American Prix de Rome, two Pulitzers, and election to the American Academy of Arts and Letters. His intensely lyrical Adagio for Strings has become one of the most recognizable and beloved compositions, both in concerts and films (Platoon, The Elephant Man, El Norte, Lorenzo's Oil).

He originally wrote it as the second movement of a string quartet in 1936, but within two years arranged it for string orchestra. In this form, it became not only his most popular work, but also an unofficial American anthem of mourning, played after the deaths of Presidents Roosevelt and Kennedy.





Maurice Ravel “Bolero”
Épico e hipnótico. Genial.
Aluno de Gabriel Fauré (ver artigo anterior, sob “Pavane”), Maurice Ravel nasceu a 7 de Março de 1875 e morreu em 28 de Dezembro de 1937.

Bach “Toccata e Fuga em Ré Menor”
Não é de estranhar que certos temas sejam associados ao movimento gótico mesmo que muitos góticos não os conheçam. O que é de estranhar é que assim que os conhecem os góticos passem a gostar deles mesmo sem saber que os temas são associados ao movimento gótico. O que é um fenómeno completamente diferente e misterioso. É o caso da “Toccata e Fuga em Ré Menor” - em inglês “Toccata and Fugue in De minor”. Toda a vida conheci e toda a vida gostei. Não fazia ideia que mais tarde me vinham dizer que esta música está para os góticos como o relâmpago para o trovão.
Porque é épico? Porque é tocado em órgão e soaria muito melhor na ressonância magnífica de uma igreja? Pela sua grandeza? Pela sua elevação? Porque sim?
Tudo o resto que Bach escreveu me parece o rascunho da “Toccata e Fuga”. (Eu avisei.) É a tal coisa. Parece que a inspiração vem de outro mundo. Aqui Bach excedeu-se, para nosso gáudio.
Quem não sabe mesmo do que estamos a falar pode partir daqui.
Bach é considerado um barroco. Nasceu a 21 de Março de 1685 e morreu a 28 de Julho de 1750.

Publicado por _gotika_ em 08:04 PM | Comentários: (14)


Clássicos seleccionados I

Não sou de facto uma apreciadora de música clássica e erudita. De uma catrefada de êxitos que me foram gentilmente cedidos por um amigo - e falo de muitos, muitos megas! - o meu gosto só aproveitou meia dúzia. Talvez por o crivo ser tão apertado esta meia dúzia tenha mais valor. A minha opinião é subjectiva e não vale mais do que isso mas gostava de partilhar esta meia dúzia de raridades que tiveram a honra de me agradar. São poucas, muito poucas.

Carl Orff "O Fortuna"
Toda a gente conhece esta música, nem que seja como "a música do Old Spice". "O Fortuna" é o tema de abertura da ópera "Carmina Burana". Tenho o registo integral mas não morro de amores.
Descrever música por palavras não é fácil. Digamos que este épico, "O Fortuna", poderia servir para mobilizar multidões.
Carl Orff nasceu a 10 de Julho de 1895 e morreu a 29 de Março de 1982. É portanto um contemporâneo e não é um bom exemplo quando se pretende falar da música do passado... Mas que vos dizia eu? Avisei.





Gabriel Fauré "Pavane"
Gabriel Fauré nasceu a 12 de Maio de 1845 e morreu a 4 de Novembro de 1924. Foi professor de Maurice Ravel, de quem também falaremos. É considerado um pós romântico.
A versão de "Pavane" que me apaixonou tem acompanhamento coral. Depois de muita pesquisa, e de já ter desistido de encontrar o que procurava, vim a descobrir por acaso que o poema de "Pavane" foi escrito por Robert de Montesquiou-Fezensac.
"Pavane" é uma canção triste, aliás, quase todas as que vou descrever são canções tristes, mas há nesta uma doçura, uma aceitação, uma espécie de outono da vida... E no entanto, por ser tão terna e dolorosa, podia também ser uma canção de amor. Como o original não inclui palavras, cada um pode senti-lo à sua maneira.

Tomaso Giovanni Albinoni "Adagio"
Nascido a 14 de Junho de 1671 (morreu a 17 de Janeiro de 1751), Albinoni é um barroco que atraiu a atenção de Bach, seu contemporâneo.
Mas este Adagio é demasiado intemporal para parecer barroco. Ouve-se aqui a mesma tristeza do referido "Pavane" mas com uma nota trágica a fazer pesar o todo.

Wolfgang Amadeus Mozart "Lacrimosa"
A angústia está presente do princípio ao fim e ameaça mergulhar no maior desespero não fora a beleza que a salva. Foi a última obra escrita pelo compositor que morreu a 5 de Dezembro de 1791 (nasceu a 27 de Janeiro de 1756). "Lacrimosa" faz parte do seu requiem inacabado. O resto da obra - e o génio - de Mozart são sobejamente conhecidos (mas não me dizem grande coisa). Mozart é considerado um romântico.





Pyotr Ilych Tchaikovsky "O Lago dos Cisnes", Cena 10 Acto II
Já aqui, a tragédia ameaça e cumpre. A história é bem conhecida. Rendo-me ao seu clímax fatal.
“O Lago dos Cisnes” foi escrito em 1875. Tchaikovsky nasceu a 7 de Maio de 1840 e morreu a 6 de Novembro de 1893. É um compositor romântico.

(Continua. Quando, não sei.)

Publicado por _gotika_ em 02:37 AM | Comentários: (12)


~~§~~


Comentário: 
Estes dois posts continham muitos mais links, incluindo onde ouvir a música. Também esses links desapareceram. Nem os compositores clássicos escapam à efemeridade da internet.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Gotika: arquivos Maio 2004

maio 14, 2004

“Merrick”

De Anne Rice.


“Merrick” é uma história de amor. Capaz de agradar mais às meninas do que aos meninos. Não me agrada constatar o facto mas a alma feminina tem uma maior inclinação para o romantismo. Penso que isto se deve à educação - os homens não choram, os homens não se emocionam... - e já era altura de mudar as coisas. Homens, revoltem-se!

Antes de passar à história, uma breve descrição dos personagens que a movem:

Lestat de Lioncourt
Bem, Lestat está presente mas não interfere. Desde a sua viagem com Memnoch ao Céu e ao Inferno, o Brat Prince (Príncipe Fedelho), como Marius lhe chama, ficou em estado de choque. Primeiro foi tomado pela loucura e o medo. Depois deixou-se cair num torpor, numa imobilidade parecida com o sono, em que se fechou para o mundo exterior. Não comunica, não responde, não se alimenta. Está noutro mundo. Por vezes parece a David que o espírito de Lestat já não está sequer no corpo do seu amigo. Mas adivinha-se que muito se passa naquela cabeça. É óbvio que Lestat precisa desse isolamento absoluto para conseguir incorporar todas as verdades de que tomou conhecimento durante a sua grande experiência mística. Como é possível voltar a existir da mesma maneira? Que espécie de criatura sairá desse profundo sono?

David Talbot
David é um vampiro recente com uma história extraordinária. Em vida, David tinha já 74 anos e uma doença fatal quando o seu envolvimento com Lestat, de quem se tornou amigo, o levou a enfrentar o Ladrão de Corpos. Foi este ser que invadiu o corpo do velho David e o obrigou a “mudar-se” para o corpo de um jovem cuja alma já passara para o “outro lado”. A história é interessantíssima. Mas o que interessa para agora é que Lestat não se contentou por ter o seu amigo humano num corpo rejuvenescido; o medo de o perder para sempre leva-o a transformar David num vampiro, mesmo contra a vontade do próprio. (“The Tale of the Body Thief”).
A princípio, David não aceita muito bem a transformação mas acaba por se apegar irremediavelmente à sua imortalidade terrena. Com crises existenciais frequentes. Aliás, todos os vampiros, por motivos vários, ponderam pôr fim à vida a certa altura da sua existência. Os outros que lhes acodem nesse momento acabam eles próprios por cair no mesmo desespero mais tarde ou mais cedo.
David está portanto dentro de um corpo jovem mas a sua alma é a do académico versado no sobrenatural, o cavalheiro inglês de invejável idade e sabedoria. Os outros vampiros respeitam-no por isso. David é de todos o mais sensato de uma forma que os outros não poderiam nunca ter sido porque nunca viveram em anos mortais o suficiente para terem semelhante visão do mundo. Tanto Louis como Lestat, os companheiros de David, abandonaram a vida muito jovens para conhecerem uma resignação que só se aprende com a idade humana.

Louis de Pointe du Lac
Regressa o vampiro da “Entrevista”, cada vez mais deprimido, cada vez mais atormentado. Longe estão os anos de raiva. Agora até é bastante amigo de Lestat. O tempo acabou por trazer o perdão e a conclusão de que havia mais para ganhar na amizade do que no ódio. Mas agora Louis está desesperado. Não há razão para continuar. O suicídio torna-se uma obsessão constante.

Merrick Mayfair
Ao contrário do que o nome pode dar a entender, Merrick é uma mulher. O nome da personagem foi-lhe posto por falantes de francês de New Orlans, logo, pronunciava-se Merrique antes de ser americanizado.
O facto de a história girar em torno de uma mulher - até que enfim! - pode explicar o seu carácter romântico (?).
Não vou ao ponto de dizer que as mulheres são de Vénus e os homens são de Marte - acredito que são ambos da Terra - mas que de facto há diferenças, há!
É como as bruxas, que elas existem, existem. E Merrick é uma bruxa, uma feiticeira poderosa e conhecedora do vodu e do camdomblé brasileiro. Desde o começo que gostei desta personagem, uma mulher adulta e solitária que bebe. E não é sangue. É mesmo rum. Sem coca-cola. Da garrafa, para ser mais rápido. E quando bebe - o que não é sempre - faz questão de não parar. “Até cair”.
Merrick entra na história por ter sido amiga (e amante) de David quando este era humano, embora os separasse uma diferença de idades de 50 anos. Aliás, foi por causa dessa diferença de idades que David nunca aceitou a relação e preferiu recolher-se à sua condição de velho e doente.
Merrick, a feiticeira, também tem os seus planos. Conhece os vampiros e quer tornar-se uma deles. É ela quem os manobra - embora eles não saibam - para essa conclusão.

Pergunto-me se as crónicas não seriam mais interessantes se existissem mais personagens humanos entre os vampiros. Por exemplo, David teria dado uma personagem humana extremamente interessante. Merrick também. Mas no fundo, como nós sabemos, os vampiros de Anne Rice são uma metáfora para os seres humanos, os “desperados”, os verdadeiros imortais perdidos na escuridão do destino.
E como tal, esta é uma história de emoções humanas, de paixões e de amizades humanas.

Amor, morte e fantasmas
Desde que uma investigadora do paranormal se confrontou com o fantasma de Cláudia que Louis questiona se o espírito da criança-vampira está em paz, ou se sofre, e se há algo que ele possa fazer para a ajudar. É por isso que David, a pedido de Louis, volta a encontrar Merrick, a quem pede que convoque o fantasma de Claúdia e a encaminhe para a luz se esta estiver perdida.
A princípio, era só isso.
De resto, há muito tempo que Anne Rice não se debruçava tanto sobre a personagem de Louis, e as notícias de Louis não são agradáveis. Considerado o mais fraco de todos os vampiros, muitos dos antigos quiseram oferecer-lhe o sangue deles, mais poderoso, o sangue que permitiria a Louis tornar-se menos humano mas, ao mesmo tempo, prescindir da morte das suas vítimas que tanto o atormenta, vivendo do que os vampiros chamam “a pequena bebida”. É que, paradoxalmente, apesar de ser o mais humano e o mais sensível de todos os vampiros, Louis não consegue poupar as suas vítimas; precisa demasiado do seu sangue. O sangue e o poder dos mais velhos libertá-lo-iam da sua maldição (“cada noite que eu caminhe na terra alguém tem de morrer”, já dizia na “Entrevista”), mas esse poder tem uma contrapartida. Depois de um certo patamar, a luz do sol já não chega para pôr fim à vida. Se Louis quiser morrer, terá que entrar numa pira de fogo. E hesitante entre a vida e a morte, Louis preferiu, durante séculos, ter a hipótese da morte “fácil” ao nascer do sol. Tal como um suicida que guarda centenas de comprimidos para o momento em que se decidir, Louis preza essa pequena vantagem, embora o que mais o atormente na sua existência de vampiro seja, sem dúvida nenhuma, a morte das suas vítimas.
Em todo um capítulo tão bom que o poderia transcrever, Louis explica a David que deseja a morte. Ele não vê o mundo como o Jardim Selvagem de Lestat. A única coisa que o faria continuar a desejar viver seria “uma consciência tranquila”, mas o próprio Louis confessa: “Eu não sei o que quero”.
Perante o desespero de Louis, David chega à conclusão de que ele próprio, afinal, não deseja morrer e pede ao amigo que não pondere essa hipótese. Mas não é sempre assim quando se trata dos “outros”? E como poderia David arranjar argumentos para convencer o amigo a ficar, se no fundo, bem no fundo, ele também não os tem?
Antes de tentar deixar este mundo (desculpem estragar a surpresa, mas ele tenta...) Louis ainda se recorda do que significa estar vivo. Por Merrick.

Esta é a história da paixão de David e Merrick. E de Merrick e Louis. David não gostou mesmo nada de perder a sua amante mortal para o amor de outro homem (ou vampiro, whatever). Mas aconteceu perante os seus olhos e a sua alma despeitada. Merrick e Louis apaixonam-se à sua frente, sem que nenhum dos três tivesse culpa ou pudesse impedir. E Merrick, a feiticeira, aceita chamar o fantasma de Claudia para Louis.
Diz Merrick que os espíritos mentem quando são chamados, mas ouvir Cláudia maldizê-lo está muito longe do alívio que Louis esperava: “Morre por mim, meu amado. Penso que vou ter prazer nisso. Pensavas que eu não estava a sofrer, Pai? Esperavas uma preciosa consolação dos meus lábios? Acreditavas que Deus ta daria, não é? Que a merecias depois de todos os teus anos de penitência. Vem para mim. Vem, fá-lo com grande dor, como um sacrifício. Nunca me encontrarás. Vem.”
Meticulosamente, Louis cumpre o ritual dos suicidas, despedindo-se de Lestat, deixando um bilhete de explicação, distribuindo os seus pertences, e por fim enfrenta a morte. Não há nada que ninguém possa fazer para o deter. E quem tem o direito de impedir alguém de partir só porque a companhia dessa pessoa é agradável? Ao tentar travar o suicídio de um amigo, não haverá nisso uma ponta de egoísmo? E ao tentar salvar a vida de um estranho, não será para nos convencermos a nós próprios que a nossa própria vida vale a pena?

E fantasmas...
(David)
“Essa constante na minha vida é que, não importa o que dissesse em contrário, sempre suspeitei que não havia nada para lá desta existência terrena.
É claro que aqui e ali ‘acreditei’ alegremente no contrário. Convenci-me a mim próprio com aparentes milagres - ventos fantasmagóricos e o correr do sangue vampírico. Mas em última análise, eu temia que não houvesse nada, nada para além da ‘escuridão imensa’ que este fantasma, este fantasma cheio de maldade e raiva, tinha descrito.
Sim, estou a dizer que acredito que podemos ficar a pairar. Claro. Permanecer depois da morte por algum tempo não está fora do alcance de uma futura explicação científica - uma alma de substância definível separada da carne e presa nalgum campo de energia que envolve o planeta. Não é impossível de imaginar, não, de todo. Mas não significa a imortalidade. Não significa um Paraíso ou um Inferno. Não significa justiça ou retribuição. Não significa êxtase ou dor interminável. (...)
Se eu morrer, pode não haver nada. Se eu morrer, pode haver um pairar. Se eu morrer, posso até nunca chegar a saber o que foi feito da minha alma. As luzes à minha volta - o calor de que falou tão tentadoramente a criança fantasma - o calor simplesmente desapareceria.”

Este não será, para os estranhos à saga, o melhor exemplo das crónicas dos vampiros até agora, principalmente depois das interrogações existenciais de “Memnoch”, mas a nível das qualidades literárias da escritora, que melhoram a cada obra como seria de esperar, é o melhor livro de Anne Rice que já li.
Facto a que não é alheio o desespero de Louis e a sua obsessão com o próprio fim. Louis não é feliz, não o era enquanto humano e não o será nunca. Alguns não nasceram para a felicidade. Essa verdade perturbadora para a maioria a mim encanta-me.
E depois a escrita abandona as fastidiosas descrições, a perda de tempo com os detalhes supérfluos, e mergulha directamente no mar de emoções que nos interessa descobrir nos outros para melhor as reconhecermos em nós. Os personagens desabrocham e amadurecem. Reconhece-se a felicidade depois do desespero, ou a felicidade que segue forçosamente o desespero, quando não se espera ganhar mais nada mas também já não há nada mais a perder. Por outras palavras, quando a vida terrena se aproxima do fim e a alma se deleita no prazer dos últimos dias para não perder esse tempo com distracções inúteis.
Por fim, os vampiros acabam por reforçar os laços de amizade. Demorou-lhes séculos. Nós, que não temos séculos, não poderemos abreviar a coisa, ou teremos forçosamente de ficar pelo meio?...

Notas sobre Anne Rice
Na capa de “Blood and Gold”, a crónica seguinte:

“A wonderfully Gothic writer whose talents far outshine those of Stephen King and others in the field” Boston Globe

Não sei se este comentário compara o estilo literário dos dois autores. Só pode ser porque, a nível da história contada, não há comparação possível. Anne Rice comove-nos. Stephen King aterroriza-nos.

“Anne Rice offers more than just a story: she creates myth” Washington Post

Nenhum elogio é maior do que este. Poucos autores se podem gabar do mesmo. Mas o mito está criado. Lestat e Louis são a versão do século XX de Drácula e Mina. Imortais.

Publicado por _gotika_ em 04:40 AM | Comentários: (18)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Gotika: arquivos Maio 2004

maio 01, 2004

Sou tão gótica, tão gótica...

O resultado de uma semana de pensamentos ociosos. Deliciem-se a descobrir a verdade da mentira.


Sou uma gótica tão precoce que nasci ao pôr-do-sol num dia de tempestade.
Sou uma gótica tão precoce que a minha amiga imaginária era uma fada.
Sou uma gótica tão precoce que na escola primária coloria todos os bonecos de preto e roxo e achava muito bonito.
Sou uma gótica tão precoce que tenho olheiras desde os 7 anos.
Sou uma gótica tão precoce que aos 3 anos pensava na morte.
Sou uma gótica tão precoce que aos 6 anos perguntava aos meninos da escola se pensavam na morte.
Sou uma gótica tão precoce que deixava de falar aos meninos que não sabiam o que era a morte.
Sou uma gótica tão precoce que antes fazia questão de lhes explicar que iam acabar debaixo da terra comidos por vermes.
Sou tão gótica que no liceu perguntava aos professores se pensavam na morte.
Sou tão gótica que pergunto a toda a gente.
Sou tão gótica que os professores do liceu tinham medo de ficar sozinhos comigo.
Sou tão gótica que os os colegas também.

Sou tão gótica que a Morte foi à Polícia fazer queixa de mim por assédio.
Sou tão gótica que sei de cor poemas da Florbela Espanca.
Sou tão gótica que nos dias em que não penso em suicidar-me penso na morte natural.
Sou tão gótica que quando morrer não vou dar pela diferença.
Sou tão gótica que quando morrer ninguém vai dar pela diferença.
Sou tão gótica que quando me rio as pessoas pensam que já bebi demais.
Sou tão gótica que quando não me rio as pessoas pensam que estou a planear o suicídio.
Sou tão gótica que um enfermeiro tentou medir-me o pulso e pensou que a máquina estava avariada.

Sou tão gótica que todos os dias faço mesmo algo que assusta as pessoas. Geralmente, é uma boa acção.
Sou tão gótica que respeito os góticos mais velhos.
Sou uma gótica tão velha que os jovens góticos já me respeitam...
Sou tão gótica que me olho ao espelho em horror quando não me posso vestir de preto.
Sou tão gótica que quando abro o roupeiro a minha roupa preta grita de horror por estar junto à "roupa de dia".
Sou tão gótica que nunca fui racista porque "black is beautiful".
Sou tão gótica que consigo passar uma noite inteira num bar sem falar com ninguém.
Sou tão gótica que fico aborrecida quando falam comigo e estragam o meu recorde de "horas sem falar com ninguém".
Sou tão gótica que posso conhecer outro gótico há 20 anos e só lhe falar para pedir lume.

Sou tão gótica que os vampiros se cruzam comigo na rua e se sentem saudáveis.
Sou tão gótica que se me transformassem em vampiro eu não dava pela diferença.
Sou uma gótica tão fútil que amo o vampiro Lestat mas preferia andar com o vampiro Louis porque tem mais estilo.
Sou tão gótica que as crianças me perguntam se sou vampira e respondo que sim, mas não precisam de ter medo porque já jantei.
Sou tão gótica que as crianças acreditam.

Sou tão gótica que sou católica.
Sou tão gótica que fui excomungada.
Sou tão gótica que corro o risco de ser excomungada outra vez.
Sou tão gótica que sexta feira 13 é o meu dia de sorte.
Sou tão gótica que só deixei de ter medo dos lobisomens quando comprei um pentagrama... aos 18 anos.
Sou tão gótica que só comprei um pentagrama aos 18 anos porque não me deixavam comprá-lo antes.
Sou uma gótica tão fútil que não quero ser freira porque os hábitos têm uma orla branca.
Sou tão gótica que não vou para o Inferno porque aquilo tem muita luz.
Sou uma gótica tão fútil que não vou para o Céu se me obrigarem a usar asinhas brancas.
Sou uma gótica tão fútil que o diabo veio tentar-me vestido de vermelho e o ignorei porque não falo a bimbos.
Sou tão gótica que as velhinhas olham para mim e benzem-se.
Sou tão gótica que me benzo também para retribuir o elogio.

Sou tão gótica que o meu telemóvel tocava mesmo a Tocatta e Fuga e eu achava demasiado pretencioso. Agora toca Sisters of Mercy.
Sou tão gótica que já fui passear ao cemitério.
Sou tão gótica que já marquei encontros no cemitério.
Sou tão gótica que a minha roupa de ginástica é preta e só preta.
Sou uma gótica tão fútil que na ginástica não agarro a bola para não estragar as unhas.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo de me passar a bola.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo de pôr o colchão ao pé do meu.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo.

Sou uma gótica tão fútil que vou à praia mas o bikini tem de ser preto.
Sou tão gótica que nunca fiz uma tatuagem porque conheço demasiados símbolos para me decidir por um.
Sou tão gótica que nunca fiz um piercing porque em mim tudo infecta automaticamente.
Sou tão gótica que não uso relógio. Sinto quando a madrugada se aproxima e acordo naturalmente ao pôr-do-sol.
Sou tão gótica que acho os morcegos amorosos.
Sou tão gótica que os morcegos me acham amorosa.
Sou tão gótica que tive um canário branco e lhe arranjei uma canária escura para os filhos não saírem muito claros.
Sou tão gótica que os meus gatos pretos acham lhes dou azar.
Sou tão gótica que os meus gatos pretos me evitam à sexta feira 13.

Sou uma gótica tão velha que os jovens góticos estremecem de medo na minha presença.
Sou uma gótica tão velha que já não peço música ao DJ porque ele sabe melhor do que eu aquilo que eu gosto.
Sou uma gótica tão velha que já estava no movimento quando vocês chegaram.
Sou uma gótica tão velha que já estava no movimento quando os vossos pais chegaram.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo o Robert Smith era magro.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo a Siouxie era magra.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo o Kremlin passava Cure e não tinha tiroteios à porta.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo um vodka custava 300 escudos e era caro.
Sou uma gótica tão velha que já não uso bengala só como acessório.
Sou uma gótica tão velha que mandei fazer a dentadura com dentes à Drácula.
Sou uma gótica tão velha que ainda me lembro dos primeiros góticos dos anos 80.
Sou uma gótica tão velha que já morreram todos.

Publicado por _gotika_ em 07:29 PM | Comentários: (17)


Comentários

Vou arriscar e voltar a comentar no sítio adequado.

Mas como estes comentários são importantes, a resposta continua aqui:

Diz Goldmundo:

E para falar de outras coisas falando disto, exactamente a diferença entre os que pensam e os que existem é o tema forte da Entrevista, e é sempre o Louis que dá o "mote". Desconfio que ele se vai "apagando" ao longo da saga, se não for "assassinado" também por depoimentos malandros.

Não se vai apagando. :) Espera pelo comentário ao "Merrick". Acho que vais gostar tanto como eu.


Mas é o Louis que força os outros a olhar (rasgar a luz, como uma vez se disse aqui), mesmo que o faça desajeitadamente, ou fracamente.

Sim. Foi ele que pôs a boca no trombone, disso não há dúvidas. Mas quem o foi buscar à vida foi o Lestat. Mais uma vez, o responsável é o nosso vampiro louro... O nosso vampiro louro e louco.


Algures no séc. XIX (ao mesmo tempo que a noite dos poetas passou de negro a azul, ao mesmo tempo que os abismos da montanha, do mar e da alma entraram na literatura) houve duas espécies que se tornaram mutantes: os anjos deixaram de ser aqueles bébés inchados da pintura barroca e das talhas douradas das igrejas e passaram a ser os anjos negros perdidos e vadios do Wim Wenders e do Cave; e os vampiros deixaram de ser subdemónios para serem o que antigamente era o Prometeu ou o Tristão.

Aqui não sei se concorde. O vampiro ainda é o Mal e o anjo ainda é o Bem. A partir destes padrões é que se criam personagens mais ou menos desviantes.


De modo que a literatura "gótica" só por acaso é herdeira das catedrais: os primeiros escritores usaram o "ambiente gótico" como no séc. XX se usou a ficção científica: livramo-nos do mundo actual para causar medo, horror, adrenalina. Os fantasmas e os vampiros começaram por ser os bisavós dos marcianos de 1950.

Touché!
Espero que o Mefistofeles tenha ficado esclarecido porque em relação ao Romantismo e ao conceito de gótico do século XIX está tudo dito.

Publicado por _gotika_ em 06:57 PM | Comentários: (0)


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Comentário:
Já não me lembrava mas aqueles "sou tão gótica que..." são da minha autoria. :)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Gotika: arquivos Abril 2004

abril 30, 2004

Anne Rice é uma ganda tia II

Palavras de Golmundo:

Bom, eu tenho uma teoria diferente: a Anne só escreveu a Entrevista (talvez também a Hora das Bruxas, mas ainda não a li). Depois foi assassinada, a soldo das editoras multinacionais. Um bando (um coven?) de imberbes formados em marketing escreve, depois, a saga do macho anglo-saxónico (o tal Lestat).

Não é anglo-saxónico. Começa por ser francês mas depois torna-se definitivamente new-orleano, seja lá isso o que for.
E quanto ao "macho"... Bem... Tem dias. Por acaso no "Memnoch", que leste, estava numa fase masculina. Seja lá isso o que for.

Leram a Entrevista, mas retiveram dos vampiros que não há sexo, andam de noite, são ricos e gostam do "oculto". E pronto, há um "produto". Mais tarde ainda (num dos livros que ainda não li) um dos imberbes foi, por sua vez, assassinado a soldo da Marvel (cujas vendas iam a pique porque ninguem comprava aventuras de super-herois em cuecas) e substituido por outro rapazola com uma missão: o Lestat tem de ganhar super-poderes...

Vejo onde queres chegar. Muitas vezes parece o Super Vampiro. Mas guardemos as devidas distâncias da Marvel. Afinal, os vampiros têm tradicionalmente poderes sobrenaturais, de outro modo não constituíam um verdadeiro perigo para o ser humano. O mito do vampiro é mais uma representação humana do Mal, como o demónio ou o lobisomem.
Por outro lado, do ponto de vista literário, o escritor é livre de pegar no mito e dar-lhe os contornos que entender.
(You could be a goth if... You argue on whether Poppy Z. Brite or Anne Rice has the more realistic view on vampires. You can debate both sides of that argument. É agora!)
A referida Poppy Z. Brite tem uns vampiros semelhantes mas que já nascem vampiros - são mesmo uma espécie - e reproduzem-se através do sexo, como nós. Também podem comer e conseguem passar sem sangue embora o desejem intensamente.
Pessoalmente, não tenho preferência. Tenho pena dos vampiros da Anne Rice porque não podem... comer. Nem beber. Segundo Armand, nem sequer podem fumar. Isso é que eu chamo uma tragédia!

Ao contrário do que me parece que tu (e o Klatuu?) entendem - mas leram mais do que eu - há uma diferença abissal entre a Entrevista e o resto: é que, nesta, Louis somos todos nós, ou podemos sê-lo (será por isso que não gostas tanto dele?). "Madame Bovary c'est moi!" como disse Flaubert... Todos nós queremos saber se somos filhos de deus, do diabo ou de um macaco, mesmo sem sermos imortais e sem sermos inegavelmente malditos. Por isso a Entrevista é uma obra-prima da literatura moderna.

Se eu falo tanto dos livros de Anne Rice, e porque falo, é mesmo porque são um motivo para falar de outras coisas. Todos sabemos que aquilo acaba por ser sobre nós. Nós é que somos os imortais. E depois, no nosso meio, há alguns mais satisfeitos e outros menos. Há os que prezam a carne e os que não. Há os que pensam e os que existem.
Não me parece que haja uma diferença assim tão grande entre a "Entrevista" e o resto. Todos os livros falam da demanda pela razão de estarmos aqui.
Não, não é por ser igual a nós que não gosto "tanto" de Louis. Aqui entre nós que ninguém está a ouvir, é por uma razão muito mais egocêntrica: identifico-me mais com a personagem de Lestat, o que não é, de todo, uma coisa boa.

Publicado por _gotika_ em 08:18 PM | Comentários: (6)


Provocações...

Por acaso, uma merda que nunca entendi é como é que uma coisa como o gótico que é esteticamente um movimento estético de júbilo e euforia pós medieval se transforma numa exaltação da negritude e da depressão. És capaz de me explicar isto Gotika Mefistófeles Enviado por em abril 29, 2004 02:51 PM

Espero que o artigo anterior tenha esclarecido essas dúvidas - diria mesmo que o artigo está tão simples e bem escrito que deve provir de uma inside source - pelo menos no que toca ao movimento que se conhece actualmente como gótico.
Quanto à passagem do conceito de gótico medieval ao gótico romântico, bem, esse deu-se por um movimento de nostalgia que contagiou escritores e poetas e músicos que se inspiraram no tal momento histórico "estético de júbilo e euforia". É preciso não esquecer que, à luz do século XIX, o gótico medieval é obscuro. A ciência galopava em direcção ao século XX e os artistas procuravam na literatura fantástica o oposto da racionalidade que esmagava o pensamento da altura.
Porque é que esses artistas se foram precisamente inspirar no gótico medieval?... Porque era um movimento de excesso (basta olhar para aquelas catedrais) e de re-aproximação ao divino, não através do austero romântico nem do racional romano, mas da glorificação da beleza. No entanto, este momento histórico ainda não era o momento barroco a seguir ao Renascimento. E no barroco, o excesso "excedeu-se", tornou-se fútil. Talvez o gótico medieval conseguisse reunir, aos olhos do século XIX, o misto de sublime e doloroso que a arte precisava naquele momento.

Agora vou fazer poesia. O que pode ser mais sublime e doloroso do que estender os pináculos das catedrais até ao céu, cada vez mais alto, como para tentar alcançar Deus, mas sem nunca o conseguir? E apesar de saber que não o conseguia, continuar a tentar à mesma? Foi isso que representou o movimento gótico medieval. O românico era atarracado, o renascimento foi atarracado, o racionalismo foi atarracado. Só no século XIX é que houve uns loucos que se lembraram de achar aquilo bonito e reconstruir ao estilo gótico. Mas aí o conceito de gótico já estava impregnado do romantismo mórbido como o conhecemos hoje.
Actualmente, do conceito de gótico medieval resta o aproveitamento de uma certa estética. De resto, está tão perdido na memória como o povo de onde provém a palavra "gótico", os Godos.

Publicado por _gotika_ em 05:01 AM | Comentários: (5)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Gotika: arquivos Abril 2004

abril 29, 2004

O Gótico segundo "Van Helsing"

Fantástico artigo sobre o movimento gótico no site do filme Van Helsing.
Para verem a animação (é pesada!) vão a Van Helsing > "Enter the site" > "The Library".
Fica aqui a transcrição original:

The Chronicals of Goth

Goths: the Horror, the Horror
What is a Goth? About 1600 years ago, "Goth" referred to a Germanic person living in Europe. Over time, however, the meaning of the word broadened to define not just an ethnicity, but also a musical movement, a style of dress and an attitude. Remarkably, Gothic literature is the connection.

The Gothic novel originated in the early Romantic period, around the late 1700s. Inspired by medieval castles and ruins of other Gothic structures, these tales typically evoke a sense of unreality and foreboding. Mary Shelley's "Frankenstein" (1818) and Bram Stoker's "Dracula" (1897) are amongst the genre's best-known examples. Over the years, the term "Gothic" has been applied to almost any art form that's dark, creepy, exaggerated and decadent.


Music, Makeup, Mutation
The Goth music movement originated twenty-five years ago with the emergency of punk rock in the UK youth community. When safety pins and spiky hair lost their appeal, the kids turned to a new costume of alienation. Youth culture pundits say it was Tony Wilson, manager of the influential pos-punk band Joy Division, who first called that group's gloomy sound "Gothic". An enduring subculture was born.

In the decades since, the culture has mutated. While Dead Can Dance, Sisters of Mercy, and Fields of the Nephilim remain influential Goth bands, the music has expanded to include ambient, "dark wave", synth-pop, industrial, and other genres, even folk and classical. there are almost as many types of Goths as there are types of Goth music.

Some influential bands and albums associated with the Goth music genre include:

Joy Division - Unknown Pleasures (1979), Closer (1980), Substance (1988)
Bauhaus - In the Flat Field (1980), Mask (1981), The Sky's Gone Out (1982)
Siouxie and the Banshees - The Scream (1978), KAleidoscope (1980), Tinderbox (1986)
The Sisters of Mercy - First and Last and Always (1985), Some Girls Wander by Mistake (1992)
Gene Loves Jezebel - Immigrant (1984), Discover (1986)
Love and Rockets - Express (1986), Earth. Sun. Moon. (1987)(2000)


Proto-Goths
Today, the world is peppered with Goth contemporaries who set cultural standards across various mediums such as music, film, books and clothing. In the nonmusical arts, writers such as Anne Rice, Neil Gaiman, Storm Constantine, and Lemony Snicket carry their versions of the Goth torch, as do such filmmakers as Tim Burton and that early Goth, David Lynch.
Writer/illustrator Edward Gorey (1925-2000) and cartoonist Charles Addams (1912-1988), who inspired "The Addams Family", lived long enough to see their Gothic sensibilities find a new audience.
For one of the earliest cinematic connections between Goths and horror, watch the seminal band Bauhaus perform their UK hit "Bela Lugosi's Dead" in the opening scene of the 1983 vampire movie "The Hunger".

Publicado por _gotika_ em 08:49 PM | Comentários: (0)


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Comentário:
O artigo já não existe no link de onde o transcrevi. Na internet as coisas desaparecem muito depressa.