1987 não foi o ano em que cheguei à noite mas foi o ano em que a noite chegou até mim. Tudo o resto foi tempo perdido a aprender a invocar o demónio até que um dia me deram a chave do inferno, quando alguém sugeriu: "Uma pessoa que gosta de música como tu... devia comprar o Blitz". O Blitz, velhinho jornal que saía às terças feiras, era a nossa internet e a nossa bíblia. O Blitz mudou a minha vida. Mas a homenagem não se fica pelo Blitz. Naquele tempo, em que não havia internet, todas as novidades chegavam pela rádio. Havia alguns programas à meia-noite, na Rádio Comercial o António Sérgio com o lendário Som da Frente, e uma estação já desaparecida de que me lembro muito bem, o Correio da Manhã Rádio, que iniciava a programação nocturna com música de vanguarda e chegava a passar, pela noite fora, álbuns integrais de bandas diversas que encheram as minhas K7s. Lembro-me que a primeira vez que ouvi "This Corrosion" deve ter sido nesse programa do Correio da Manhã Rádio, 104.3, certamente entre a meia noite e as duas da manhã. A princípio aquilo pareceu-me excessivo, histérico, megalómano, e se pensarmos bem ainda o é, mas como em qualquer relação de amor já estava de joelhos a adorar num altar muito diferente dos Smiths, dos Cure, dos Jesus and Mary Chain, e dos outros vanguardistas da altura.
Chamava-se "vanguarda" à música de todas as bandas independentes dos anos 80. Não é à toa que se acusam os anos 90 de transformar o independente a um nível de comercial que tirou à vanguarda toda a sua originalidade. É a pura verdade. Sem esta comercialização fenómenos como os Nirvana nunca tinham tido a mesma divulgação. Mas tudo isto foi preparado nos anos 80, em que uma classe de jovens cada vez mais instruídos, apocalípticos e depressivos começaram em massa a rejeitar a música comercial, romântica, alegre, cliché, Abba em versão reciclada, que durante toda a década de 70 tinha vendido discos e discos. Já ninguém podia ouvir os Beatles. Ainda hoje lhes tenho uma alergia particular. Rolling Stones, então, têm o nível lírico de um atrasado mental. A mentalidade pós-punk e pós-glam exigia algo de novo, inteligente e estético, fruto directo de um "no future" com a beleza reconfortante dos anjos que decoram as campas do cemitério. Os "pós punks" estavam prontos para o gótico. E o gótico nasceu.
Nasceu em Leeds sem saber o que era. Bandas como os Sisters of Mercy, os Cult, os Fields of The Nephilim, seguiam uma linha estética de várias influências (em que os Led Zepellin são frequentemente acusados) que faziam um todo com os Bauhaus, os Joy Division (muito pioneiros mesmo), os Banshees da Siouxsie, os Dead Can Dance e os Cocteau Twins e toda a produção da editora independente 4AD sem me querer lembrar de todos, compondo um panorama já totalmente distinto de todas as outras experiências dos anos 80.
A nós chegou mais tarde, muito mais tarde, o que era completamente natural naquele tempo em que era preciso viajar para conhecer o que se passava no mundo. Viajar ou ter possibilidade de comprar revistas estrangeiras, ia tudo dar ao mesmo. A internet tornou democrático o que nos anos 80 era o privilégio da elite, incluindo a música.
Voltamos ao Bltiz. O Blitz não era apenas um jornal, era também a nossa única maneira de conhecer (e adquirir) música independente. Eu ainda sou do tempo em que quem quisesse comprar o álbum "First And Last And Always" dos Sisters of Mercy tinha de ir a Inglaterra. Não adiantava querer. As lojas não tinham e não mandavam vir. O que fazíamos então? Havia venda de fanzines, folhas A4 fotocopiadas e dobradas em dois de 6 ou 8 páginas, onde se divulgavam originais ou traduções de artigos do New Musical Express ou do Melody Maker, e mesmo do Blitz, sobre bandas que nos interessavam, que pela sua circulação underground permitiam um sistema de pirataria de K7s que foi a nossa única salvação. Encomendava-se tudo com ou sem a K7 virgem incluída, 500 ou 600 escudos, e ficava-se a conhecer a banda pretendida. Isto da gratuitidade da internet veio destruir muitos negócios. No nosso tempo a única coisa que era de graça era a amizade. O primeiro a comprar a K7 gravava para os amigos. Isto se tivesse hi-fi ou gravador com dois decks, que naquele tempo também não era para todos. (A melhor prenda que me deram na vida, tinha eu 17 anos, foi um sistema hi-fi com gira discos, uma excentricidade, uma maluquice, o equivalente a comprarem-me um Porshe e pô-lo à minha porta, foi a completa euforia. Desse sistema ainda tenho o armário e o gira discos, que não se estragou devido ao pouco uso, porque os discos compravam-se, gravavam-se e ouviam-se em K7 para não se riscarem.)
Voltemos ao Blitz. A secção de classificados estava cheia de anúncios para pen pals, pessoas a quem se escrevia (cartas, obviamente) com os mesmos interesses, e com quem se trocava música com fins não comerciais. Sempre houve as putas e os outros, e sempre haverá. Com as putas que vendiam as K7s não se queria nada. Com os outros, queria-se tudo. E sempre se há-de querer.
Foi assim que conheci pessoas semelhantes do Porto ao Algarve, passando por Coimbra e o provinciano Portalegre, pessoas isoladas aqui e ali que sentiam de modo diferente, que não cabiam na caixa, que não alinhavam no rebanho, que ouviam Diamanda Galas e assinavam as cartas com sangue (sim, com sangue). O Porto, especialmente, foi pioneiro da cena gótica quando em Lisboa nem se ouvia falar do assunto.
No país inteiro, por imitação à cena vanguardista inglesa, toda uma geração se começou a vestir de preto. Penso que começou com os tais artistas e intelectuais do Bairro Alto e passou das elites para a ralé. Às pessoas que me perguntam frequentemente o que eram os vanguardistas (porque não estavam cá), bem, meus amigos, era a malta que ouvia as bandas de vanguarda dos anos 80. Como se vestiam, basta olhar para uma foto dos Madredeus dos "Dias da Madredeus". Naquele tempo, para chocar, bastava a uma criatura vestir-se toda de preto e já os vizinhos se benziam. A roupa era bastante simples. Eles e elas vestiam casacos pretos, calças ou saias pretas, t-shirts ou camisolas pretas, e sapatos pretos, de preferência grandes. Havia também a moda das poupas à Morrisey. Eles e elas de franja erecta a terminar em ondinha para dentro, mas com gel, não porcaria, a uma altura dos 6 aos 10 centímetros. Moda era moda. Às meninas exigia-se também lábios pintados de vermelho vivo e anéis de pedras grandes e opacas. Sobriedade, meus amigos. Afinal, era a ressaca dos pós românticos. Nenhuma outra cor, excepto o preto, era tolerada. (Ainda hoje não devia ser... excepto o cor de rosa shocking... porque sim.)
Se os meus caros amigos mais velhos e os meus amiguinhos mais novos acham que isto não era nada, enganam-se, foi uma revolução. De repente, era ver aquelas hordas de negro a caminhar para o Bairro Alto, a encherem as tasquinhas, a consumirem Alien Sex Fiend e Einsturzënde Neubauten como se fossem tremoços. Tudo o que simplesmente soasse a minimamente comercial estava banido. Bandas que hoje se ouvem horas a fio nas noites revivalistas, Duran Duran, Heróis do Mar, Classic Nouveaux, António Variações... BANIDOS! Eu, pela minha parte, bani os Cure até hoje.
Ainda bem que falei em Cure por agora tenho a deixa para falar dos meus ódios de estimação. A moda dos Cure, e dos vanguardistas que gostavam de Cure (para quem se inventou o termo "curistas") nunca me convenceu. Aquilo foi sempre muito comercial. E noventa por cento da malta "vanguardista" era gente que se vestia de preto para dizer que era rebelde, e ser rebelde naquele tempo era fumar um charro no intervalo das aulas (o que é ser rebelde hoje em dia não sei mas desconfio que não anda longe), e tal como o fenómeno freak dos anos 90 também desapareceu sem deixar rasto, depressa tomaram juízo e começaram a vestir-se como pessoas normais que sempre foram. Poseurs! Ainda hoje se devem achar o máximo porque nos anos 80 fumaram um charro a ouvir Sonic Youth, tal como os pais psicadélicos da classe média-alta por consumir LSD ao som de "Sargent Pepper's Lonely Hearts" ou quejandos. Isto há modas. E dos vanguardistas, mortos e enterrados, não há mais a dizer excepto que os encontram no Jumbo mais próximo ao fim de semana a fazer o passeio do shopping com a famelga, de onde nunca deviam ter saído.
A eles a reverência que é merecida, contudo, porque serviram bem o movimento gótico. Sem eles, ainda ninguém se vestia de preto. Tiveram o seu papel. Siga.
A primeira vez que saí de facto à noite foi em 1988 e foi uma aventura a todos os níveis. Com um desconhecido, qual virgem gananciosa, fui para um Bairro Alto cheio de encantos proibidos com o intuito de atalhar o caminho do tempo perdido. Senti-me um daqueles exploradores do século XIX de que lia em livros do mesmo século, que tinham devorado tudo sobre um país exótico antes de o visitar. Já lá estava antes de lá chegar. O meu amigo do Porto, sempre um desconhecido de um lugar distante, mais velho e mais lido do que eu, deslocado aqui por malefícios do Serviço Militar Obrigatório, precisava de companhia e levou-me ao Estádio. O Estádio ainda lá está. O Estádio e as Primas, que devem ser a única coisa que resta daqueles tempos. Excepto os velhinhos. Os velhinhos do Bairro Alto, naquele tempo, ainda saíam à noite para ir ao Estádio beber a aguardente e ver a bola e olhar para nós, invasores, de queixo caído, especialmente as raparigas, com o ar intrigado de quem percebe que não éramos putas (como as outras, as da esquina da rua da Atalaia), mas também não percebia o que raio é que éramos. Velhinhos, vanguardistas e drogados, era assim o Estádio. E assim é que devia ser e assim é que sempre o recordarei.
Não sei como corremos tantos sítios numa só noite. Devia ser sede. Estava na moda "correr as capelinhas". Passar a noite toda num sítio, pior, permanecer mais do que meia hora num sítio só, era contra a etiqueta da noite. Fomos às Primas, fomos sei lá mais onde, fomos ao Incógnito estava ainda vazio, e fomos acabar com os ossos caídos na Juke Box da rua do Diário de Notícias a ouvir música que eu só tinha ouvido nas minhas K7s. Ele há coisas do destino. Árvore que nasce direita tarde ou nunca se entorta.
A certa altura na noite, considerando que já tínhamos trocado correspondência e preferências musicais e tudo o resto, diz-me ele que se eu gostava de Sisters of Mercy e Mão Morta e "vozes cavernosas" devia gostar de Fields of the Nephilim. E de seguida acabou logo ali comigo: "Com essas tendências depressivas, a pensar no suicídio, a ouvir essas músicas, deves ser gótica".
Foi a primeira vez que ouvi a palavra. Gótica. Achei uma grande parvoíce. Devo ter feito uma careta de todo o tamanho. O que me estava a chamar? Seria um bicho? Gótica, disse ele. E eu encolhi os ombros e perguntei "o que é isso?"...
Continua.
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
A juventude é desperdiçada nos jovens
"Youth is wasted on the young"
Provérbio não sei de onde que cada vez faz mais sentido à medida que os anos passam. Soubesse eu o que sei agora e tivesse eu menos vinte anos... Não estou a dizer que desaproveitei a juventude. Pelo contrário, fui uma privilegiada. Só fazia o que me dava na real gana, e isto de fazer apenas o que nos dá na real gana é um luxo que de poucos se podem gabar. Não há dinheiro no mundo que o pague.
Mas olhando para trás, agora percebo que ainda podia ter feito tão mais se soubesse mais. Ah!!! Ingénua juventude! Dai-me hoje um corpo e a vitalidade dos 15 anos e criai um monstro! Deve ser pela Providência Divina que ninguém deve saber tanto com tão pouca idade!
Vêm estas reflexões não só mas também a propósito de um mail recebido das Graveyard Sessions, já publicado no Pórtico, que reza assim:
Actualmente não me posso voluntariar. É a falta de tempo, o trabalho, o pão de cada dia.
Mas digo-vos aqui de cátedra o seguinte, e a razão pela qual penso que a juventude é desperdiçada nos jovens: se fosse mais nova e tivesse mais tempo, também não me atreveria.
E porquê, perguntam? Porque os jovens não sabem nada da vida. Os jovens perdem a juventude a sentir-se inseguros, desenquadrados, tímidos, indecisos, a tentar descobrir onde pertencem e o que querem ser. Já não crianças mas ainda não adultos, perdem tempo, e o tempo não volta atrás, e quando se percebe finalmente o que se quer e o que se anda cá a fazer chegamos à conclusão de que estamos prontos para a morte.
Bem dizia o outro. A vida devia começar nas fraldas da velhice, desabrochar na descoberta da adolescência, definhar nos seios ternos da mãe, e terminar triunfantemente num orgasmo. Deus fez tudo ao contrário. Certamente de propósito.
Provérbio não sei de onde que cada vez faz mais sentido à medida que os anos passam. Soubesse eu o que sei agora e tivesse eu menos vinte anos... Não estou a dizer que desaproveitei a juventude. Pelo contrário, fui uma privilegiada. Só fazia o que me dava na real gana, e isto de fazer apenas o que nos dá na real gana é um luxo que de poucos se podem gabar. Não há dinheiro no mundo que o pague.
Mas olhando para trás, agora percebo que ainda podia ter feito tão mais se soubesse mais. Ah!!! Ingénua juventude! Dai-me hoje um corpo e a vitalidade dos 15 anos e criai um monstro! Deve ser pela Providência Divina que ninguém deve saber tanto com tão pouca idade!
Vêm estas reflexões não só mas também a propósito de um mail recebido das Graveyard Sessions, já publicado no Pórtico, que reza assim:
Estamos à procura de novos membros a integrar na nossa equipa
Gostas de cultura, música e organização de eventos?
Gostarias de fazer parte da nossa equipa?
Envia-nos o teu CV com fotografia e fala-nos um pouco sobre ti.
graveyardsessions@yahoo.com
Actualmente não me posso voluntariar. É a falta de tempo, o trabalho, o pão de cada dia.
Mas digo-vos aqui de cátedra o seguinte, e a razão pela qual penso que a juventude é desperdiçada nos jovens: se fosse mais nova e tivesse mais tempo, também não me atreveria.
E porquê, perguntam? Porque os jovens não sabem nada da vida. Os jovens perdem a juventude a sentir-se inseguros, desenquadrados, tímidos, indecisos, a tentar descobrir onde pertencem e o que querem ser. Já não crianças mas ainda não adultos, perdem tempo, e o tempo não volta atrás, e quando se percebe finalmente o que se quer e o que se anda cá a fazer chegamos à conclusão de que estamos prontos para a morte.
Bem dizia o outro. A vida devia começar nas fraldas da velhice, desabrochar na descoberta da adolescência, definhar nos seios ternos da mãe, e terminar triunfantemente num orgasmo. Deus fez tudo ao contrário. Certamente de propósito.
terça-feira, 20 de novembro de 2007
A fera amansada
Marilyn Manson ao vivo
Pavilhão Atântico, 19 de Novembro
Passava das nove e meia quando cheguei ao Pavilhão Atlântico. Se calhar porque não estou habituada a concertos de estádio (fico-me por salinhas mais modestas) estranhei o aparato policial nas portas de entrada. A última vez que vi tantas fardas juntas foi no Disorder. Depois da revista policial digna de aeroporto em alerta laranja, perguntei-me se também tinham apalpado assim o maluco do americano que ia subir ao palco.
Perdi completamente os Turbonegro mas o trabalho não perdoa e a certa altura temi nem chegar a tempo de apanhar o princípio de Manson. Tive sorte. Cheguei no intervalo e ainda pedi uma cerveja "grande" pelo módico preço de 2 euros e 90 (não roubam pouco, não!).
O público era bastante heterogéneo, dos pitos aos cotas, dos metaleiros aos góticos, até à malta que que não tem nada a ver com nada e nunca se adivinharia que gostasse de Marilyn Manson.
Às 21h55 ouviu-se o intro e pouco depois caiu literalmente o pano. Marilyn Manson, pintado com uma banda vermelha horizontal sobre os olhos, muito ao seu estilo, atacou em força com "If I Was Your Vampire" do novo álbum.
Sucedeu-se um sortido de êxitos do passado mas o público estava frio, apático, nem batia palmas. Grandes espaços na plateia, longe de preenchida, e os balcões quase desertos. Eu própria me arrependia de ter pedido a cerveja "grande", ali especada com o "balde" nas mãos sem poder aplaudir. Não era que Manson desapontasse. A voz está boa, os novos músicos fazem o que devem... Mas faltava química.
A coisa só começou a animar quando Manson passou ao teatro. No alto de uma cadeira gigante, pôs-se a fazer malabarismos enquanto cantava "Are You The Rabbit?", mais uma do novo álbum, e o público empolgou-se.
Talvez Marilyn Manson tenha perdido aquela capacidade de chocar a que as pessoas se habituaram e ande simplesmente à procura de uma maneira nova de estar em palco. Uma coisa é certa, as pausas no intervalo das músicas para mudar o cenário são um "corte" no ambiente musical que arrefece completamente a plateia.
Munido de projecções relacionadas com os conceitos dos álbuns anteriores, Manson mostrou-se pouco "obscene" e muito bem comportado. Fizeram-lhe chegar uma bandeira de Portugal (cheguei a pensar que era lingerie mas não tivemos tanta sorte...) que pôs aos ombros em sinal de respeito. O público gostou. Eu não sei se Manson gosta de bandeiras (parece-me que não) mas foi bonito. Só faltava uma condecoração do presidente da República e um beijinho da primeira dama. Quem ainda espera o Anticristo que cospe e dá pontapés pode tirar o cavalinho da chuva. Pelo contrário, durante "Heart-Shaped Glasses" tivemos direito a uma chuva de confettis (pretos). Parecia o Dia dos Namorados.
Mas não vou ser mázinha. Quando já começava a pensar se tinha deixado "Os Sopranos" a gravar e se ainda chegaria a casa a tempo de ver "A Letra L" e se lá fora ainda chovia muito, fui arrancada do tédio por dois grandes momentos. O primeiro quando Manson se fez erguer num aparato metálico para cantar "The Reflecting God". Mais à vontade com o novo Manson, o público que quis entregou-se completamente: "shoot, shoot, shoot motherfucker, shoot!"
O outro grande momento foi quando o cenário voltou ao primeiro álbum, grandes faixas negras ao fundo com o símbolo do raio, e Manson, de fato, gravata e cartola, não só canta como interpreta um "Antichrist Superstar" em que faz de político, marioneta decadente, pregador, tudo ao mesmo tempo, para no fim lançar fogo ao livro que segura na mão. Política e religião a arder e eu a aplaudir freneticamente, às gargalhadas. Deve ser a primeira vez que um concerto apela ao meu sentido de humor mas confesso que me diverti imenso. "They say the drugs are made in Portugal" cai sempre bem. Não sei se Manson gostou. Com o homem tudo é ironia. Parece-me que não, como já me tinha parecido da última vez que o vi no Super Bock Super Rock. Gostava mesmo era de o ver no Coliseu, mais perto do público, mais intimista.
O próprio Manson parece também querer vencer a distância. Ainda andou a cantar para as primeiras filas antes do fim, e depois de "Beautiful People" lançou-nos uma nuvem de confettis brancos. Tudo muito profissional, tudo medido e ensaiado como numa peça de teatro. Pouco, se alguma coisa, é deixado à espontaneidade do momento. Para concerto de rock, sabe a pouco. Para peça de teatro, Manson terá de abandonar a tentativa de ser apenas um cantor de rock e abraçar o seu lado vaudeville. E talvez não fosse má ideia. O formato "concerto" parece atrapalhar mais do que ajudar. Rock is dead?
Pavilhão Atântico, 19 de Novembro
Passava das nove e meia quando cheguei ao Pavilhão Atlântico. Se calhar porque não estou habituada a concertos de estádio (fico-me por salinhas mais modestas) estranhei o aparato policial nas portas de entrada. A última vez que vi tantas fardas juntas foi no Disorder. Depois da revista policial digna de aeroporto em alerta laranja, perguntei-me se também tinham apalpado assim o maluco do americano que ia subir ao palco.
Perdi completamente os Turbonegro mas o trabalho não perdoa e a certa altura temi nem chegar a tempo de apanhar o princípio de Manson. Tive sorte. Cheguei no intervalo e ainda pedi uma cerveja "grande" pelo módico preço de 2 euros e 90 (não roubam pouco, não!).
O público era bastante heterogéneo, dos pitos aos cotas, dos metaleiros aos góticos, até à malta que que não tem nada a ver com nada e nunca se adivinharia que gostasse de Marilyn Manson.
Às 21h55 ouviu-se o intro e pouco depois caiu literalmente o pano. Marilyn Manson, pintado com uma banda vermelha horizontal sobre os olhos, muito ao seu estilo, atacou em força com "If I Was Your Vampire" do novo álbum.
Sucedeu-se um sortido de êxitos do passado mas o público estava frio, apático, nem batia palmas. Grandes espaços na plateia, longe de preenchida, e os balcões quase desertos. Eu própria me arrependia de ter pedido a cerveja "grande", ali especada com o "balde" nas mãos sem poder aplaudir. Não era que Manson desapontasse. A voz está boa, os novos músicos fazem o que devem... Mas faltava química.
A coisa só começou a animar quando Manson passou ao teatro. No alto de uma cadeira gigante, pôs-se a fazer malabarismos enquanto cantava "Are You The Rabbit?", mais uma do novo álbum, e o público empolgou-se.
Talvez Marilyn Manson tenha perdido aquela capacidade de chocar a que as pessoas se habituaram e ande simplesmente à procura de uma maneira nova de estar em palco. Uma coisa é certa, as pausas no intervalo das músicas para mudar o cenário são um "corte" no ambiente musical que arrefece completamente a plateia.
Munido de projecções relacionadas com os conceitos dos álbuns anteriores, Manson mostrou-se pouco "obscene" e muito bem comportado. Fizeram-lhe chegar uma bandeira de Portugal (cheguei a pensar que era lingerie mas não tivemos tanta sorte...) que pôs aos ombros em sinal de respeito. O público gostou. Eu não sei se Manson gosta de bandeiras (parece-me que não) mas foi bonito. Só faltava uma condecoração do presidente da República e um beijinho da primeira dama. Quem ainda espera o Anticristo que cospe e dá pontapés pode tirar o cavalinho da chuva. Pelo contrário, durante "Heart-Shaped Glasses" tivemos direito a uma chuva de confettis (pretos). Parecia o Dia dos Namorados.
Mas não vou ser mázinha. Quando já começava a pensar se tinha deixado "Os Sopranos" a gravar e se ainda chegaria a casa a tempo de ver "A Letra L" e se lá fora ainda chovia muito, fui arrancada do tédio por dois grandes momentos. O primeiro quando Manson se fez erguer num aparato metálico para cantar "The Reflecting God". Mais à vontade com o novo Manson, o público que quis entregou-se completamente: "shoot, shoot, shoot motherfucker, shoot!"
O outro grande momento foi quando o cenário voltou ao primeiro álbum, grandes faixas negras ao fundo com o símbolo do raio, e Manson, de fato, gravata e cartola, não só canta como interpreta um "Antichrist Superstar" em que faz de político, marioneta decadente, pregador, tudo ao mesmo tempo, para no fim lançar fogo ao livro que segura na mão. Política e religião a arder e eu a aplaudir freneticamente, às gargalhadas. Deve ser a primeira vez que um concerto apela ao meu sentido de humor mas confesso que me diverti imenso. "They say the drugs are made in Portugal" cai sempre bem. Não sei se Manson gostou. Com o homem tudo é ironia. Parece-me que não, como já me tinha parecido da última vez que o vi no Super Bock Super Rock. Gostava mesmo era de o ver no Coliseu, mais perto do público, mais intimista.
O próprio Manson parece também querer vencer a distância. Ainda andou a cantar para as primeiras filas antes do fim, e depois de "Beautiful People" lançou-nos uma nuvem de confettis brancos. Tudo muito profissional, tudo medido e ensaiado como numa peça de teatro. Pouco, se alguma coisa, é deixado à espontaneidade do momento. Para concerto de rock, sabe a pouco. Para peça de teatro, Manson terá de abandonar a tentativa de ser apenas um cantor de rock e abraçar o seu lado vaudeville. E talvez não fosse má ideia. O formato "concerto" parece atrapalhar mais do que ajudar. Rock is dead?
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
Movimento gótico: Uma Perspectiva I
No princípio era o nada. Quando eu cheguei à noite, o Bairro Alto era ainda uma sucessão de tascas, casas de fados e elitistas bares da moda. Um pormenor que recordo com alguma perplexidade, ainda havia prostitutas na rua, sempre duas ou três, já quase reformadas e outras a entrar na pré-reforma, na esquina da Rua da Atalaia junto às Primas. Eram reminiscências de um tempo antigo, de engate à meia porta e cinta na liga, resquício ainda mais rebuscado da Lisboa do fado vadio, da Severa e de outras menos más, da soldadagem de província em busca de copos e mulheres, a fazer-se homem, dos boémios... e, claro, dos artistas. Parece há muito tempo mas ainda em 1987, quando eu cheguei, as pessoas sérias não saíam à noite. Sair à noite era coisa de puta, de putanheiro, de maricas e de artista de revista. Foi nesse Bairro Alto que eu herdei as tascas, as putas e os intelectuais. Estes últimos tinham os seus selectos santuários, o Frágil e os Três Pastorinhos, onde ninguém entrava se não vestisse Ana Salazar.
Não é possível descrever o meu caminho sem começar aqui, no Bairro Alto, onde (quase) nada do que há hoje existia mas algo de novo já começava a fervilhar, como um vírus contagioso todo contente no esgoto infecto, ainda invisível e incubado, mas pronto a espalhar a sua doença.
Mais em baixo, na rua do Diário de Notícias, havia sempre punks à porta de uma determinada discoteca. Discoteca era o nome que dávamos a um sítio onde se ia ouvir música tão alta que não se podia conversar. O termo "bar" raramente se ouvia. Havia o piroso bar dançante, isso havia, e a mais piolhosa "boite", geralmente também "casa de meninas" mas não necessariamente. Vai por isso o termo discoteca aplicado à Juke Box como a conheci, onde pela primeira vez ouvi Sisters of Mercy, Cure, Siouxie, Bauhaus ou Joy Division fora de casa.
Mas não avancemos mais que ainda há muito para contar. Lembro-me especialmente da sujidade, da porcaria. Ainda hoje os bares, tascas e mesmo discotecas da capital (nem escapam os mais finos) primam pela falta de limpeza. Falta de higiene da gerência, falta de asseio dos clientes. Porcos na pocilga em todo o estilo. (Será que conto aquela da menina que mijou nas escadas da casa de banho do Kremlin porque a pia estava ocupada? Não, não conto. E isso é muito para a frente na história.) Eis algo que não mudou. O que me leva a perceber que estas memórias começam muito antes disto tudo. O vírus desenvolve-se na merda.
A primeira vez que eu vi um punk tinha uns 7 ou 8 anos. Estávamos para aí entre 1979 e os primeiros anos 80. Eram duas gajas que vinham dos lados da Feira da Ladra. Os meus olhos de criança fixaram-se nas meias rotas até à brutal revelação que elas se vestiam assim de propósito. Collants esburacadas, roupas rasgadas, possivelmente de quem dormia na rua ou algo parecido (já havia droga mas não se sabia). Mas o que mais me chamou à atenção foi de facto a sujidade daquela gente. O cabelo, todo no ar, mas era mais da porcaria do que do gel. Se isto foi assim na anarchy do UK ou apenas aqui na piolheira (como um amigo insiste em chamar a isto, para meu desgosto) nunca saberei. Lembrei-me delas quando vi punks mais tardios deitados no chão a beber garrafas de litro de cerveja Sagres, também na Feira da Ladra, já iam altos os anos 80 e eram diacrónicas aquelas personagens de crista e pins dos Sex Pistols. Imaginem lá o que sustinha as cristas? Porcaria. Sabão azul e branco e porcaria. Muita porcaria. Não havia lêndea ou piolho que sobrevivesse muito tempo naquela cabeça cheia de heroína (ou será que os piolhos também gostavam?) mas na altura não se falava do assunto. Até se falava da piolhagem, mas não se suspeitava da heroína.
A porcaria nunca me atraiu, pessoalmente. O que leva a história aos meus 10, 11 anos, quando pela primeira vez comecei a ouvir música escolhida por mim. Antes de continuar, saliento mais uma vez que tinha 10, 11, 12 anos, nem mais um dia. Mesmo assim e tudo isso à parte, aqui vou ser peremptória: a música dos anos 70, década em que nasci, era uma grande merda e uma grande seca. Sejamos francos. Disco sound, Abba, Festival da Eurovisão por um lado, cantigas de intervenção pós-25 de Abril por outro, e no meio disto tudo lá se ouviam umas guitarradas de hard rock ou rock sinfónico que não excitavam o menino Jesus. Até os Doors, que são os Doors, no final se tornaram arrastados, psicadélicos, droga a mais.
As hipóteses de contacto com música de vanguarda, para um miúdo de 10, 12 anos, sem irmãos mais velhos, eram mais ínfimas do que ver um OVNI no céu alentejano.
Depois o Júlio Isidro começou a promover umas bandas, no seu execrável programa de domingo à tarde "O Passeio dos Alegres" (ou seria sábado? who cares? mas não queria dizer mal do "Passeio dos Alegres" porque pelo menos tentaram dar a conhecer algo novo...). Por lá passaram, se a memória de infância me não atraiçoa, os Trabalhadores do Comércio, os Táxi, os Salada de Frutas (de Lena d'Água), a Adelaide Ferreira (de "Baby Suicida"), e uma banda estranha, os Tantra, cujo vocalista se chamava Frodo (mal eu sabia o que eu ia gostar de Frodo...) e usava um cone de plástico na cabeça tão arrepiante que à pala disso não dormi algumas noites. (Foda-se, aquilo era lá coisa para passar num domingo à tarde, ou sou eu que me assusto demais?)
Isto era já o despertar do rock português, o Chico Fininho e outros que tais, mas nada disto me dizia a ponta de um corno.
Depois apareceu um programa inédito, salvo erro chamado Top Disco, já em plenos anos 80, portanto, onde se começaram a ver uns telediscos (a palavra era "telediscos") de uns rapazinhos giros chamados Duran Duran, e Limahl, e um outro de que eu gostava particularmente porque já sabia inglês e dizia-me algo, o Nik Kershaw, com o seu lamento de sucesso "Wouldn't it be good?", e até uns Culture Club que no mínimo me deixaram de boca aberta.
Havia neles uma diferença de tudo o que tinha visto até ali. Eram limpinhos. Eram bonitos. Usavam roupa escolhida a dedo. Penteavam o cabelo que só aparentemente parecia punk. Ali não havia porcaria, havia gel. Até a vil Madonna de Like a Virgin, com as suas rendas negras e meia dúzia de crucifixos ao pescoço, não cheirava mal à distância. Porque não vamos ter ilusões, os Táxi ainda me cheiravam a gasosa e peixe frito. Mas os Duran Duran? Cheiravam a vinyl, um aroma muito virtual de que eram feitos os artistas naquele tempo. E, contudo, com cheiro a disco rígido e a internet (que não cheira a nada), hoje os artistas da moda não têm metade da sinceridade que eles tinham.
Era também o tempo do hip hop. Na América estava na moda andar de lata da mão a pintar paredes. A Balada de Hill Street não demorou muito a chegar cá, mas quando atravessou o oceano não cheirava a hot dog mas a cachupa. Tinha doze anos quando fui a uma festinha de 2º ano do Ciclo (hoje 6º ano) e me disseram "hi, não sabes dançar reggae!" Eu saber até sabia, porque aquilo estava na moda à brava e se dançava assim: um passinho à frente, joelhinho abaixo, controlado, passinho para trás, joelhinho abaixo, controlado... Quase uns familiares passo à frente e dois atrás. Estava a guardar-me para música que valesse a pena.
Não podem dizer que não me tentei integrar na merda que havia. Eu tentei. Já com os meus 13, 14 anos, pus-me a ouvir heavy metal. Nessa altura já não se chamava heavy metal mas sim speed, trash, death metal. As minhas K7s estavam gravadas com temas pop da altura, "The Reflex" dos Duran Duran no lado A, e o lado B cheio de Anthrax (quando lhe dou, dou-lhe forte, não fico por paninhos quentes), não tanto porque gostava (depressa caía na mais profunda depressão) mas porque não conhecia outra coisa. Para explicar depressa e bem, nenhuma dessas K7s arqueológicas sobreviveram até aos nossos dias. Graças a Deus! E graças a mim que não tive o mau gosto de as preservar.
O que me leva à questão das tribos que existiam em Portugal na altura. Não, ainda não é hoje que vou falar nos vanguardistas. Esses merecem um cantinho bastante especial e dedicado nas páginas do meu ódio.
Vou começar pelos metaleiros porque me dá especial prazer, especialmente quando nas minhas tentativas de socializar aproveitei a minha audição (não apreço) pelas bandas de metal mais vanguardistas da altura para meter conversa com eles. Ser metaleiro, no início dos anos 80 e até princípios dos anos 90, não era andar vestido de preto com um pentagrama ao pescoço. Tudo isso foi roubado aos góticos. Vou então passar a explicar, e os metaleiros de hoje, quais alemães do pós-guerra, que me perdoem por não deixar morrer o horror mas vai ter de ser. Ser metaleiro, nesses tempos, era usar calças de ganga elásticas, azuis, usadas até ficarem azul bebé, todas chegadinhas ao rabo e pernas magras de anoréxicos/as, e camisolas dos "i-rom mái-dem", sim ouviram bem, "i-rom mái-dem" porque a maior parte deles nem sabia ler inglês quanto mais falar (o ensino obrigatório era o Ciclo Preparatório), e umas cabeleiras compridas, compridas, desgrenhadas, oleosas e... adivinhem?... sujas de meter nojo. Mas é como eu digo, a sujidade era tanta e geral que não se notava. Tudo era sujo, tudo era porco.
[Haviam de ver os pais e mães desses meninos, que só tomavam banho de quinze em quinze dias porque não havia dinheiro para mais.
Não sei se viram "O Perfume", já para não perguntar se leram. Há uma parte em que se diz que Paris na época devia ser um antro fétido a que os narizes já estavam acostumados. Portugal era um antro semelhante no que toca ao chulé, à caspa, à roupa suja. Ao perfume barato a disfarçar. Devemos ter aprendido esse truque do perfume com os franceses mas como não sou especialista vou-me reservar a falar do que sei.]
Os metaleiros, tal como os punks, parece que faziam um especial orgulho da sua falta de limpeza. E depois havia a droga. Já se cheirava droga por todo o lado e ainda ninguém lhe reconhecia o cheiro.
Isto da sujidade lembra-me outra tribo, aquela em que Portugal é mais pródiga, que são os bimbos em geral. Desses nem quero falar porque me deprime, mas diverte-me trazer aqui as memórias de uma sub-tribo de bimbos, os azeiteiros, que eram à sua medida uma espécie de "bimbo radical" mas mais porco. O próprio termo "azeiteiro" deriva da oleosidade capilar. A malta até lhes fez um eufemismo transformando o óleo em azeite pelo que não têm que se queixar. Um verdadeiro azeiteiro já é raro de se ver. Estão praticamente extintos (mas ainda existe um ou outro, escondido debaixo de uma pedra insuspeita.) Se querem imaginar um azeiteiro adaptado aos tempos modernos (versão azeiteiro rico) pensem num Cristiano Ronaldo, sem maquilhagem nem banho, com aqueles brincos espampanantes e o cabelo cheio de óleo, cortadinho à frente e comprido atrás, à Miami Vice, e aí têm a vossa fonte de inspiração.
Esta sub-espécie raramente saía dos buracos onde morava mas quando tomava banho frequentava discotecas à tarde (sim, à tarde, porque naquele tempo não se saía à noite) a fazer-se ao engate. Nem sei se hei-de falar aqui do famoso Crazy Nights ou mais à frente. Ou talvez nunca. Se hoje se tiver transformado em loja de chineses é muito bem feita.
Era vê-los, todos limpinhos com o banho da semana, de calcinha bege, camisinha às riscas, cinto fininho e preto, mocassin castanho e meia branca. Dois ou três botões desabotoados no peito, a mostrar a pintelheira e um fio de ouro com crucifixo, à chulo, como os pais que os pariram. Nem quero imaginar as mães.
À frente. Havia os betinhos, claro, mas nesses nem punha a vista em cima porque andavam em colégios particulares a engravidar e fazer abortos antes dos acampamentos dos escuteiros organizados pela igreja. Desses não é preciso falar. Continuam iguais e penso que, tal como as baratas, serão os últimos a perecer em caso de desastre nuclear ou afins.
Estou mais interessa nos putos filhos da classe média-alta emergente nos princípios e meados dos anos 80, época dourada de entrada na CEE e início do cavaquistão. Isso é que era dinheiro. Aos treze anos já achavam "o máximo!" ir com os pais aos bares da moda, o Bora-Bora e o outro ao lado, beber cocktails verdes de Pisang Ambon com um chapelinho-de-sol. Muitos desses vieram a tornar-se vanguardistas só para se livrarem dos pais e do Bora-Bora. (Não os condeno. Afinal, quem é que suporta o Bora-Bora? E os pais até ficaram aliviados porque naquela altura desatou tudo a divorciar-se e a dormir com este e com aquele e os fedelhos atrás só atrapalhavam o engate.)
Foi assim que os jovens começaram a sair à noite em Lisboa, extravagância proibida que até aí era um tabu tão grande quanto acender um cigarro numa unidade de oncologia do cancro do pulmão para doentes terminais.
E, de repente, num ápice, bons rapazes e boas raparigas começaram a invadir as tascas do Bairro Alto para beber barato (que a mesada não dava para mais) ao lado das putas e dos putanheiros e dos intelectuais e dos artistas.
Foi por esta altura que Jorge Palma escreveu um dos mais belos tratados sobre a noite chamado "Canção de Lisboa":
Os serões habituais
As conversas sempre iguais
Os horóscopos, os signos e ascendentes
Mais a vida da outra sussurrada entre os dentes
Os convites nos olhos embriagados
Os encontros de novo adiados
Nos ouvidos cansados ecoa
A canção de lisboa
Não está só a solidão
Há tristeza e compaixão
Quando sono acalma os corpos agitados
Pela noite atirados contra colções errados
Há o silêncio de quem não ri nem chora
Há divórcio entre o dentro e o fora
E há quem diga que nunca foi boa
A canção de lisboa
Mamã, mamã
Onde estás tu mamã
Nós sem ti não sabemos mamã
Libertar-nos do mal
A urgência de agarrar
Qualquer coisa para mostrar
Que afinal nos também temos mão na vida
Mesmo que seja a custa de a vivermos fingida
O estatuto para impressionar o mundo
Não precisa de ser mais profundo
Que o marasmo que nos atordoa
Ó canção de lisboa
As vielas de néon
As guitarras já sem som
Vão mantendo viva a tradição da fome
Que a memória deturpa e o orgulho consome
Entre o orgasmo e a gruta ainda fria
O abandonado da carne vazia
Cada um no seu canto entoa
A canção de lisboa
Continua.
Não é possível descrever o meu caminho sem começar aqui, no Bairro Alto, onde (quase) nada do que há hoje existia mas algo de novo já começava a fervilhar, como um vírus contagioso todo contente no esgoto infecto, ainda invisível e incubado, mas pronto a espalhar a sua doença.
Mais em baixo, na rua do Diário de Notícias, havia sempre punks à porta de uma determinada discoteca. Discoteca era o nome que dávamos a um sítio onde se ia ouvir música tão alta que não se podia conversar. O termo "bar" raramente se ouvia. Havia o piroso bar dançante, isso havia, e a mais piolhosa "boite", geralmente também "casa de meninas" mas não necessariamente. Vai por isso o termo discoteca aplicado à Juke Box como a conheci, onde pela primeira vez ouvi Sisters of Mercy, Cure, Siouxie, Bauhaus ou Joy Division fora de casa.
Mas não avancemos mais que ainda há muito para contar. Lembro-me especialmente da sujidade, da porcaria. Ainda hoje os bares, tascas e mesmo discotecas da capital (nem escapam os mais finos) primam pela falta de limpeza. Falta de higiene da gerência, falta de asseio dos clientes. Porcos na pocilga em todo o estilo. (Será que conto aquela da menina que mijou nas escadas da casa de banho do Kremlin porque a pia estava ocupada? Não, não conto. E isso é muito para a frente na história.) Eis algo que não mudou. O que me leva a perceber que estas memórias começam muito antes disto tudo. O vírus desenvolve-se na merda.
A primeira vez que eu vi um punk tinha uns 7 ou 8 anos. Estávamos para aí entre 1979 e os primeiros anos 80. Eram duas gajas que vinham dos lados da Feira da Ladra. Os meus olhos de criança fixaram-se nas meias rotas até à brutal revelação que elas se vestiam assim de propósito. Collants esburacadas, roupas rasgadas, possivelmente de quem dormia na rua ou algo parecido (já havia droga mas não se sabia). Mas o que mais me chamou à atenção foi de facto a sujidade daquela gente. O cabelo, todo no ar, mas era mais da porcaria do que do gel. Se isto foi assim na anarchy do UK ou apenas aqui na piolheira (como um amigo insiste em chamar a isto, para meu desgosto) nunca saberei. Lembrei-me delas quando vi punks mais tardios deitados no chão a beber garrafas de litro de cerveja Sagres, também na Feira da Ladra, já iam altos os anos 80 e eram diacrónicas aquelas personagens de crista e pins dos Sex Pistols. Imaginem lá o que sustinha as cristas? Porcaria. Sabão azul e branco e porcaria. Muita porcaria. Não havia lêndea ou piolho que sobrevivesse muito tempo naquela cabeça cheia de heroína (ou será que os piolhos também gostavam?) mas na altura não se falava do assunto. Até se falava da piolhagem, mas não se suspeitava da heroína.
A porcaria nunca me atraiu, pessoalmente. O que leva a história aos meus 10, 11 anos, quando pela primeira vez comecei a ouvir música escolhida por mim. Antes de continuar, saliento mais uma vez que tinha 10, 11, 12 anos, nem mais um dia. Mesmo assim e tudo isso à parte, aqui vou ser peremptória: a música dos anos 70, década em que nasci, era uma grande merda e uma grande seca. Sejamos francos. Disco sound, Abba, Festival da Eurovisão por um lado, cantigas de intervenção pós-25 de Abril por outro, e no meio disto tudo lá se ouviam umas guitarradas de hard rock ou rock sinfónico que não excitavam o menino Jesus. Até os Doors, que são os Doors, no final se tornaram arrastados, psicadélicos, droga a mais.
As hipóteses de contacto com música de vanguarda, para um miúdo de 10, 12 anos, sem irmãos mais velhos, eram mais ínfimas do que ver um OVNI no céu alentejano.
Depois o Júlio Isidro começou a promover umas bandas, no seu execrável programa de domingo à tarde "O Passeio dos Alegres" (ou seria sábado? who cares? mas não queria dizer mal do "Passeio dos Alegres" porque pelo menos tentaram dar a conhecer algo novo...). Por lá passaram, se a memória de infância me não atraiçoa, os Trabalhadores do Comércio, os Táxi, os Salada de Frutas (de Lena d'Água), a Adelaide Ferreira (de "Baby Suicida"), e uma banda estranha, os Tantra, cujo vocalista se chamava Frodo (mal eu sabia o que eu ia gostar de Frodo...) e usava um cone de plástico na cabeça tão arrepiante que à pala disso não dormi algumas noites. (Foda-se, aquilo era lá coisa para passar num domingo à tarde, ou sou eu que me assusto demais?)
Isto era já o despertar do rock português, o Chico Fininho e outros que tais, mas nada disto me dizia a ponta de um corno.
Depois apareceu um programa inédito, salvo erro chamado Top Disco, já em plenos anos 80, portanto, onde se começaram a ver uns telediscos (a palavra era "telediscos") de uns rapazinhos giros chamados Duran Duran, e Limahl, e um outro de que eu gostava particularmente porque já sabia inglês e dizia-me algo, o Nik Kershaw, com o seu lamento de sucesso "Wouldn't it be good?", e até uns Culture Club que no mínimo me deixaram de boca aberta.
Havia neles uma diferença de tudo o que tinha visto até ali. Eram limpinhos. Eram bonitos. Usavam roupa escolhida a dedo. Penteavam o cabelo que só aparentemente parecia punk. Ali não havia porcaria, havia gel. Até a vil Madonna de Like a Virgin, com as suas rendas negras e meia dúzia de crucifixos ao pescoço, não cheirava mal à distância. Porque não vamos ter ilusões, os Táxi ainda me cheiravam a gasosa e peixe frito. Mas os Duran Duran? Cheiravam a vinyl, um aroma muito virtual de que eram feitos os artistas naquele tempo. E, contudo, com cheiro a disco rígido e a internet (que não cheira a nada), hoje os artistas da moda não têm metade da sinceridade que eles tinham.
Era também o tempo do hip hop. Na América estava na moda andar de lata da mão a pintar paredes. A Balada de Hill Street não demorou muito a chegar cá, mas quando atravessou o oceano não cheirava a hot dog mas a cachupa. Tinha doze anos quando fui a uma festinha de 2º ano do Ciclo (hoje 6º ano) e me disseram "hi, não sabes dançar reggae!" Eu saber até sabia, porque aquilo estava na moda à brava e se dançava assim: um passinho à frente, joelhinho abaixo, controlado, passinho para trás, joelhinho abaixo, controlado... Quase uns familiares passo à frente e dois atrás. Estava a guardar-me para música que valesse a pena.
Não podem dizer que não me tentei integrar na merda que havia. Eu tentei. Já com os meus 13, 14 anos, pus-me a ouvir heavy metal. Nessa altura já não se chamava heavy metal mas sim speed, trash, death metal. As minhas K7s estavam gravadas com temas pop da altura, "The Reflex" dos Duran Duran no lado A, e o lado B cheio de Anthrax (quando lhe dou, dou-lhe forte, não fico por paninhos quentes), não tanto porque gostava (depressa caía na mais profunda depressão) mas porque não conhecia outra coisa. Para explicar depressa e bem, nenhuma dessas K7s arqueológicas sobreviveram até aos nossos dias. Graças a Deus! E graças a mim que não tive o mau gosto de as preservar.
O que me leva à questão das tribos que existiam em Portugal na altura. Não, ainda não é hoje que vou falar nos vanguardistas. Esses merecem um cantinho bastante especial e dedicado nas páginas do meu ódio.
Vou começar pelos metaleiros porque me dá especial prazer, especialmente quando nas minhas tentativas de socializar aproveitei a minha audição (não apreço) pelas bandas de metal mais vanguardistas da altura para meter conversa com eles. Ser metaleiro, no início dos anos 80 e até princípios dos anos 90, não era andar vestido de preto com um pentagrama ao pescoço. Tudo isso foi roubado aos góticos. Vou então passar a explicar, e os metaleiros de hoje, quais alemães do pós-guerra, que me perdoem por não deixar morrer o horror mas vai ter de ser. Ser metaleiro, nesses tempos, era usar calças de ganga elásticas, azuis, usadas até ficarem azul bebé, todas chegadinhas ao rabo e pernas magras de anoréxicos/as, e camisolas dos "i-rom mái-dem", sim ouviram bem, "i-rom mái-dem" porque a maior parte deles nem sabia ler inglês quanto mais falar (o ensino obrigatório era o Ciclo Preparatório), e umas cabeleiras compridas, compridas, desgrenhadas, oleosas e... adivinhem?... sujas de meter nojo. Mas é como eu digo, a sujidade era tanta e geral que não se notava. Tudo era sujo, tudo era porco.
[Haviam de ver os pais e mães desses meninos, que só tomavam banho de quinze em quinze dias porque não havia dinheiro para mais.
Não sei se viram "O Perfume", já para não perguntar se leram. Há uma parte em que se diz que Paris na época devia ser um antro fétido a que os narizes já estavam acostumados. Portugal era um antro semelhante no que toca ao chulé, à caspa, à roupa suja. Ao perfume barato a disfarçar. Devemos ter aprendido esse truque do perfume com os franceses mas como não sou especialista vou-me reservar a falar do que sei.]
Os metaleiros, tal como os punks, parece que faziam um especial orgulho da sua falta de limpeza. E depois havia a droga. Já se cheirava droga por todo o lado e ainda ninguém lhe reconhecia o cheiro.
Isto da sujidade lembra-me outra tribo, aquela em que Portugal é mais pródiga, que são os bimbos em geral. Desses nem quero falar porque me deprime, mas diverte-me trazer aqui as memórias de uma sub-tribo de bimbos, os azeiteiros, que eram à sua medida uma espécie de "bimbo radical" mas mais porco. O próprio termo "azeiteiro" deriva da oleosidade capilar. A malta até lhes fez um eufemismo transformando o óleo em azeite pelo que não têm que se queixar. Um verdadeiro azeiteiro já é raro de se ver. Estão praticamente extintos (mas ainda existe um ou outro, escondido debaixo de uma pedra insuspeita.) Se querem imaginar um azeiteiro adaptado aos tempos modernos (versão azeiteiro rico) pensem num Cristiano Ronaldo, sem maquilhagem nem banho, com aqueles brincos espampanantes e o cabelo cheio de óleo, cortadinho à frente e comprido atrás, à Miami Vice, e aí têm a vossa fonte de inspiração.
Esta sub-espécie raramente saía dos buracos onde morava mas quando tomava banho frequentava discotecas à tarde (sim, à tarde, porque naquele tempo não se saía à noite) a fazer-se ao engate. Nem sei se hei-de falar aqui do famoso Crazy Nights ou mais à frente. Ou talvez nunca. Se hoje se tiver transformado em loja de chineses é muito bem feita.
Era vê-los, todos limpinhos com o banho da semana, de calcinha bege, camisinha às riscas, cinto fininho e preto, mocassin castanho e meia branca. Dois ou três botões desabotoados no peito, a mostrar a pintelheira e um fio de ouro com crucifixo, à chulo, como os pais que os pariram. Nem quero imaginar as mães.
À frente. Havia os betinhos, claro, mas nesses nem punha a vista em cima porque andavam em colégios particulares a engravidar e fazer abortos antes dos acampamentos dos escuteiros organizados pela igreja. Desses não é preciso falar. Continuam iguais e penso que, tal como as baratas, serão os últimos a perecer em caso de desastre nuclear ou afins.
Estou mais interessa nos putos filhos da classe média-alta emergente nos princípios e meados dos anos 80, época dourada de entrada na CEE e início do cavaquistão. Isso é que era dinheiro. Aos treze anos já achavam "o máximo!" ir com os pais aos bares da moda, o Bora-Bora e o outro ao lado, beber cocktails verdes de Pisang Ambon com um chapelinho-de-sol. Muitos desses vieram a tornar-se vanguardistas só para se livrarem dos pais e do Bora-Bora. (Não os condeno. Afinal, quem é que suporta o Bora-Bora? E os pais até ficaram aliviados porque naquela altura desatou tudo a divorciar-se e a dormir com este e com aquele e os fedelhos atrás só atrapalhavam o engate.)
Foi assim que os jovens começaram a sair à noite em Lisboa, extravagância proibida que até aí era um tabu tão grande quanto acender um cigarro numa unidade de oncologia do cancro do pulmão para doentes terminais.
E, de repente, num ápice, bons rapazes e boas raparigas começaram a invadir as tascas do Bairro Alto para beber barato (que a mesada não dava para mais) ao lado das putas e dos putanheiros e dos intelectuais e dos artistas.
Foi por esta altura que Jorge Palma escreveu um dos mais belos tratados sobre a noite chamado "Canção de Lisboa":
Os serões habituais
As conversas sempre iguais
Os horóscopos, os signos e ascendentes
Mais a vida da outra sussurrada entre os dentes
Os convites nos olhos embriagados
Os encontros de novo adiados
Nos ouvidos cansados ecoa
A canção de lisboa
Não está só a solidão
Há tristeza e compaixão
Quando sono acalma os corpos agitados
Pela noite atirados contra colções errados
Há o silêncio de quem não ri nem chora
Há divórcio entre o dentro e o fora
E há quem diga que nunca foi boa
A canção de lisboa
Mamã, mamã
Onde estás tu mamã
Nós sem ti não sabemos mamã
Libertar-nos do mal
A urgência de agarrar
Qualquer coisa para mostrar
Que afinal nos também temos mão na vida
Mesmo que seja a custa de a vivermos fingida
O estatuto para impressionar o mundo
Não precisa de ser mais profundo
Que o marasmo que nos atordoa
Ó canção de lisboa
As vielas de néon
As guitarras já sem som
Vão mantendo viva a tradição da fome
Que a memória deturpa e o orgulho consome
Entre o orgasmo e a gruta ainda fria
O abandonado da carne vazia
Cada um no seu canto entoa
A canção de lisboa
Continua.
sábado, 10 de novembro de 2007
The Prophecy (saga)
"The Prophecy" é uma série de filmes daquilo a que gosto jocosamente de chamar "ficção religiosa". Ou, em termos certamente familiares aos leitores mais novos, uma espécie de "fan fic" em torno dos personagens angélicos da tradição judaico-cristã. É isso mesmo, os protagonistas da saga são anjos. Não são os querubins de S. Valentim, muito menos os anjos da guarda das criancinhas, nem sequer os anjos new age que respondem a preces e participam em curas astrais. Não. Estes são os anjos que vieram à Terra gerar em pecado os nefilins, os anjos que destruiram Sodoma e Gomorra, os mesmos que mataram os primogénitos do Egipto, e até os anjos que deixaram de o ser. "Todos os anjos são assustadores", diz-se no quarto filme, e a saga explica porquê.
Há uma guerra nos Céus, problemas no Paraíso. Algumas facções angélicas estão insatisfeitas com o favoritismo de Deus para com a sua criação terrestre e desejam voltar a ocupar o lugar que tinham "no princípio", antes de os seres humanos (mortais e imperfeitos) se terem tornado mais importantes no Plano Divino. Para atingir o seu fim, sem contrariar o Todo-Poderoso, tentam por isso conhecer e manipular as profecias apenas reveladas ao homem.
The Prophecy (1995)
Este é um filme que actualmente ainda se vê com interesse mas cujo arcanjo Gabriel de Christopher Walken não se consegue descolar da imagem do Exterminador Implacável, o que vem a ser corrigido nos filmes posteriores. Poderá ter sido um choque para os mais fundamentalistas quando o seu São Gabriel trata os humanos por "macacos" e desce à Terra para levar a alma de um general sem escrúpulos com o intuito de o fazer liderar os exércitos revoltosos que se preparam para travar a segunda guerra nos Céus. Para isso, não hesitará em matar quem se lhe atravessa pelo caminho, até a criança índia em quem a alma do tirano está aprisionada.
Um Lúcifer muito convincente interpretado por Viggo Mortensen (o "Aragorn" de "Senhor dos Anéis") reconhece a rebeldia e arrogância de Gabriel. É assim que o arcanjo, totalmente afastado da Graça Divina, é arrastado para o Inferno, e Lúcifer se torna um inesperado aliado dos humanos perplexos e desesperados. Sem dúvida a melhor parte do filme, esta reviravolta que lhe traz uma profundidade que se arriscava a não ter, e uma inversão de papéis que será de novo explorada à luz de um século XXI cada vez mais pessimista.
The Prophecy II, God's Army (1998)
Os arcanjos Miguel e Rafael enviam à Terra o anjo Daniel para conceber um nefilim que, segundo a profecia, está destinado a trazer a união entre anjos e homens e pôr fim à guerra que se prepara nos Céus. Conhecendo os seus planos, Lúcifer solta do Inferno o anjo Gabriel (dividir para reinar?), que imediatamente começa a perseguir a mulher grávida (Jennifer Beals). Ao tomar consciência do seu papel nas guerras celestiais, esta deixa-se conduzir até ao arcanjo Miguel que lhe confessa não a poder proteger do outro arcanjo.
É interessante como neste segundo filme não é o Diabo que intervém mas o Todo-Poderoso que, através da fé, faz saber o seu propósito. O anjo Gabriel é derrotado pela futura mãe do nefilim, sinal claro que Deus está do seu lado. Afastado do Céu e expulso do Inferno, Gabriel é condenado a viver na Terra, como humano, o pior castigo que poderia receber. E assim se salva mais um filme de cair na vulgaridade do Bem e do Mal.
The Prophecy III, The Ascent (2000)
O terceiro filme é, na minha opinião, o mais fraco da primeira trilogia. Retoma a história de Daniel, o nefilim, filho do anjo Daniel e de uma mulher, agora adulto e líder de uma seita que anuncia ao mundo que Deus abandonou a humanidade. Com a ausência de Gabriel, uma nova facção de anjos rebeldes surgiu nos Céus e pretende instaurar um novo Deus, Pyriel, "veterano" da guerra contra Lúcifer, mas a profecia diz que o nefilim Daniel o destruirá, pelo que o jovem se torna uma ameaça a ser eliminada. Depois de uma tentativa de assassinato mal sucedida, desce à Terra para tratar do assunto o anjo Zophael, criatura dúbia de lealdade incerta, que no fim se revela fiel a Pyriel, o novo Deus. A perseguição e constantes duelos entre Daniel e Zophael, com efeitos especiais tirados do "Matrix", podia estar muito na moda mas hoje já não se suporta os saltinhos e as correrias nas paredes. O filme ficou "passado".
Aproveita-se a grande interpretação de Christopher Walken, já não o exterminador implacável e angélico mas um velho decadente, cabeludo, barrigudo, viciado em todos os prazeres terrestres (até prostitutas), que já sabe conduzir e guia como um louco tocando a sua trombeta. É só por isso que vale a pena ver este episódio.
Quanto a Pyriel, que para personagem que aspirava a ser um novo Deus se finou num instante (o que é pena porque tinha uns lindos olhos azuis), penso que os argumentistas deram um passo maior que a perna.
Mais uma vez é a metáfora de Gabriel que salva o filme e lhe dá profundidade, pois só depois de largos anos a viver na Terra como os "macacos" que tanto despreza é que finalmente compreende o Plano Divino e é chamado de volta ao Céu.
The Prophecy IV, Uprising (2005)
Este filme regista nitidamente uma ruptura com os anteriores. O local é Bucareste, Roménia. A atmosfera é densa, europeia, cinzenta, soturna, por vezes apocalíptica, muito longe do espectáculo visual de Hollywood. É neste ambiente que um Satanás tão belo como frio (John Light) se faz passar por agente da Interpol na pista de um serial killer para se aproximar de um polícia corrupto com muitas culpas no cartório. Todavia, o que Satanás pretende desta vez não são (apenas) almas mortais, mas sim levar de volta para o Inferno o rebelde Belial (conhecido como o demónio da carne). Estes anjos são outros e também há guerra no Inferno. Belial pretende apoderar-se do Lexicon, um livro até então guardado por um velho padre local, onde está a ser escrito pela mão de Deus um novo capítulo do Apocalipse. Para os leigos na matéria, um novo capítulo da Revelação seria o acontecimento mais importante no cristianismo em 2000 anos! Com esta informação, Belial pretende criar um novo inferno, restaurar o equilíbrio, o preto no branco, em vez do cinzento tema que percorre todo o filme, a "ambivalência moral" nas palavras de Satanás, onde santos e diabos já não se distinguem.
Satanás, que desde a Queda não tem lugar no Plano Divino, ou assim parece, não mostra o mínimo interesse no livro e na sua profecia. Prefere estar na "cave" de castigo e divertir-se a ouvir as discussões dos irmãos preferidos do Pai como uma vingança servida fria. Para que nenhum anjo tenha acesso às profecias, protege a frágil Allison, guardiã do Lexicon, até obter o seu fim. E, parecendo sempre inofensivo, triunfa em todas as frentes.
Um pormenor politicamente curioso: a casa onde decorre parte da acção, que tinha servido de local de tortura à polícia secreta comunista, por ser palco de tantos horrores foi entregue pelo Divino como "pedaço de inferno na terra" ao domínio de Satanás. Dá que pensar. Dá muito que pensar.
The Prophecy V, Forsaken (2005)
Desta vez, é um serafim cujo nome verdadeiro nunca sabemos que vem à Terra à procura do Lexicon, onde se irá escrever muito em breve o nome do Anticristo que despoletará o Armagedão. Argumenta que quer intervir para evitar o genocídio, o Dia do Juízo Final ("a pior ideia de Deus"), e pretende eliminar a criança antes que esta se torne adulta. Mas para isso tem que encontrar Allison e convencê-la a entregar o livro. Movida pela fé no Plano Divino, Allison arrisca a vida para que o poderoso serafim não tome conhecimento da profecia, e para isso até recorre ao inimigo mais temível, Satanás, que já a tinha ajudado uma vez e que finalmente revela aos seus motivos. Ao contrário dos anjos celestiais rebeldes, que querem manter os humanos puros e justos fora do Paraíso, o que lhe interessa é encher o Inferno de escravos seus, e por isso tudo fará para que o Armagedão aconteça. Por algum tempo, Satanás é aliado do Plano Divino. O que também dá que pensar.
Toda a série de filmes "The Prophecy" foi classificada como cinema de terror mas, na minha opinião de habituée, exageradamente. Neste quinto episódio, contudo, garanto que há cenas arrepiantes até para o espectador mais vacinado. Direi mesmo que só não é mais assustador porque se sabe desde o princípio que a menina morta é uma mensageira de Satanás, o aliado da nossa heroína. Se isso é ainda mais arrepiante, à "Exorcista" mas post mortem, quem vir que decida.
Há uma guerra nos Céus, problemas no Paraíso. Algumas facções angélicas estão insatisfeitas com o favoritismo de Deus para com a sua criação terrestre e desejam voltar a ocupar o lugar que tinham "no princípio", antes de os seres humanos (mortais e imperfeitos) se terem tornado mais importantes no Plano Divino. Para atingir o seu fim, sem contrariar o Todo-Poderoso, tentam por isso conhecer e manipular as profecias apenas reveladas ao homem.
The Prophecy (1995)
Este é um filme que actualmente ainda se vê com interesse mas cujo arcanjo Gabriel de Christopher Walken não se consegue descolar da imagem do Exterminador Implacável, o que vem a ser corrigido nos filmes posteriores. Poderá ter sido um choque para os mais fundamentalistas quando o seu São Gabriel trata os humanos por "macacos" e desce à Terra para levar a alma de um general sem escrúpulos com o intuito de o fazer liderar os exércitos revoltosos que se preparam para travar a segunda guerra nos Céus. Para isso, não hesitará em matar quem se lhe atravessa pelo caminho, até a criança índia em quem a alma do tirano está aprisionada.
Um Lúcifer muito convincente interpretado por Viggo Mortensen (o "Aragorn" de "Senhor dos Anéis") reconhece a rebeldia e arrogância de Gabriel. É assim que o arcanjo, totalmente afastado da Graça Divina, é arrastado para o Inferno, e Lúcifer se torna um inesperado aliado dos humanos perplexos e desesperados. Sem dúvida a melhor parte do filme, esta reviravolta que lhe traz uma profundidade que se arriscava a não ter, e uma inversão de papéis que será de novo explorada à luz de um século XXI cada vez mais pessimista.
The Prophecy II, God's Army (1998)
Os arcanjos Miguel e Rafael enviam à Terra o anjo Daniel para conceber um nefilim que, segundo a profecia, está destinado a trazer a união entre anjos e homens e pôr fim à guerra que se prepara nos Céus. Conhecendo os seus planos, Lúcifer solta do Inferno o anjo Gabriel (dividir para reinar?), que imediatamente começa a perseguir a mulher grávida (Jennifer Beals). Ao tomar consciência do seu papel nas guerras celestiais, esta deixa-se conduzir até ao arcanjo Miguel que lhe confessa não a poder proteger do outro arcanjo.
É interessante como neste segundo filme não é o Diabo que intervém mas o Todo-Poderoso que, através da fé, faz saber o seu propósito. O anjo Gabriel é derrotado pela futura mãe do nefilim, sinal claro que Deus está do seu lado. Afastado do Céu e expulso do Inferno, Gabriel é condenado a viver na Terra, como humano, o pior castigo que poderia receber. E assim se salva mais um filme de cair na vulgaridade do Bem e do Mal.
The Prophecy III, The Ascent (2000)
O terceiro filme é, na minha opinião, o mais fraco da primeira trilogia. Retoma a história de Daniel, o nefilim, filho do anjo Daniel e de uma mulher, agora adulto e líder de uma seita que anuncia ao mundo que Deus abandonou a humanidade. Com a ausência de Gabriel, uma nova facção de anjos rebeldes surgiu nos Céus e pretende instaurar um novo Deus, Pyriel, "veterano" da guerra contra Lúcifer, mas a profecia diz que o nefilim Daniel o destruirá, pelo que o jovem se torna uma ameaça a ser eliminada. Depois de uma tentativa de assassinato mal sucedida, desce à Terra para tratar do assunto o anjo Zophael, criatura dúbia de lealdade incerta, que no fim se revela fiel a Pyriel, o novo Deus. A perseguição e constantes duelos entre Daniel e Zophael, com efeitos especiais tirados do "Matrix", podia estar muito na moda mas hoje já não se suporta os saltinhos e as correrias nas paredes. O filme ficou "passado".
Aproveita-se a grande interpretação de Christopher Walken, já não o exterminador implacável e angélico mas um velho decadente, cabeludo, barrigudo, viciado em todos os prazeres terrestres (até prostitutas), que já sabe conduzir e guia como um louco tocando a sua trombeta. É só por isso que vale a pena ver este episódio.
Quanto a Pyriel, que para personagem que aspirava a ser um novo Deus se finou num instante (o que é pena porque tinha uns lindos olhos azuis), penso que os argumentistas deram um passo maior que a perna.
Mais uma vez é a metáfora de Gabriel que salva o filme e lhe dá profundidade, pois só depois de largos anos a viver na Terra como os "macacos" que tanto despreza é que finalmente compreende o Plano Divino e é chamado de volta ao Céu.
The Prophecy IV, Uprising (2005)
Este filme regista nitidamente uma ruptura com os anteriores. O local é Bucareste, Roménia. A atmosfera é densa, europeia, cinzenta, soturna, por vezes apocalíptica, muito longe do espectáculo visual de Hollywood. É neste ambiente que um Satanás tão belo como frio (John Light) se faz passar por agente da Interpol na pista de um serial killer para se aproximar de um polícia corrupto com muitas culpas no cartório. Todavia, o que Satanás pretende desta vez não são (apenas) almas mortais, mas sim levar de volta para o Inferno o rebelde Belial (conhecido como o demónio da carne). Estes anjos são outros e também há guerra no Inferno. Belial pretende apoderar-se do Lexicon, um livro até então guardado por um velho padre local, onde está a ser escrito pela mão de Deus um novo capítulo do Apocalipse. Para os leigos na matéria, um novo capítulo da Revelação seria o acontecimento mais importante no cristianismo em 2000 anos! Com esta informação, Belial pretende criar um novo inferno, restaurar o equilíbrio, o preto no branco, em vez do cinzento tema que percorre todo o filme, a "ambivalência moral" nas palavras de Satanás, onde santos e diabos já não se distinguem.
Satanás, que desde a Queda não tem lugar no Plano Divino, ou assim parece, não mostra o mínimo interesse no livro e na sua profecia. Prefere estar na "cave" de castigo e divertir-se a ouvir as discussões dos irmãos preferidos do Pai como uma vingança servida fria. Para que nenhum anjo tenha acesso às profecias, protege a frágil Allison, guardiã do Lexicon, até obter o seu fim. E, parecendo sempre inofensivo, triunfa em todas as frentes.
Um pormenor politicamente curioso: a casa onde decorre parte da acção, que tinha servido de local de tortura à polícia secreta comunista, por ser palco de tantos horrores foi entregue pelo Divino como "pedaço de inferno na terra" ao domínio de Satanás. Dá que pensar. Dá muito que pensar.
The Prophecy V, Forsaken (2005)
Desta vez, é um serafim cujo nome verdadeiro nunca sabemos que vem à Terra à procura do Lexicon, onde se irá escrever muito em breve o nome do Anticristo que despoletará o Armagedão. Argumenta que quer intervir para evitar o genocídio, o Dia do Juízo Final ("a pior ideia de Deus"), e pretende eliminar a criança antes que esta se torne adulta. Mas para isso tem que encontrar Allison e convencê-la a entregar o livro. Movida pela fé no Plano Divino, Allison arrisca a vida para que o poderoso serafim não tome conhecimento da profecia, e para isso até recorre ao inimigo mais temível, Satanás, que já a tinha ajudado uma vez e que finalmente revela aos seus motivos. Ao contrário dos anjos celestiais rebeldes, que querem manter os humanos puros e justos fora do Paraíso, o que lhe interessa é encher o Inferno de escravos seus, e por isso tudo fará para que o Armagedão aconteça. Por algum tempo, Satanás é aliado do Plano Divino. O que também dá que pensar.
Toda a série de filmes "The Prophecy" foi classificada como cinema de terror mas, na minha opinião de habituée, exageradamente. Neste quinto episódio, contudo, garanto que há cenas arrepiantes até para o espectador mais vacinado. Direi mesmo que só não é mais assustador porque se sabe desde o princípio que a menina morta é uma mensageira de Satanás, o aliado da nossa heroína. Se isso é ainda mais arrepiante, à "Exorcista" mas post mortem, quem vir que decida.
quarta-feira, 7 de novembro de 2007
Inland Empire (2006)
Uma actriz consegue um papel importante que há muito desejava quando descobre que o filme que protagoniza tem fama de estar amaldiçoado. Esta é a história. A partir daqui, "Inland Empire" deixa de a ter. Qualquer tentativa de transformar o filme de três horas numa narrativa lógica é perda de tempo.
Costumo dizer que em "Mulholland Dr." o realizador David Lynch deixou o cinema para se dedicar à poesia. Aqui, parece pintar nas sucessivas telas, principalmente nos grandes planos da musa Laura Dern, quadros mais ou menos abstractos intercalados às vezes pela mais literal escuridão. Qualquer palpite em decifrar o significado desta "pintura" de David Lynch será como atribuir significados a um teste de Rorschach.
Este não é um filme para a mente mas para a alma. Como perante qualquer obra de arte, a alma sente ou não sente. A minha alma vibra e é por isso que David Lynch continua a ser o meu realizador preferido. Sou por isso suspeita quando digo que há muito ultrapassou a nota 20 na minha classificação e que este filme tende para o mais infinito... sem deixar de ter em conta que quando o nível artístico é assim tão elevado (como o de um genial Picasso), apesar da perfeição técnica muitos outros não lhe dariam mais que zero. Afinal, David Lynch despreza a definição básica de cinema que é contar uma história em imagens animadas.
Mas devo confessar, apesar do meu apreço pelo realizador e pelo filme em análise, que algo não me agradou. Admito que já estou farta até aos cabelos desta obsessão americana pelo que é real e o que não é e a consequente exploração ad nauseum dos temas de Alice no País das Maravilhas, O Feiticeiro de Oz e quejandos, que parecem ser para os os filmes de Hollywood (especialmente os independentes) um fetiche tão grande quanto o sexo para os filmes franceses.
Faço figas para que o mestre Lynch decida "pintar", "poetisar", "musicar" talvez, sobre outro assunto qualquer num próximo filme.
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Ocos e vazios
Depois de muito observar a corja que nos governa actualmente e não ter conseguido perceber porque parecem seres tão estranhos e inacreditáveis (é o das finanças, a da educação, o da economia, e o outro, o Lino das obras), talvez devido às leituras de H. P. Lovecraft se tenha feito luz.
Não são pessoas a sério. São balões. Se se lhes espetar um alfinete, saem disparados pelo espaço até esvaziarem o invólucro.
Tenho mesmo a desconfiança de alguns deles, como Sócrates, o Seguro, e aquele que ganhou a presidência da Câmara de Lisboa cujo nome não me lembro assim de repente (tal a sua não-importância) começaram a carreira como pessoas a sério. Com o tempo na política, uma invisível conspiração extra-terrestre chupou-lhes o cérebro e encheu-os de ar quente de baixo para cima. O mesmo fenómeno aconteceu a Cavaco Silva que actualmente só apresenta uma expressão facial. É dar-lhe tempo e votos e até os pitorescos Santana e Menezes passarão a balões.
Não são pessoas a sério. São balões. Se se lhes espetar um alfinete, saem disparados pelo espaço até esvaziarem o invólucro.
Tenho mesmo a desconfiança de alguns deles, como Sócrates, o Seguro, e aquele que ganhou a presidência da Câmara de Lisboa cujo nome não me lembro assim de repente (tal a sua não-importância) começaram a carreira como pessoas a sério. Com o tempo na política, uma invisível conspiração extra-terrestre chupou-lhes o cérebro e encheu-os de ar quente de baixo para cima. O mesmo fenómeno aconteceu a Cavaco Silva que actualmente só apresenta uma expressão facial. É dar-lhe tempo e votos e até os pitorescos Santana e Menezes passarão a balões.
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