[contém spoilers!]
[Primeiras duas temporadas]
Não esperava escrever tão cedo sobre esta série mas há tanta coisa a acontecer na terceira temporada que merece um post próprio.
Esta é a temporada em que o mundo se expande para lá de Gilead. É a temporada em que conhecemos a Resistência. É a temporada em que Serena Joy “fornica” o marido (e não no bom sentido) e em que Fred se vinga “fornicando-a” também.
Após a fuga de Emily, auxiliada pelo enigmático Comandante Joseph Lawrence, June é destacada precisamente para casa dele (a pedido de Lawrence, obviamente), passando a chamar-se Ofjoseph.
É-nos dito que Lawrence foi o grande arquitecto da economia de Gilead, mas eu pergunto: qual economia? Daquilo que percebemos das temporadas anteriores Gilead não tem economia, está sob sanções de muitos países que se recusam a estabelecer relações comerciais devido à falta de respeito pelos direitos humanos de Gilead, não existe turismo, o Canadá acolhe todos os refugiados de Gilead, a comida é racionada e só existem produtos da época devido a uma agricultura à antiga, e a “economia” das colónias (continuo sem saber onde elas são) resume-se a encher sacos de lixo radioactivo. A série não conseguiu estabelecer isto, mas percebe-se que Lawrence é efectivamente muito importante porque nem se digna de sair de casa para reuniões com os outros comandantes: são eles que vão à casa dele. Se isto não é importância e estatuto não sei o que será.
Devido a esse estatuto irrepreensível, Lawrence é a pessoa ideal para ser simpatizante da Resistência, especialmente porque a sua mulher, a quem ele adora, tem problemas mentais e sofre imenso com o que se passa no regime. Por esta razão, Lawrence não permite que ela saia de casa (para não ver o que se passa e para não trair o que se passa na casa deles). A casa de Lawrence, mesmo debaixo dos narizes dos outros comandantes, é um núcleo da Resistência. As Marthas (criadas para quem ninguém olha, que não são tão escrutinadas como as Servas) são as suas principais agentes com ajuda de alguns guardas e até comandantes que querem destruir o regime do seu interior.
Nesta temporada, e a série foi bastante criticada por isso, June comete vários erros de julgamento que teriam significado a morte de qualquer outro personagem. Mas June adquire um execrável “plot armour” (não pode morrer porque o que seria do enredo se a protagonista morresse?) e escapa a todos os erros com um puxão de orelhas, a ponto de se tornar irrealista num mundo em que as pessoas vão parar à forca e são penduradas na parede (como exemplo) à menor transgressão.
Algo que vai valendo a June é a protecção de Lawrence, a quem esta convence de que a mulher dele estaria melhor fora de Gilead porque a doença mental está a agravar-se e é cada vez mais difícil encontrarem-lhe a medicação de que ela precisa. Lawrence acaba por concordar.
Podemos pensar muito mal de Lawrence, um dos arquitectos de Gilead, que embora simpatizante da Resistência não faz parte dela e também não atrapalha. Mas uma coisa é certa: Lawrence ama a mulher Eleanor, a sério e de verdade.
No entanto, Lawrence tem inimigos. Como sempre nestes regimes, há facadas nas costas. Fred Waterford, antigo “dono” de Offred, insinua que Lawrence não está a cumprir o seu dever na Cerimónia, uma vez que já teve quatro Servas sem “produtividade”. Fred, um outro comandante, Serena Joy e a Tia Lydia (não falei das Tias antes, mas estas são as carcereiras sádicas que “treinam” e controlam todos os pormenores das vidas das Servas) sugerem proceder a um Testemunho, isto é, irem a casa de Lawrence na noite da Cerimónia para testemunharem se esta é realizada.
Foi a cena mais difícil de ver em “The Handmaid’s Tale” (o que não é dizer pouco nesta série). Lawrence, Eleanor e June fecham-se no quarto e Lawrence sugere que não façam nada enquanto Eleanor, fora de si, lhe grita: “Tu prometeste que nunca teríamos de fazer isto!” Ficamos a saber que a Cerimónia nunca aconteceu na casa de Lawrence. Tem de ser June a explicar que a Cerimónia tem mesmo de acontecer porque a Tia Lydia trouxe um médico para a examinar depois. Se Lawrence não fizer sexo com ela, não é o único a ser punido: ele, a esposa, as criadas e June, todos correm risco de vida. Lawrence pede à esposa que se sente a um canto, jurando que não significa nada, e corre as cortinas para ela não ver. Nesta cena, todos são violados. Ninguém está a salvo em Gilead.
No dia seguinte, Lawrence faz planos para fugir.
É também na terceira temporada que June começa a exibir um carácter de quem está disposto a tudo para lutar, e não apenas sobreviver. Quando June encontra Eleanor em coma numa tentativa de suicídio com comprimidos, June ainda pensa em ajudá-la… e de repente pára e pensa melhor, no seu momento “Breaking Bad”. Eleanor, completamente instável e descompensada, queria ir falar a toda a gente dos planos de fuga para “salvar as crianças” raptadas aos pais. A sua morte resolve esse problema. Algumas pessoas viram compaixão no acto de June para com uma mulher em sofrimento que quer morrer, e acredito que tenha havido uma parte disso também, mas acredito mais que June pensou duas vezes e deixou as coisas acontecerem como lhe interessava mais.
Fred e Serena
Mas voltemos ao nosso casal “preferido”. Vimos a saber que Fred costumava trabalhar em marketing. Para convencer os canadianos a devolverem Nichole (a bebé de June e Nick que Emily levou com ela ao fugir) organiza grandes eventos de oração em que June tem de colaborar à força. Aqui parece que os canadianos estão numa de realpolitik, porque começam a dizer que é melhor reatarem negociações com o vizinho Gilead por causa das relações comerciais e isso tudo. Mas Gilead está a usar Nichole para tentar que o Canadá extradite todos os refugiados no seu território, atrasando as negociações de propósito. Serena apercebe-se disto e sugere a Fred que contactem um representante do governo americano no exílio, um homem da sua confiança, para recuperarem a bebé mais cedo. Sozinhos, de carro, Fred e Serena vão ao encontro deste representante, que imediatamente prende Fred por crimes de guerra. Mais tarde Fred vem a saber quem o traiu: Serena. Eu fiquei tão atónita como ele. Serena enganou-nos bem. Mas Fred também tem crimes a apontar a Serena, e Serena é presa também. Adoro quando são os próprios maus a destruírem-se uns aos outros. Foi uma satisfação indescritível.
Mas porque é que Serena Joy traiu Fred? Pela promessa de passar algum tempo com a bebé Nichole, a quem ela chama “filha”. Ora, aqui há conclusões a tecer sobre Serena. Eu nunca acreditei quando ela dizia que ter um filho era tudo o que queria da vida. Sempre pensei que era uma desculpa, que Serena foi uma das arquitectas de Gilead pela ambição do poder mas o tiro saiu-lhe pela culatra. Neste episódio fui obrigada a acreditar que Serena, apesar de se encontrar agora no “mundo normal”, ainda vive na fantasia e obsessão em que ela é a mãe de Nichole, embora a criança nada lhe seja biologicamente e esteja a viver com o marido de June. Isto já é caso de psiquiatra, o que explicaria muita coisa.
“The Handmaid’s Tale” tem representações notáveis, especialmente a de Elisabeth Moss (que conhecemos de “Mad Men”) no seu enorme papelão como Offred/June, mas eu quero destacar o magnífico trabalho da actriz Yvonne Strahovski (Serena Joy), ainda por cima uma vilã, a quem não conhecemos o monólogo interior como no caso de June, e que mesmo assim nos engana e deixa na dúvida, quando o mais normal seria sentirmos uma repulsa imediata por Serena Joy.
Já vi mais temporadas de “The Handmaid’s Tale”. Se alguém ficar frustrado com a aparente falta de movimento da terceira temporada (discordo, mas algumas pessoas preferiam que o enredo andasse para a frente mais depressa) garanto que a partir daqui as coisas começam mesmo a aquecer.
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