segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

NOS4A2 / Nosferatu


Ao contrário do que o título indica, não é uma série de vampiros. Também não é um anúncio à NOS [eheh, não resisti]. O título é um trocadilho como se usa nas matrículas americanas. Lendo as letras em inglês temos algo como NOS-four-A-two, que soa quase a “nosferatu”. Não é um trocadilho muito bom e na minha opinião é um daqueles títulos que parecem giros em teoria mas que na prática nos levam a pensar em tudo menos no tema da história. Eu pensei, sinceramente, das primeiras vezes que vi o título, que ia ser uma série de espionagem e que NOS4A2 era um código qualquer. ("NOS4A2" é um livro original de Joe Hill.) Felizmente tive curiosidade em perceber que raio significava aquilo porque a série é interessante. Mas na minha opinião é um título francamente mau, e daqui não saio.
Também é um título mau pela razão óbvia que já referi: não é uma história de vampiros, pelo menos no sentido tradicional. É uma história sobre pessoas com poderes psíquicos (a que a série chama “criativos fortes” e que eu também acho uma designação péssima, por isso aqui vou só chamar-lhes “criativos”) que podem ser usados para o bem ou para o mal. Charlie Manx, o vilão, usa os seus dons para fazer muito mal. Este “criativo” descobriu uma maneira de usar os seus poderes para viver para sempre: alimentando-se de almas de crianças, que, uma vez “sugadas”, se tornam uns monstros pálidos de longos dentes. Mas não vampiros, porque comem a carne das suas vítimas. Manx é que chama nosferatu a si próprio (a petulância!) ao usar o tal NOS4A2 na matrícula do carro. Manx é velho, muito velho. Nunca é dito ao certo mas dá a entender que tem pelo menos 100 anos, se não mais. E é um “criativo” mais poderoso do que todos os outros que já o tentaram travar até ao momento. Para começar, Manx criou um espaço ficcional, mas real (é preciso ver para compreender), chamado Natalândia (Christmas Land), que usa para atrair as crianças. Esta Natalândia, baseada em temas natalícios e fofinhos, é um local sinistro a lembrar o filme “Nightmare Before Christmas”. Ora, eu odeio o Natal e deu-me gozo. Aconselho vivamente a toda a gente que também odeia o Natal.
Charlie Manx tem outra ajuda sobrenatural, um carro com vida própria, tipo “Christine”, que aprisiona pessoas no banco de trás e se conduz sozinho. Este carro deve ser o elemento mais sinistro de toda a série. Penso mesmo que o “nosferatu” é o carro porque é dentro e através do carro que as almas são sugadas e o espírito vital é transferido para Manx. Por motivos que não são explicados, a vida de Manx está “ligada” ao carro e quando o carro é atingido Manx fica às portas da morte. Chatices de viver para sempre a qualquer custo.


Este vilão anda a raptar crianças há quase um século (isto é, tendo em conta a data de lançamento do carro, mas ninguém nos diz que ele não começou antes) quando desta vez leva uma miúda ligada a outra “criativa”, Vic McQueen, que decide fazer-lhe frente.
Por vezes esta série toca perigosamente na treta dos super-heróis, Super-Fulano que tem o poder de fazer X, Super-Fulana que tem o poder de fazer Y, mas felizmente não cai completamente nisto. A série mantém sempre um bom nível de cenas perturbadoras, algumas bastante inesperadas como aquelas que incluem Bing, o ajudante de Manx, e que me surpreenderam pela perversidade sexual digna de um “Pshyco” numa série que é praticamente Young Adult de terror e em que a maioria dos protagonistas é adolescente.
Para além do terror e do sobrenatural, a história segue o drama bem mais prosaico da jovem Vic McQueen, que por si só valia uma série de outro tipo. Vic é filha de pais pobres e separados, ele mecânico de motas, a mãe empregada de limpeza. O género de pais que casaram muito jovens por causa da gravidez acidental e que nunca ultrapassaram esse ressentimento de abdicarem dos seus sonhos. Vic quer ir para a faculdade mas é difícil libertar-se desse ciclo de pobreza. Por exemplo, quer pedir um empréstimo para estudar mas nem sequer tem declarações de rendimentos dos pais porque ambos são pagos em dinheiro para se esquivarem aos impostos. Desta forma, Vic não consegue provar a sua necessidade de apoio. Para se candidatar ao empréstimo tem de falsificar documentos. Identifiquei-me com os problemas dela e o final deixou-me com um sabor amargo. Afinal, Vic não teve de desistir dos seus sonhos por causa do sinistro Charlie Manx ou devido a motivos sobrenaturais, mas por sua própria culpa. E tive pena. Queria mesmo vê-la entrar na faculdade e quebrar o ciclo, mas no meio disto tudo ela perdeu de vista os objectivos.
“NOS4A2” nunca é uma série tão arrepiante como podia ter sido e nunca me conseguiu arrebatar, mas vê-se com prazer (ou inquietação, neste caso). O terror nunca nos assusta mas a história vale mais pela dimensão humana do que por qualquer pseudo-nosferatu.
Deixo uma última nota à maquilhagem e aos efeitos especiais, esses sim verdadeiramente excepcionais, que conseguem convencer-nos de que Zachary Quinto é mesmo um velho centenário. Também gostei do truque em que a rapariga enfia o braço no saco das peças de scrabble e o braço parece mesmo desaparecer lá dentro. Até chega a fazer alguma impressão. E gostei de todas as cenas em que Vic atravessa a ponte, de mota, com os morcegos a esvoaçar e a imagem a inverter-se no écran. O tipo de cena que nunca mais se esquece. Nem que seja só por estes pormenores, é uma série que merece ser vista. Mas sem demasiadas expectativas.


4 comentários:

Ligeia Noire disse...

Interessante, não sabia que tinham feito uma série. Tenho de ver. Li o livro e gostei bastante.

katrina a gotika disse...

Leste? O escritor, Joe Hill, é filho de Stephen King. Daí até algumas referências comuns, como o carro tipo "Christine". o que achaste da escrita do filho em relação ao pai? Teve "ajuda" ou supera o progenitor?

Ligeia Noire disse...

Olha, sou suspeita porque nunca gostei muito do pai, aliás sempre achei que a maior parte dos livros dele me atraíam mais na versão cinematográfica do que escrita. Mas sempre fui mais cinéfila do que leitora. Exemplos, A tempestade do século, the shining, o nevoeiro, mesmo estas duas recentes adaptações, não li os livros mas os filmes são cativantes, a do casal que aluga uma casa de campo e a do escritor que tem um acidente e quejandos, sem falar, de que ele se repete imenso. O filho tem uma escrita mais directa e agressiva, só li o nosferatu mas não me parece que seja um escritor tão prolífico como o pai ou especialmente dotado mas é, certamente, mais criativo e tem uma prosa tipicamente do século XXI, pro mal ou pro bem...

katrina a gotika disse...

Eu também gosto mais das adaptações de Stephen King do que dos livros propriamente ditos. Li "Salem's Lot" e não gostei do tipo de escrita. Talvez experimente o filho.