sábado, 26 de maio de 2018

“Emperor of Thorns”, de Mark Lawrence



(crítica ao volume final da trilogia “The Broken Empire”)


CONTÉM ALGUNS SPOILERS


Fiz batota. Não é meu costume, mas em vez de começar pelo primeiro livro da trilogia “The Broken Empire”, preferi ignorar “Prince of Thorns” e “King of Thorns” e passar logo ao último capítulo, “Emperor of Thorns”. Já não é a primeira vez que leio uma série fora de ordem e não é por isso que não fico fã. Neste caso, não me arrependo nada de ter lido primeiro o último livro e não vou ler os anteriores.
Fiquei curiosa em relação ao personagem principal, Jorg, que em criança assistiu impotentemente ao assassinato da mãe e do irmão enquanto estava preso numa árvore de espinhos. A experiência deixou-lhe cicatrizes no corpo e no espírito. Compreensivelmente, Jorg irá procurar vingança.

Protagonista irredimível
Foi esta a sinopse que me interessou. Confesso que esperava um daqueles personagens de que eu gosto, um personagem profundo, melancólico e atormentado. Saiu-me um sociopata irredimível. Jorg não é atormentado. Jorg atormenta. Sofrer na infância não é sinónimo nem desculpa para o egoísmo, a falta de empatia, a falta de remorsos. Jorg vive na culpa de não ter podido fazer nada para salvar o irmão e a mãe, mas até essa culpa é relativa a si próprio: culpa-se porque ele falhou, porque ele não conseguiu cumprir o seu dever, porque ele era fraco. Tudo gira, narcisisticamente, em torno dele, até a culpa. Como qualquer sociopata, o que Jorg não suporta é o seu falhanço (real ou percepcionado, pois naquela idade não poderia fazer grande coisa). Em livros anteriores, o próprio pai de Jorg o tenta matar. Sem conhecer a criatura, isto faz-nos ter pena dele. Conhecendo, faz-nos pensar se o pai dele não terá razão. Mas como são acontecimentos de livros anteriores não posso opinar muito.
Jorg, como protagonista, é difícil de suportar. Pior ainda porque a narração é feita na primeira pessoa e estamos sempre na cabeça dele. E tudo é egoísta e retorcido na cabeça dele. Acabei o livro a precisar de uma desintoxicação. Este é o tipo de personagem que testa o limite do leitor, principalmente em primeira pessoa em que temos a sensação de que o personagem está a falar directamente connosco. É um risco escrever uma história em primeira pessoa em que o narrador é moralmente mau e nada empático. Muitos leitores deverão desistir logo nas primeiras páginas.
A mim ninguém pode acusar de não estar habituada a personagens menos bonzinhos. Pelo contrário. Um dos meus preferidos, Lestat, é um assassino. Mas Lestat é atormentado por remorsos e questões existenciais. Lestat é fascinante. Jorg não é. Desisti completamente do personagem quando percebi que perante qualquer dificuldade a primeira coisa que lhe passa pela cabeça é “quantas pessoas vou ter de sacrificar para conseguir o que quero?”. Numa pessoa normal, inclusive num líder, esta devia ser a última alternativa. Jorg nem pensa em alternativas, vai logo pelo caminho mais fácil que é atirar alguém para debaixo do comboio. Mesmo entre os que lhe são leais. Com o tempo, Jorg podia muito bem ter o destino de Júlio César, “também tu meu filho Brutus?” É o destino dos tiranos. A facada vem de perto, não de longe.
Não há qualquer traço redimível neste personagem. O ingénuo leitor que acredite mesmo que por vezes ele se sacrifica, pense melhor. Jorg faz tudo o que faz por si próprio, nunca pelos outros. Não há sacrifício nenhum; há egoísmo, tirania e irresponsabilidade. Só não me alargo mais sobre isto porque não quero revelar o fim.
Por falar em fim, a narração em primeira pessoa leva-nos enganosamente a acreditar que o narrador sobrevive à história (para no-la contar). Em literatura, não é necessário que assim seja. A meio do livro comecei a torcer contra Jorg e a desejar que as últimas palavras da história fossem: “Azar, morri.” (O que até era frase que podia sair dos lábios dele, acreditem ou não.) Digamos que não fiquei satisfeita nem insatisfeita. Jorg nunca se redime. Fiquei satisfeita porque o livro acabou.
Resumindo e concluindo, Jorg é insuportável. O autor bem tenta dar-lhe uma imagem de humanidade nas raras vezes em que introspectivamente o personagem pondera as suas mágoas e motivações, mas Jorg é daqueles que quanto mais fala mais se enterra. As intenções são sempre egoístas, quando não são puramente malvadas e tirânicas. Algumas motivações até são aceitáveis, mas nem sempre consistentes. As tiradas filosóficas são interessantes, mas quase todas discutíveis. Não consigo encontrar nada que me faça empatizar com o personagem e foi um alívio ver-me livre dele.

Porno-tortura em terras de Espanha
A história divide-se, estruturalmente, em dois momentos narrativos: a acção no presente e a acção no passado.
No presente, Jorg dirige-se ao congresso de líderes onde pretende fazer-se eleger imperador. Pelo caminho vai matando culpados e inocentes a torto e a direito. Sacrificar inocentes para atingir os seus objectivos mais depressa é algo que nem o faz pestanejar. Atrás dele, segue uma figura enigmática que nos é apresentada como Rei dos Mortos (Death King), uma entidade poderosa e maléfica que comanda um exército de zombies. Só no fim do livro percebemos a finalidade deste Rei dos Mortos, por isso não vou falar dele por agora.
Na acção no passado, Jorg conta-nos da viagem que empreendeu por várias partes do império, sempre guiado por Fexler, o fantasma/holograma. Fexler e as máquinas são o enredo mais interessante, mas antes de falar deles uma palavrinha para a porno-tortura neste livro.
“Emperor of Thorns” é Grim Fantasy. O leitor vai encontrar morte e tortura gratuita e explícita quase a cada página. Nenhuma parte de tortura é tão descarada como o ataque, algures em terras de Espanha, por um bando de salteadores que não deviam andar por ali.
Mas deixem-me explicar um pouco do espaço que rodeia a história. A saga passa-se no “nosso” futuro, num mundo um milénio (milénios?) posterior ao nosso depois de uma guerra nuclear. O planeta foi devastado. A sociedade regrediu e medievalizou-se. Da tecnologia do passado restam algumas máquinas (computadores, ou algo mais avançado) ainda a funcionar, mas já ninguém sabe operá-las. A guerra nuclear transformou partes do mundo em desertos radioactivos. Porque é que a Península Ibérica é um destes desertos, aparentemente mais bombardeados do que os outros, quando centros de decisão como Viena não parecem tão afectados, não me perguntem.
É na Península Ibérica que acontece uma das cenas de tortura mais explícitas e brutais. E possivelmente gratuita. Um bando de malfeitores vive à beira de um deserto radioactivo. É estranho, porque ninguém lá passa e mal se consegue subsistir naquele sítio. É este bando que ataca Jorg e os seus companheiros e que revela grande prazer em torturas físicas e prolongadas. Isto funcionaria se soubéssemos que estes malfeitores tinham seguido Jorg e companheiros desde a cidade mais próxima no intuito de os roubar. Mas isto não nos é dito. O que nos é dito é que o bando tem acampamento montado no meio de nenhures, como se ali estivessem de propósito à espera que algum incauto lhes caísse nas garras para o torturar. Mais estranho ainda é que aparentemente estes malfeitores até eram conhecidos na região. Ora, a guia de Jorg, que devia ser uma perita no local, nunca lhe fala deles. É muito conveniente que eles apareçam ali, do nada, só para termos uma cena de tortura (com esfolamento, arrancar de olhos, ferros em brasa) completamente dispensável ao enredo. Para quem não sabe o que é Grim Fantasy: é isto. Sempre que há desculpa, e mesmo quando não há, as coisas ficam brutais. Não é para todos.

[Por curiosidade, acrescento que neste mundo pós-apocalíptico o nosso Portugalzinho está lá. A sul do Tejo chama-se Lisboa, a norte é Port Gull. Não sei o que o autor pensa de nós e se nos conhece, mas achei giro. Está aqui o mapa.]

Os exterminadores implacáveis
O enredo mais interessante do livro, e possivelmente de toda a saga, é o que tem a ver com as máquinas. Antes do conflito nuclear, a humanidade estava tão avançada que conseguia digitalizar a consciência de um indivíduo e preservá-la para sempre. A estas “consciências digitalizadas” que aparecem em forma de “holograma”, os novos habitantes da Terra, devido ao retrocesso, chamam fantasmas. Um destes “fantasmas”, Fexler, que parece ter tido grandes responsabilidades na destruição do mundo (pelo menos foi o que eu percebi), é a verdadeira causa do sucesso de Jorg. Não li os livros anteriores mas Jorg utilizou tecnologia dos antigos (chamados Builders), bombas nucleares ou o que delas resta que ainda funciona, para conquistar o poder. Graças a Fexler, que o apoia.
Os Builders são uma versão mais avançada da nossa civilização. Sabemo-lo porque esta civilização criou “uma roda que faz os pensamentos tornarem-se realidade”. Sabemos também que fomos nós que eventualmente destruímos o mundo. Não percebi se a tal “roda” teve a ver com isso. No tempo de Jorg, um milénio (milénios?) depois da destruição, esta roda está activa e está a fazer com que as pessoas criem magia. A magia do Rei dos Mortos, por exemplo, que faz levantar os zombies, só é possível porque a roda existe.
Ora, os Builders, a quem vou chamar máquinas por uma questão de simplicidade, não estão satisfeitos com esta nova civilização. Uma facção das máquinas quer reconstruir a sociedade como era antes da destruição; outra facção quer pura e simplesmente destruir a humanidade de vez (conhecendo Jorg, não censuro esta facção). As bombas estão prontas e nos seus lugares. A qualquer momento podem ser accionadas. Basta que as facções se entendam.
É esta a grande e verdadeira ameaça no mundo de Jorg. E é também o enredo mais interessante e filosófico da saga. Preferia que o autor tivesse explorado mais estes resquícios dos seres humanos extintos e nos explicasse melhor o que é a roda e com que finalidade foi originalmente criada/construída. Não foi para fazer magia, de certeza, porque os Builders têm horror ao mundo mágico que entretanto se desenvolveu.
Quando comecei a ler não sabia que o livro tinha esta componente de ficção científica e assim que me apercebi dela comecei logo a torcer o nariz. Pareço um disco riscado, mas quantas vezes é que já disse aqui que misturar ficção científica e sobrenatural não funciona? Na maior parte do livro a ficção científica não causa problemas, até que chegamos ao fim.

Afinal era psicológico
Depois de toda esta cavalgada épica (e mais épica ainda para quem leu os três livros), o fim desaponta. O confronto com o Rei dos Mortos é no mínimo anticlimático e no máximo ridículo. Não vou revelar mais do que isto, mas o Rei dos Mortos é uma criança de sete anos. Depois de morta. É este o grande estratega militar que comanda o exército de zombies. Ora, eu acho que este é um pormenorzinho que exige uma grande explicação. A explicação fornecida não convence.
No fim, Jorg nunca passou de uma marioneta nas mãos de Fexler. Tudo o que é preciso para resolver isto é girar uma roda imaginária. O quê?!, perguntarão. Eu também perguntei. Não era preciso nada disto para girar uma roda imaginária. Podiam tê-la girado logo na primeira ou segunda página do primeiro livro e lá se ia a história toda por água abaixo. Por isso, o fim é mau e ilógico.
A magia pode ser inventada mas as máquinas e as bombas são bem reais. Esta roda devia ser uma criação física e tangível, a ser desligada num interruptor e não em “pensamentos”.
Aliás, e para começar, por que raio é que as máquinas se importam com a existência da magia? Estão todos mortos, não passam de hologramas, que lhes importa o que se passa no mundo dos vivos? Que problemas lhes causam a magia? A meu ver, nenhum.
E por que raio é que Fexler precisa que Jorg seja imperador para girar a roda? Qualquer pessoa serve. Esta parte não percebi. Não estou a ironizar. Acabei o livro e não percebi o fim. Depois de conjecturar, lembrei-me de um parágrafo ou dois lá para o fim em que o autor nos quer convencer de que os súbditos do império desejam um imperador mais do que tudo, que seria este poder da vontade e dos pensamentos dos súbditos que permitiriam ao imperador, e a ele apenas, girar a roda. Ora, o problema é que durante todo o livro o autor nos convence do contrário: o povo raramente aparece na história e quando aparece é para lamentar os problemas que a nobreza lhes causa. Até o Grande Comandante da Guarda olha com menosprezo os nobres que visitam Vyene. Tudo nos leva a crer que aquela pobre gente sob o jugo de vários tiranos só quer que os deixem em paz nas suas vidinhas e que a existência de um imperador lhes é indiferente. Logo, o motivo por que Jorg teria de ser imperador não pega, ou não foi bem explicado.

O autor
Devem ter reparado que aquilo que mais me interessou no livro não foi o protagonista e as suas aventuras mas as máquinas, os resquícios da nossa civilização. O resto foi uma história que me deixou frustrada, vazia, intoxicada, mal disposta com tanta violência gratuita.
Atrever-me-ia a ler outro livro de Mark Lawrence? Depende. A escrita do autor é dinâmica e vívida, as descrições são excelentes, a estrutura narrativa é interessante. Por outro lado, não gostei de certos truques à Agatha Christie, em que se passam coisas off-screen que o leitor não tem maneira de saber só para ser surpreendido com uma reviravolta. Assim como quando Poirot reúne todos os suspeitos numa sala e começa a debitar factos que os leitores não conhecem para identificar quem é o assassino. O pobre leitor jamais lá chegaria porque não sabe tudo o que Poirot sabe. Não gosto, não leio Agatha Christie por causa disto, e também não gostei disto aqui (a bomba no deserto é o exemplo mais grave). Sou daquelas leitoras que gostam de saber sempre tudo o que está a acontecer para viver a história como o protagonista a vive.
As personagens secundárias não aparecem muito desenvolvidas, especialmente as mulheres próximas ao protagonista, mas quanto a isto não vou opinar porque é possível que tenham sido exploradas nos livros anteriores.
O que menos gostei na escrita de Mark Lawrence foi o que ele não escreveu. Fiquei com a sensação de que foi um daqueles desgraçados a quem martelaram na cabeça com o mito “show not tell” a um ponto em que não conta tudo o que é preciso. (Infelizmente, o mesmo nota-se bastante nos autores mais recentes que foram formatados neste mito odioso de que o autor não tem de contar nada, que basta mostrar para que o leitor perceba tudo. Não é verdade.) O maior problema disto, como referi, foi o fim. Todo o enredo assenta em Fexler e nas máquinas. Quem são ou foram, exactamente, estas pessoas/resquícios? O que são as facções e como se formaram? Que responsabilidades tiveram na destruição do mundo? O que é a roda? O livro não só nunca dá resposta a estas questões como nem sequer as coloca. O fim quase leva a pensar que o autor não fazia ideia de como acabar a saga e inventou qualquer coisa às três pancadas, ou, pior um pouco, julgou que estas questões não interessavam nada e não mereciam ser resolvidas. Isto, ou Mark Lawrence está a guardá-las para um novo livro no mesmo universo.
Se eu lia esse livro ou outro livro do mesmo autor? Depende. Com protagonistas por quem torcer, com maior aprofundamento de personagens e motivações, sem porno-tortura, talvez lhe desse outra oportunidade. Ia depender muito das críticas que lesse antes. Por si só, “Emperor of Thorns” não me convenceu. Não me conseguiu envolver, não me entreteve. Aconselho este livro a quem gosta da brutalidade de uma "Guerra dos Tronos". Aos outros, aconselho que procurem longe daqui.



terça-feira, 22 de maio de 2018

Enid (2009)

"Enid" é a biografia da escritora Enid Blyton. Os mais velhos lembrar-se-ão da adaptação à TV de "Os Cinco" e os mais novos lembrar-se-ão do Noddy. Ambos criação de Enid Blyton, prolífera autora de livros infantis e juvenis.
A princípio foi estranho ver Helena Bonham Carter neste papel. Associo sempre a actriz a papéis góticos, principalmente nos filmes de Tim Burton, ou em papéis em que é mais ou menos vilã. Afinal o papel até não diferiu muito porque segundo o filme a mulher era uma megera. Enid Blyton, ao que parece, gostava mais de receber o correio das crianças que a liam do que das próprias filhas. Mas o filme adverte que os acontecimentos foram romanceados.
Não há muito para dizer deste filme, pouco pretensioso e feito para a televisão. A única coisa que se pede de um filme biográfico é que o seja, e neste aspecto fez o que lhe competia.
Enid Blyton, no filme, perante a separação dos pais ainda na infância, aprendeu a refugiar-se no mundo encantado da infância de onde sempre iria tirar inspiração para os seus livros. Achei muito interessante, porque para escapar à minha infância infeliz eu fiz exactamente o contrário: desde muito pequena, procurei sempre o trágico e o assustador. Talvez para me convencer de que as coisas eram más mas se tivessem lobisomens e vampiros ainda seriam piores? Ainda hoje, só um bom enredo de terror me consegue abstrair de tudo.

Enid é um filme simples para quem se interessar por conhecer a vida da autora. Gostei e recomendo.

sábado, 5 de maio de 2018

Vikings


(crítica às primeiras duas temporadas)


Como diria Kurt Vonnegut, um elemento primordial de uma boa história é ter pelo menos um personagem por quem torcer. Não precisa de ser o protagonista. Até pode ser o vilão. Há casos em que os personagens são todos tão maus, moralmente falando, que uma pessoa torce pelo vilão que tem mais hipóteses de acabar com eles. Como na Guerra dos Tronos, em que estou a torcer pelos zombies desde a primeira temporada. E depois há casos em que o vilão é mais interessante e moralmente superior do que os protagonistas, como Battlestar Galactica, em que igualmente comecei torcer pelos Cylons desde a primeira temporada.
E depois há coisas como Vikings, em que não se consegue torcer por ninguém. Ninguém. Ninguém. Nem protagonistas nem vilões, ninguém merece nada de mim. São todos tão maus, moralmente falando, que dou por mim a ver a série como visita de estudo ao século VIII: as roupas, as casas, a tecnologia (ou falta dela). E pouco mais. Vikings, série original do canal História, foi promovida como reconstrução histórica mas já me causou dúvidas bastantes para não a considerar assim tão rigorosa que se deva levar muito a sério.
Não me refiro ao protagonista. Ragnar Lothbrok é uma figura tão histórica como mítica. Tudo indica que existiu um Ragnar, mas os pormenores são tão lendários (até contraditórios) que não se sabe onde acaba a realidade dos relatos e começa a ficção dos sucessivos cronistas. Um pouco como o nosso Viriato. Existiu (?...), mas não se sabe quase nada sobre ele. O tipo de personagem histórica e lendária completamente propícia a ser romanceada.
O que me causa perplexidade é a tentativa de fazer os vikings tão monstruosos que custa ver seres humanos naquela gente. Um pouco como noutros séculos se descreviam os selvagens canibais. Tenho encontrado críticas bizarras em que se dizem coisas do género “a sociedade viking é-nos completamente estranha, mas conseguimos reconhecer nas personagens traços humanos e comuns como a luxúria, a inveja, a ambição”. Estas coisas são ditas para sublinhar a humanidade dos personagens. Isto é que é bizarro. Parece que estamos a ver uma série sobre alienígenas que até têm algumas coisas em comum connosco, humanos. Mas a verdade é que as críticas são bizarras porque a série se presta a isso. Tal é o exagero que é preciso esgravatar muito para encontrar nestes vikings alguma coisa que nos lembre que são seres humanos e não um qualquer povo ficcional de uma obra de Fantasia (eu diria Orcs, só que mais bonitos). E é por isso que não consigo “ir à bola” com a série. Demasiadas coisas em que a bota não bate com a perdigota.
Comecei a investigar, e descobri que o criador desta série, Michael Hirst, é um meu “conhecido”. Este foi o mesmo que tornou Os Tudors em tal porno-tortura que me estragou todo o prazer em ver a série. Muito antes de Guerra dos Tronos, muito antes de Spartacus, Os Tudors foram a primeira série de televisão em que vi porno-tortura descarada. Desconfio que este senhor tenha alguma coisa a ver com as tendências televisivas que se seguiram e que me têm estragado o prazer como espectadora. (Pode não ter sido só ele, mas *também foi ele*, motivo suficiente de rancor.) Mesmo assim, Vikings ainda não conseguiu ser tão psicologicamente doloroso como Os Tudors, o que é dizer qualquer coisa. E se calhar não conseguiu precisamente porque, ao contrário d'Os Tudors, baseado em pessoas reais, estes personagens quase nem parecem humanos. É como ver Orcs a chacinar outros Orcs. Ou seja, a série não me consegue afectar tanto emocionalmente porque os personagens estão tão mal concebidos que me custa interessar por eles. A juntar à porno-tortura, é basicamente porno-tv.
Apesar da pornografia sangrenta, a série consegue ver-se porque o enredo é minimamente interessante e baseado em acontecimentos reais.
Mas passo a explicar melhor porque é que a bota não bate com a perdigota.


Athelsthan
Oh, Athelstan, que grande desilusão me saíste! Athelstan podia ter sido o meu personagem preferido (o único por quem torcer). Monge raptado num saque viking e levado para casa de Ragnar como escravo, Athelstan foi os “nossos” olhos na sociedade pagã para que foi transportado, em que todos os valores são diferentes, alguns até opostos, à civilização cristã que é a dele (e a nossa, salvo os séculos que nos separam). Na estupefacção de Athelstan, no horror e repulsa que lhe causa o que observa, reconhecemos o nosso horror e repulsa. Sabemos que a vida de Athelstan pode estar por um fio e temos de torcer por ele. Mesmo quando, desenvolvendo um gigantesco caso de Síndrome de Estocolmo [se eu quisesse fazer uma chalaça chamar-lhe-ia Síndrome de Kattegat], Athelstan começa a “tornar-se” viking também. Inclusivamente participa numa batalha em que o pacato ex-monge se atira à chacina como antes se dedicava aos pergaminhos do mosteiro. Incoerente? Se Athelstan tivesse alguma inclinação pelas armas não teria escolhido uma ordem monástica de monges guerreiros? Talvez não, porque este seu novo “papel” na sociedade viking lhe garante a sobrevivência e, por último, a liberdade. Até aqui tudo consistente.
Mais tarde, Athelstan acompanha Ragnar a um saque na Inglaterra e por lá permanece, onde conhece o rei Ecbert. Começa logo aqui a inverosimilhança histórica. Acusado de ser um herege (devido à sua “conversão” ao modo de vida viking) a igreja decide crucificá-lo. Crucificá-lo, a um herege, como a Cristo, quando segundo a lenda até São Pedro pediu que o crucificassem de cabeça para baixo porque não merecia morrer como Ele?! Os criadores da história juram que encontraram pelo menos um relato de crucificação de um herege, e tendo em conta que era o século VIII e a informação não circulava muito bem, até acredito que um bando de energúmenos nunca tenha ouvido falar do caso de São Pedro (cuja morte não é contada na Bíblia) e tenha achado boa ideia crucificar um herege com a morte de Cristo. É possível. Improvável, mas possível.
Em Wessex, o rei Ecbert novamente coloca uma espécie de Síndrome de Estocolmo sobre a cabeça de Athelstan: salva-lhe a vida em troca de este traduzir pergaminhos romanos enquanto Athelstan mantiver o trabalho em segredo, uma vez que a igreja não aprovaria este interesse por literatura pagã. (Nem me parece que a ameaça fosse necessária porque o próprio Athelstan sabe os riscos que corre, mas vamos considerar que assim a série mantém o conflito aceso.) Athelstan está, portanto, nas suas sete quintas, a traduzir palavras dos filósofos e imperadores romanos.
Eis quando Ragnar aparece outra vez e lhe diz: “Quero que voltes”. E Athelstan volta só porque Ragnar pediu.
Oh Athelstan, que parvoíce foi essa?! Ragnar queria sacrificar-te aos deuses nórdicos, Athelstan! E tu trocas o trabalho histórico com os pergaminhos romanos por uma cultura de analfabetos?! Por uma vez na vida faço minhas as palavras do Floki, quando viu Athelstan de regresso a Kattegat: “Porque voltaste? Ninguém te quer aqui!” Nem mais! Athelstan, sei que não estavas muito bem em Wessex, e que vivias num mundo medieval e brutal, mas entre Wessex e Kattegat foi como saltar da frigideira para o lume. Não percebo e perdi todo o respeito por ti. Um homem como tu, aberto a novas culturas e não completamente avesso a pegar em armas, devia era ter fugido para a Península Ibérica sem olhar para trás. Foge, Athelstan, foge para a Moirama! Converte-te ao Islão (pelo menos têm o mesmo Deus), arranja um harém de odaliscas, treina o sabre, e verás o manancial de conhecimento que os Árabes guardavam nesse tempo e como apreciariam um monge que sabia falar latim, possivelmente grego, inglês (da época), francês (da época), e a língua viking. Athelstan, até te chamavam um figo! Em vez de fugires para onde te apreciem, vais de cavalo para burro de volta para a barbárie. Enfim, que dizer? És uma desilusão e não posso torcer por quem não torce por si próprio.
Até tenho a teoria de que secretamente o que Athelstan mais procurava era tornar-se mártir, o que explica também a sua fascinação pelo bilhete directo para o Valhalla oferecido pela cultura viking. Athelstan, como bom monge cristão, também quer um bilhete directo para o Céu.
Apesar de tudo, Athelstan continua a ser o personagem que mais me interessa. Foi extremamente divertido vê-lo alucinar, especialmente o diabo debaixo da cama. (Há muitos espectadores que detestam visões e alucinações, mas não me conto entre esses. Quanto mais visões e alucinações melhor.)


Floki
A minha antipatia por este personagem foi imediata, instintiva e visceral. Chamem-lhe elitismo, mas ver um gajo sanguinário apresentado com um visual de gótico drogado do início dos anos 80 não me caiu bem. Nem sequer foi a questão de que Floki me pareceu, desde a sua primeira aparição, como estando sempre em alta trip de cogumelos. Nem sequer a de parecer completamente alucinado mesmo sem cogumelos, isto é, maluquinho da cabeça. É mesmo a questão de ser sanguinário. Isto se calhar não me incomodava tanto se os outros vikings usassem maquilhagem semelhante, mas não usam (excepto os sacerdotes, mas Floki não é um sacerdote), e não percebo o que é que os criadores da série queriam com aquilo. Conquistar uma audiência gótica? A esta gótica conseguiram foi criar repulsa.
Por alguma razão que me ultrapassa, Floki tornou-se imediatamente um favorito do público (do público que se calhar nunca viu e delirou com o artigo original). Eu não gostei de ver imagética gótica misturada com violência (nada existe menos gótico do que a violência) e nada me tira daqui.
Considerações pessoais à parte, também neste personagem a bota não bate com a perdigota. Floki é apresentado como um pagão fanático e anti-cristão, o que soa estranhíssimo. Nunca foram os pagãos que tiveram problemas com os cristãos. Os pagãos adoravam vários deuses e conseguiam sempre admitir mais um. (Os Romanos, por exemplo, tinham uma estátua ao Deus Desconhecido.) Foram sempre os cristão a ter problemas com o panteão de deuses pagãos e a tentar impor o Único. Acredito que com o passar do tempo, e ao conhecer o fanatismo cristão, os pagãos tenham ganhado ódio aos cristãos (e com razão). Mas aqui bate o ponto. No início da série Floki não tinha tido contacto suficiente com a cultura cristã (e muito menos com o seu pior) para a odiar como a odeia. Este ódio fanático é inexplicável (o que é que ele tem contra o deus dos cristãos, afinal?), anacrónico (antes do tempo) e inversamente reflectido (são os cristãos que querem converter todos os pagãos, não ao contrário). O ódio religioso de Floki aparece sobretudo como motivo de conflito para a série, mas peca pela inexactidão histórica. Afinal a série era histórica ou nem por isso?


Lagertha
Quem é que não gosta de Lagertha? Lagertha é a boa mãe, a boa esposa, a boa soberana, a boa guerreira, a boa viking, e, não bastando, ainda é boa como o milho. Só é pena ser hipócrita.
Nota-se, principalmente na primeira temporada, uma tentativa dos criadores da série de tornarem mais simpática ao público moderno esta cultura bárbara de gente que matava, pilhava e violava. Lagertha é um grande exemplo desta tentativa, a personagem feminina forte,  independente e “sexualmente liberada” que forçosamente agrada às espectadoras do séc. XXI. Infelizmente, ao fazê-lo, os criadores criaram-lhe uma inevitável incoerência. Durante um saque, Lagertha chega a matar um dos seus próprios companheiros quando o apanha a tentar violar uma mulher saxã. O que só lhe fica bem. Mas qual é a verosimilhança de que Lagertha se importasse, se de facto participasse frequentemente em pilhagens e ataques? Ou Lagertha só se importa quando acontece à frente do seu nariz? Muito improvável, tudo isto. Ou Lagertha é hipócrita ou fecha os olhos quando não lhe convém ver. Mesmo admitindo que haveria entre os vikings mulheres guerreiras (facto não consensual na comunidade histórica) estas deveriam ser tão impiedosas como os homens (ou tal não seria a discussão no acampamento viking!). A existirem, estas mulheres deveriam estar habituadas a ver as vítimas como um “outro” não-humano, como presa (um pouco como se faz militarmente em que se usam os termos “alvo” e “danos colaterais” para não falar de pessoas). A posição de Lagertha contra a violação de outras mulheres, que a torna apelativa ao público, é ao mesmo tempo o que a torna hipócrita. A série bem quer, mas não consegue fazer milagres. E novamente não bate a bota com a perdigota.


Ragnar
Ragnar sofre das mesmas incoerências que apontei a Lagertha. Na tentativa de estabelecer um mínimo de empatia entre o protagonista e a audiência, Ragnar nunca é visto a cometer os actos piores a que os vikings se entregam. Quer sejam pilhagens, violações, torturas aos saxões indefesos, Ragnar mantém-se sempre à parte e bem longe dos pormenores mais sádicos e mesquinhos. No mundo real, os próprios companheiros o acusariam de se achar superior, mas na série tal afastamento nunca é colocado em questão. Por vezes, até parece bondade a mais. Lembro-me da cena em que se vê o bonzinho Ragnar a tentar esconder uma criancinha do barbarismo dos seus companheiros. Aqui, Ragnar está infectado da mesma hipocrisia que cega Lagertha. Enquanto salva a criancinha, não se preocupa que muito perto os pais da criancinha estão a ser chacinados e não se sabe se haverá mais alguém que tome conta dela num mundo em que ser órfão era dos piores destinos possíveis. Mas a cena funciona e até pensamos “que homem tão bom, tão ternurento!”. Só é pena ser um carniceiro.
Se durante os saques Ragnar é higienizado para consumo moderno, entre vikings não há qualquer escrúpulo em mostrá-lo como é de facto.
Qualquer vestígio de simpatia que o personagem me tivesse conseguido conquistar foi-se com o enredo envolvendo o seu inimigo Jarl Borg. Nem sequer foi a execução pornograficamente brutal, foi a falta de palavra. Ragnar convida o seu inimigo a sua casa prometendo-lhe tréguas. De boa fé, Borg aceita. Na calada da noite, Ragnar vai buscá-lo à cama, na presença da sua mulher grávida, e prende-o até ao dia em que decide executá-lo. Ora, Borg não é nenhum santinho, mas a má-fé e a desonestidade de assassinar um convidado debaixo do tecto do anfitrião não me podia cair pior. Pode ser a minha matriz ocidental judaico-cristã e pós-Romântica, mas tudo isto me pareceu desonestidade, cobardia e estupidez.
Mesmo esquecendo a minha cultura e tentando compreender a deles, continua a não fazer sentido. Se os golpes baixos eram tão comuns e tão socialmente aceites, Jarl Borg teria sabido disto e não teria aceitado o convite-armadilha de tão boa-fé. O facto de que aceitou (não sendo um anjinho nem um idiota) prova que este tipo de armadilhas não era comum. Ou era, e foi mostrado como se não fosse, o que em termos narrativos ainda é pior. (Novamente, a bota não bate com a perdigota.)
Mas voltando a Ragnar. Ao fazer isto, o personagem mostra não ter palavra (mau, muito mau!), e mostra cobardia (péssimo num líder viking, e ainda por cima injusto para o personagem, porque Ragnar consegue o seu título de Jarl precisamente num duelo corpo-a-corpo com o Jarl da altura e basta olhar para o físico dele para termos a certeza de que também dava cabo do Borg da mesma maneira), e mostra estupidez (vamos admitir que Ragnar quer ser maquiavélico: melhor do que assassinar um inimigo dentro de casa é mandá-lo matar na viagem, sem dar aspecto de mau anfitrião e de homem sem palavra, e sem sujar as mãos). Mas acho que era mesmo isto que os criadores da série queriam: mãos sujas, sangue a jorros, choque e porno-tortura. Não importa que o personagem pareça incoerente, mentiroso, desleal, cobarde e não muito inteligente. Na minha opinião, Ragnar até não merecia isto. Carniceiro sim, mas tudo o resto não.
Outra das falhas da série, na minha perspectiva, foi nunca terem explicado para que é que os vikings querem o ouro roubado. Ragnar diz, logo no primeiro episódio, que não adianta continuar a pilhar as terras a leste porque “são tão pobres como nós”. É esta a motivação que o impele a dirigir-se para oeste, de onde se ouve falar de tesouros fabulosos. Numa altura em que o dinheiro é praticamente inexistente, isto leva-nos a pensar que o saque tem de ser comerciado com alguém. Infelizmente, nunca vemos este comércio. Na minha opinião, seria mais interessante e educativo do que mais uma cena de porno-tortura.

Concluindo, esta é uma série que vejo por interesse mórbido, e para poder vir para aqui dizer mal. Não há uma única personagem com quem me consiga identificar minimamente (até o Bjorn, enquanto puto, se mostrava tão sanguinário como o pai) e por mim podiam bem morrer todos que o mundo até ficava melhor. Como não tenho por quem torcer, estou a torcer contra todos. Se calhar também sou uma grande sádica.

Uma última nota para os penteados: com aquelas rastas e aquelas tranças, a maioria dos personagens parece preparado para ir ao Festival Sudoeste. Excepto o Floki, que está sempre pronto para o Entremuralhas. Visualmente muito giro; historiamente delirante.

Mas falando de música, a música é boa. Adoro a canção “If I had a heart” dos Fever Ray e os temas folk dos Wardruna. Aconselho toda a gente a dar-lhes um ouvidela mesmo que não vejam a série.