(crítica ao volume final da trilogia “The Broken Empire”)
CONTÉM ALGUNS SPOILERS
Fiz batota. Não é meu costume, mas em vez de começar pelo primeiro livro da trilogia “The Broken Empire”, preferi ignorar “Prince of Thorns” e “King of Thorns” e passar logo ao último capítulo, “Emperor of Thorns”. Já não é a primeira vez que leio uma série fora de ordem e não é por isso que não fico fã. Neste caso, não me arrependo nada de ter lido primeiro o último livro e não vou ler os anteriores.
Fiquei curiosa em relação ao personagem principal, Jorg, que em criança assistiu impotentemente ao assassinato da mãe e do irmão enquanto estava preso numa árvore de espinhos. A experiência deixou-lhe cicatrizes no corpo e no espírito. Compreensivelmente, Jorg irá procurar vingança.
Protagonista irredimível
Foi esta a sinopse que me interessou. Confesso que esperava um daqueles personagens de que eu gosto, um personagem profundo, melancólico e atormentado. Saiu-me um sociopata irredimível. Jorg não é atormentado. Jorg atormenta. Sofrer na infância não é sinónimo nem desculpa para o egoísmo, a falta de empatia, a falta de remorsos. Jorg vive na culpa de não ter podido fazer nada para salvar o irmão e a mãe, mas até essa culpa é relativa a si próprio: culpa-se porque ele falhou, porque ele não conseguiu cumprir o seu dever, porque ele era fraco. Tudo gira, narcisisticamente, em torno dele, até a culpa. Como qualquer sociopata, o que Jorg não suporta é o seu falhanço (real ou percepcionado, pois naquela idade não poderia fazer grande coisa). Em livros anteriores, o próprio pai de Jorg o tenta matar. Sem conhecer a criatura, isto faz-nos ter pena dele. Conhecendo, faz-nos pensar se o pai dele não terá razão. Mas como são acontecimentos de livros anteriores não posso opinar muito.
Jorg, como protagonista, é difícil de suportar. Pior ainda porque a narração é feita na primeira pessoa e estamos sempre na cabeça dele. E tudo é egoísta e retorcido na cabeça dele. Acabei o livro a precisar de uma desintoxicação. Este é o tipo de personagem que testa o limite do leitor, principalmente em primeira pessoa em que temos a sensação de que o personagem está a falar directamente connosco. É um risco escrever uma história em primeira pessoa em que o narrador é moralmente mau e nada empático. Muitos leitores deverão desistir logo nas primeiras páginas.
A mim ninguém pode acusar de não estar habituada a personagens menos bonzinhos. Pelo contrário. Um dos meus preferidos, Lestat, é um assassino. Mas Lestat é atormentado por remorsos e questões existenciais. Lestat é fascinante. Jorg não é. Desisti completamente do personagem quando percebi que perante qualquer dificuldade a primeira coisa que lhe passa pela cabeça é “quantas pessoas vou ter de sacrificar para conseguir o que quero?”. Numa pessoa normal, inclusive num líder, esta devia ser a última alternativa. Jorg nem pensa em alternativas, vai logo pelo caminho mais fácil que é atirar alguém para debaixo do comboio. Mesmo entre os que lhe são leais. Com o tempo, Jorg podia muito bem ter o destino de Júlio César, “também tu meu filho Brutus?” É o destino dos tiranos. A facada vem de perto, não de longe.
Não há qualquer traço redimível neste personagem. O ingénuo leitor que acredite mesmo que por vezes ele se sacrifica, pense melhor. Jorg faz tudo o que faz por si próprio, nunca pelos outros. Não há sacrifício nenhum; há egoísmo, tirania e irresponsabilidade. Só não me alargo mais sobre isto porque não quero revelar o fim.
Por falar em fim, a narração em primeira pessoa leva-nos enganosamente a acreditar que o narrador sobrevive à história (para no-la contar). Em literatura, não é necessário que assim seja. A meio do livro comecei a torcer contra Jorg e a desejar que as últimas palavras da história fossem: “Azar, morri.” (O que até era frase que podia sair dos lábios dele, acreditem ou não.) Digamos que não fiquei satisfeita nem insatisfeita. Jorg nunca se redime. Fiquei satisfeita porque o livro acabou.
Resumindo e concluindo, Jorg é insuportável. O autor bem tenta dar-lhe uma imagem de humanidade nas raras vezes em que introspectivamente o personagem pondera as suas mágoas e motivações, mas Jorg é daqueles que quanto mais fala mais se enterra. As intenções são sempre egoístas, quando não são puramente malvadas e tirânicas. Algumas motivações até são aceitáveis, mas nem sempre consistentes. As tiradas filosóficas são interessantes, mas quase todas discutíveis. Não consigo encontrar nada que me faça empatizar com o personagem e foi um alívio ver-me livre dele.
Porno-tortura em terras de Espanha
A história divide-se, estruturalmente, em dois momentos narrativos: a acção no presente e a acção no passado.
No presente, Jorg dirige-se ao congresso de líderes onde pretende fazer-se eleger imperador. Pelo caminho vai matando culpados e inocentes a torto e a direito. Sacrificar inocentes para atingir os seus objectivos mais depressa é algo que nem o faz pestanejar. Atrás dele, segue uma figura enigmática que nos é apresentada como Rei dos Mortos (Death King), uma entidade poderosa e maléfica que comanda um exército de zombies. Só no fim do livro percebemos a finalidade deste Rei dos Mortos, por isso não vou falar dele por agora.
Na acção no passado, Jorg conta-nos da viagem que empreendeu por várias partes do império, sempre guiado por Fexler, o fantasma/holograma. Fexler e as máquinas são o enredo mais interessante, mas antes de falar deles uma palavrinha para a porno-tortura neste livro.
“Emperor of Thorns” é Grim Fantasy. O leitor vai encontrar morte e tortura gratuita e explícita quase a cada página. Nenhuma parte de tortura é tão descarada como o ataque, algures em terras de Espanha, por um bando de salteadores que não deviam andar por ali.
Mas deixem-me explicar um pouco do espaço que rodeia a história. A saga passa-se no “nosso” futuro, num mundo um milénio (milénios?) posterior ao nosso depois de uma guerra nuclear. O planeta foi devastado. A sociedade regrediu e medievalizou-se. Da tecnologia do passado restam algumas máquinas (computadores, ou algo mais avançado) ainda a funcionar, mas já ninguém sabe operá-las. A guerra nuclear transformou partes do mundo em desertos radioactivos. Porque é que a Península Ibérica é um destes desertos, aparentemente mais bombardeados do que os outros, quando centros de decisão como Viena não parecem tão afectados, não me perguntem.
É na Península Ibérica que acontece uma das cenas de tortura mais explícitas e brutais. E possivelmente gratuita. Um bando de malfeitores vive à beira de um deserto radioactivo. É estranho, porque ninguém lá passa e mal se consegue subsistir naquele sítio. É este bando que ataca Jorg e os seus companheiros e que revela grande prazer em torturas físicas e prolongadas. Isto funcionaria se soubéssemos que estes malfeitores tinham seguido Jorg e companheiros desde a cidade mais próxima no intuito de os roubar. Mas isto não nos é dito. O que nos é dito é que o bando tem acampamento montado no meio de nenhures, como se ali estivessem de propósito à espera que algum incauto lhes caísse nas garras para o torturar. Mais estranho ainda é que aparentemente estes malfeitores até eram conhecidos na região. Ora, a guia de Jorg, que devia ser uma perita no local, nunca lhe fala deles. É muito conveniente que eles apareçam ali, do nada, só para termos uma cena de tortura (com esfolamento, arrancar de olhos, ferros em brasa) completamente dispensável ao enredo. Para quem não sabe o que é Grim Fantasy: é isto. Sempre que há desculpa, e mesmo quando não há, as coisas ficam brutais. Não é para todos.
[Por curiosidade, acrescento que neste mundo pós-apocalíptico o nosso Portugalzinho está lá. A sul do Tejo chama-se Lisboa, a norte é Port Gull. Não sei o que o autor pensa de nós e se nos conhece, mas achei giro. Está aqui o mapa.]
Os exterminadores implacáveis
O enredo mais interessante do livro, e possivelmente de toda a saga, é o que tem a ver com as máquinas. Antes do conflito nuclear, a humanidade estava tão avançada que conseguia digitalizar a consciência de um indivíduo e preservá-la para sempre. A estas “consciências digitalizadas” que aparecem em forma de “holograma”, os novos habitantes da Terra, devido ao retrocesso, chamam fantasmas. Um destes “fantasmas”, Fexler, que parece ter tido grandes responsabilidades na destruição do mundo (pelo menos foi o que eu percebi), é a verdadeira causa do sucesso de Jorg. Não li os livros anteriores mas Jorg utilizou tecnologia dos antigos (chamados Builders), bombas nucleares ou o que delas resta que ainda funciona, para conquistar o poder. Graças a Fexler, que o apoia.
Os Builders são uma versão mais avançada da nossa civilização. Sabemo-lo porque esta civilização criou “uma roda que faz os pensamentos tornarem-se realidade”. Sabemos também que fomos nós que eventualmente destruímos o mundo. Não percebi se a tal “roda” teve a ver com isso. No tempo de Jorg, um milénio (milénios?) depois da destruição, esta roda está activa e está a fazer com que as pessoas criem magia. A magia do Rei dos Mortos, por exemplo, que faz levantar os zombies, só é possível porque a roda existe.
Ora, os Builders, a quem vou chamar máquinas por uma questão de simplicidade, não estão satisfeitos com esta nova civilização. Uma facção das máquinas quer reconstruir a sociedade como era antes da destruição; outra facção quer pura e simplesmente destruir a humanidade de vez (conhecendo Jorg, não censuro esta facção). As bombas estão prontas e nos seus lugares. A qualquer momento podem ser accionadas. Basta que as facções se entendam.
É esta a grande e verdadeira ameaça no mundo de Jorg. E é também o enredo mais interessante e filosófico da saga. Preferia que o autor tivesse explorado mais estes resquícios dos seres humanos extintos e nos explicasse melhor o que é a roda e com que finalidade foi originalmente criada/construída. Não foi para fazer magia, de certeza, porque os Builders têm horror ao mundo mágico que entretanto se desenvolveu.
Quando comecei a ler não sabia que o livro tinha esta componente de ficção científica e assim que me apercebi dela comecei logo a torcer o nariz. Pareço um disco riscado, mas quantas vezes é que já disse aqui que misturar ficção científica e sobrenatural não funciona? Na maior parte do livro a ficção científica não causa problemas, até que chegamos ao fim.
Afinal era psicológico
Depois de toda esta cavalgada épica (e mais épica ainda para quem leu os três livros), o fim desaponta. O confronto com o Rei dos Mortos é no mínimo anticlimático e no máximo ridículo. Não vou revelar mais do que isto, mas o Rei dos Mortos é uma criança de sete anos. Depois de morta. É este o grande estratega militar que comanda o exército de zombies. Ora, eu acho que este é um pormenorzinho que exige uma grande explicação. A explicação fornecida não convence.
No fim, Jorg nunca passou de uma marioneta nas mãos de Fexler. Tudo o que é preciso para resolver isto é girar uma roda imaginária. O quê?!, perguntarão. Eu também perguntei. Não era preciso nada disto para girar uma roda imaginária. Podiam tê-la girado logo na primeira ou segunda página do primeiro livro e lá se ia a história toda por água abaixo. Por isso, o fim é mau e ilógico.
A magia pode ser inventada mas as máquinas e as bombas são bem reais. Esta roda devia ser uma criação física e tangível, a ser desligada num interruptor e não em “pensamentos”.
Aliás, e para começar, por que raio é que as máquinas se importam com a existência da magia? Estão todos mortos, não passam de hologramas, que lhes importa o que se passa no mundo dos vivos? Que problemas lhes causam a magia? A meu ver, nenhum.
E por que raio é que Fexler precisa que Jorg seja imperador para girar a roda? Qualquer pessoa serve. Esta parte não percebi. Não estou a ironizar. Acabei o livro e não percebi o fim. Depois de conjecturar, lembrei-me de um parágrafo ou dois lá para o fim em que o autor nos quer convencer de que os súbditos do império desejam um imperador mais do que tudo, que seria este poder da vontade e dos pensamentos dos súbditos que permitiriam ao imperador, e a ele apenas, girar a roda. Ora, o problema é que durante todo o livro o autor nos convence do contrário: o povo raramente aparece na história e quando aparece é para lamentar os problemas que a nobreza lhes causa. Até o Grande Comandante da Guarda olha com menosprezo os nobres que visitam Vyene. Tudo nos leva a crer que aquela pobre gente sob o jugo de vários tiranos só quer que os deixem em paz nas suas vidinhas e que a existência de um imperador lhes é indiferente. Logo, o motivo por que Jorg teria de ser imperador não pega, ou não foi bem explicado.
O autor
Devem ter reparado que aquilo que mais me interessou no livro não foi o protagonista e as suas aventuras mas as máquinas, os resquícios da nossa civilização. O resto foi uma história que me deixou frustrada, vazia, intoxicada, mal disposta com tanta violência gratuita.
Atrever-me-ia a ler outro livro de Mark Lawrence? Depende. A escrita do autor é dinâmica e vívida, as descrições são excelentes, a estrutura narrativa é interessante. Por outro lado, não gostei de certos truques à Agatha Christie, em que se passam coisas off-screen que o leitor não tem maneira de saber só para ser surpreendido com uma reviravolta. Assim como quando Poirot reúne todos os suspeitos numa sala e começa a debitar factos que os leitores não conhecem para identificar quem é o assassino. O pobre leitor jamais lá chegaria porque não sabe tudo o que Poirot sabe. Não gosto, não leio Agatha Christie por causa disto, e também não gostei disto aqui (a bomba no deserto é o exemplo mais grave). Sou daquelas leitoras que gostam de saber sempre tudo o que está a acontecer para viver a história como o protagonista a vive.
As personagens secundárias não aparecem muito desenvolvidas, especialmente as mulheres próximas ao protagonista, mas quanto a isto não vou opinar porque é possível que tenham sido exploradas nos livros anteriores.
O que menos gostei na escrita de Mark Lawrence foi o que ele não escreveu. Fiquei com a sensação de que foi um daqueles desgraçados a quem martelaram na cabeça com o mito “show not tell” a um ponto em que não conta tudo o que é preciso. (Infelizmente, o mesmo nota-se bastante nos autores mais recentes que foram formatados neste mito odioso de que o autor não tem de contar nada, que basta mostrar para que o leitor perceba tudo. Não é verdade.) O maior problema disto, como referi, foi o fim. Todo o enredo assenta em Fexler e nas máquinas. Quem são ou foram, exactamente, estas pessoas/resquícios? O que são as facções e como se formaram? Que responsabilidades tiveram na destruição do mundo? O que é a roda? O livro não só nunca dá resposta a estas questões como nem sequer as coloca. O fim quase leva a pensar que o autor não fazia ideia de como acabar a saga e inventou qualquer coisa às três pancadas, ou, pior um pouco, julgou que estas questões não interessavam nada e não mereciam ser resolvidas. Isto, ou Mark Lawrence está a guardá-las para um novo livro no mesmo universo.
Se eu lia esse livro ou outro livro do mesmo autor? Depende. Com protagonistas por quem torcer, com maior aprofundamento de personagens e motivações, sem porno-tortura, talvez lhe desse outra oportunidade. Ia depender muito das críticas que lesse antes. Por si só, “Emperor of Thorns” não me convenceu. Não me conseguiu envolver, não me entreteve. Aconselho este livro a quem gosta da brutalidade de uma "Guerra dos Tronos". Aos outros, aconselho que procurem longe daqui.