domingo, 30 de setembro de 2012

Conto cruel do terror quotidiano

É uma rua comprida e muito inclinada. Todos os dias a atravesso. Os carros têm de a descer devagar, de tão inclinada que é. Naquele dia, esta semana, eu ia atravessar quando olhei para cima e vinha um carro a descer, ainda ao longe, mas mais depressa do que é costume, pelo que preferi esperar que passasse. A rua é longa, ainda demorou uns segundos, e fiquei no passeio à espera. Olhei para baixo. Estavam dois pombos a uns metros, a depenicar no passeio. Um pombo e uma pomba. Sei por causa da coloração das penas. E o carro a descer, em longos, longos segundos. Tempo para tudo. O pombo, parvo do pombo, começa a andar para o meio da rua sei lá porquê, como se fosse Deus quem lhe tivesse dito: olha, vais fazer um teste, avança. A pomba ficou no passeio, a depenicar. Eu fiquei a ver. Tempo para tudo.
A besta do carro também viu o pombo. Não podia não ver o pombo. E continuou por ali abaixo, como se nada fosse. Nem sequer abrandou. Não vinha nenhum carro atrás, nem nenhum carro à frente. Nenhuma razão para não abrandar. A besta estava com pressa. Não tive tempo de atravessar e obrigar a besta a parar, porque já ia abaixo do lugar onde eu estava. A besta passou por cima do pombo, puft!, um monte de carne e penas, o que vivia já não vive, matou e andou, e nem sequer abrandou. Nem sequer viu como eu fiquei a olhar, petrificada de raiva, não apenas raiva, mas Ira, a pensar que um de nós não é humano. Ou eu não sou humana ou a besta não é humana. Não podemos ser ambos humanos. É impossível.
Olhei para a pomba. Tinha ficado petrificada também, olhando, de olhos estupefactos, o cadáver. Naquele momento pareceu-me ver na pomba um momento de lucidez que sobrevém aos animais de maneira diferente do que acontece às pessoas, pois não é verbalizável, mas se fosse seria assim: o meu companheiro desfeito no asfalto!
Estava atrasada mas não me consegui mexer. Demorei a recompor-me do que tinha visto. Porque eu não sou da mesma espécie da besta no carro, que nem abrandou. Eu petrifiquei. Não sei quanto tempo, petrifiquei. Os meus olhos na pomba, a uns metros, aterrorizada. Só quando eu saí do meu transe, e me mexi, e dei um passo, ela abriu as asas e levantou voo. Sei lá se naquele momento consciente de que o companheiro não ia atrás dela. Possivelmente não consciente, o que é uma bênção dos seres irracionais.
Quando regressei, à noite, já não sobrava nada da carne e das penas. Havia só uma mancha amarela. Ninguém diria o que aquilo tinha sido.
As bestas que passaram a seguir também não se importaram de ficar com cadáver nos pneus. Passaram, sem abrandar, e continuaram em frente, todas sujas de morte.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Black Dianthus "Bright Side of a Black Hole"



Os que já sabem do que a casa gasta, que muitas vezes aqui critico negativamente livros e filmes (e mais coisas), já também devem saber que quando aqui falo de música é sempre, ou quase sempre, para elogiar. Eis o caso.
Black Dianthus é um projecto português, que me foi dado a conhecer através da Abismo Humano, e que não merece ficar na obscuridade.
Foi uma surpresa deparar-me com um trabalho a este nível de qualidade e inovação no panorama musical alternativo português. As duas primeiras faixas do álbum, devido aos arranjos com vozes guturais (e o próprio lettering do logotipo da banda), podem fazer com que muitas pessoas que não apreciam especialmente o metal se sintam desencorajadas e abandonem a audição. A estas eu incentivo a não desistir perante os dois primeiros temas, "Elysium" e "Over", mas antes a deixar-se deslumbrar pelo épico "Battlefield" (para ouvir alto e forte!) e a de seguida se permitirem arrebatar pelo assombroso e igualmente épico "Strange Flowers". Só para começar. Depois há mais, e mais subtil.
Também eu preferiria uma ainda maior descolagem de um certo "teor metálico" e a passagem completa cá para o meu lado (oh my Goth!) mas este é daqueles casos em que se prova que beber em várias fontes de inspiração dá sempre os melhores resultados.
Aconselho vivamente.

O álbum pode ser ouvido na íntegra e permite download gratuito aqui:

http://abismohumano.bandcamp.com/album/bright-side-of-a-black-hole

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"O Estranho Caso de Angélica" (2010)



Pela primeira vez na minha vida vi e gostei de um filme de Manoel de Oliveira!
Quanto a isto tenho pouca coisa a dizer, excepto explicar porquê. Gosto dos outros filmes do realizador? Não. E neste, a cinematografia é semelhante? É. Pouca acção, câmara parada? Com certeza. Diálogos artificiais? Do mais artificial que pode haver. Qual é a diferença, então?
Como sempre suspeitei, e tenho aqui a prova, o que realmente interessa, mais ainda do que a história, e não sei mesmo se mais do que o estilo, é o tema.
A história não é muito original. A abordagem é aquela que caracteriza o realizador. O tema é gótico. Um homem apaixona-se por um fantasma, um fantasma apaixona-se por um homem, e no fim... Não vou contar o fim. Gostei do fim. Gostei do filme todo. Essa é que é a grande surpresa.
Confesso que me espantou, do realizador, o tipo de filme. E que me espantou aquela cena sem cor em que o morcego (?) sobrevoa a cama do adormecido. Muito vampiresco. Muito "Nosferatu". A última coisa que esperaria de Manoel de Oliveira. E passado, ao que parece, lá para as bandas do Douro. Mas não interessa, porque não se dá por isso. O filme é maior do que o espaço, porque o tema é maior do que a vida.
E eis algo que jamais julguei afirmar: vi um filme de Manoel de Oliveira e era um filme de suspense! Quem não acreditar que veja por si.
Não sei o que diriam em Cannes mas eu, que não sendo uma perita credenciada em cinema o sou definitivamente no tema, dou:

12 em 20

Já que se aborda o assunto Manoel de Oliveira, confesso que estou muito curiosa quanto ao filme que este realizador já fez e só permite que seja exibido após a sua morte. Não sendo possível, por vontade do próprio, vê-lo antes, não o espero ver cedo a não ser que o senhor altere a sua intenção, mas não posso deixar de especular sobre o que se trata. Deveras intrigante.

domingo, 2 de setembro de 2012

“Astrologia Kármica”, por Sussuca Ferreira





Já há muito tempo que não vinha aqui com um livro mas este não pode escapar. “Astrologia Kármica, A Viagem da Pedra ao Diamante”, pela astróloga Sussuca Ferreira, edição Pergaminho, 2008, trata, como o próprio nome indica, de astrologia kármica.
Primeiro aviso, a astrologia kármica é uma matéria controversa até mesmo entre os astrólogos. De forma muito simples, a astrologia kármica tenta determinar, através da análise do mapa astral, nomeadamente pela posição do Nódulo Lunar Norte (ou Nó Lunar Norte, ou Cabeça de Dragão) nos signos e nas casas, nada mais nada menos do que o karma e as vidas passadas.
Leram perfeitamente bem. As vidas passadas! Quem não acredita em vidas passadas não pode compreender a importância do que vou dizer mas poderá ficar a saber que, para alguns de nós, conhecer as vidas passadas é como encontrar o Santo Graal.
Logo a primeira crítica que se pode apontar a esta forma de determinar o karma é que o karma é geracional. Isto é, por exemplo, todas as pessoas nascidas entre 16 de Outubro de 1970 e 5 de Maio de 1972 têm o Nó Lunar Norte em Aquário e partilham o mesmo karma. Numa segunda análise, porém, até faz sentido. Pois esta geração vai definitivamente estar sujeita a acontecimentos e situações e adversidades e oportunidades que nenhuma outra vai experimentar. Noutras palavras, pode ser a altura exacta para este grupo de pessoas reencarnarem de modo a expiarem esse karma. (Exactamente assim: é ao lote.)
Para quem leva isto a sério esta não é questão para brincadeiras.
Neste “lote”, contudo, porque não há dois indivíduos iguais, existem diferenças, vestígios de um karma que só pode ser dessa pessoa e de mais ninguém. Alguns astrólogos, e eu concordo, apontam, por exemplo, a importância da análise de Lilith no karma individual. Eu, pessoalmente, até chamo a Lilith “a maldição”. Todos temos uma.
Voltando ao livro, que trata precisamente do karma e vidas passadas, não é um livro que eu aconselhe a toda a gente, e muito menos a quem percebe pouco ou nada de astrologia. Até se pode ler, nada o proíbe, mas há muita coisa que um “leigo” não vai entender porque a linguagem não é para principiantes. Seria como tentar entender a equação da relatividade de Einstein sem saber a tabuada. Por outro lado, poderá despertar a curiosidade para ir estudar o básico de modo a compreender o complexo.
Todavia, é um livro para iniciados. Para estes, e especialmente aos que se questionam quanto ao karma e vidas passadas, falarei agora. Sussuca Ferreira compilou uma série de teorias interessantíssimas, muito mais do que o simples “Nó Lunar Norte em Capricórnio significa que é destino da pessoa dedicar-se à carreira profissional” que costumamos ler por aí. São teorias que nos fazem reflectir, embora por vezes considere que possam ser demasiado fantasiosas. Seja como for, é a melhor interpretação de astrologia kármica que já li até hoje e aconselho vivamente.





Não resisto sem deixar aqui algumas notas deste livro sobre o meu próprio karma, a que se chama o Karma da Maturidade. Devo dizer que não me surpreendeu. E àqueles que acompanham o espírito que preside este blog não deve também surpreender. Pelo contrário, até explica muita coisa.
“Este ser vivia a verdade da alma e, por este motivo, nunca conseguiu ser vencido pela personalidade humana. Viveu sempre com dificuldade em aceitar as manobras emocionais dos adultos que, geralmente, falavam de uma maneira e pensavam de outra.
O nosso nativo, que nunca se esquece de nada, lembra-se muito bem do seu passado. Assim, ainda hoje não consegue lidar com a hipocrisia, a mentira e a falsidade.
(…)
Este nativo não cresceu realmente. No passado, sempre que lhe exigiam qualquer coisa (…) ele gerava, inconscientemente, a sua própria morte. (…)
O nosso nativo tinha tanto medo de perder a sua ligação com a sua alma que preferia partir. Actualmente designa-se por Karma do Suicida, pois sabe exactamente como aliviar uma pessoa do seu sofrimento. (…)
Este karma tem a obrigação de ficar vivo (…) pois é o único karma que não tem tempo para desencarnar, morrendo quando fica desmotivado.
Desta maneira, é fundamental que tenha sempre ideais, sonhos e planos para o seu futuro, dado que é uma pessoa que necessita de motivação interior para viver.
(…)
Estes nativos não suportavam a vida quando era vista pelo seu lado feio, e então preferiam partir.”


As questões existenciais que se colocam são imensas e profundas.
Em suma, este karma encarna para aprender a amar a vida. Está-se aqui a partir do pressuposto de que o ser, por ter morrido em criança ou por ter optado pelo suicídio, não teve tempo de aprender a amar a vida.
Como se o universo ache que o ser, vivendo muitos anos, acabe por amar a vida. Que o ser tem obrigação de amar a vida, porque o universo acha que a vida é muito bonita e que todas as criaturas devem concordar com o universo.
E se o ser, por mil anos que viva, nunca amar a vida?
E se o ser decidir não fazer parte da pantomima criada pelo universo, por não gostar do enredo?
Continuo a fazer a pergunta que sempre fiz desde que me conheço: quem é que pode possivelmente julgar que todas as criaturas têm a obrigação de estar contentes e felizes por estar vivas?
É uma pergunta retórica. Sei a resposta mas não vou responder. Já arranjei sarilhos suficientes com o universo para uma miríade de vidas.