Aqueles que já me conhecem deste blog já saberão que não vejo o gótico apenas como um movimento musical urbano-depressivo (era assim que se chamava na altura) originado no final da década de 70 (Joy Division -- banda a que, se bem que por linhas muito tortas, se deve o rótulo -- e afins).
Na minha perspectiva, o gótico sempre existiu, no mínimo como representação artística de uma forma de sentir (e, porque não, de espiritualizar?) temas relacionados com a dor, o sofrimento, a beleza, e, claro está, e acima de tudo, a morte. No gótico, a morte é o grande tema verdadeiramente omnipresente. O gótico serve também como forma de sublimação, através da arte. A música nada mais é do que uma das expressões dessa arte.
A leitura da introdução do livro de que falarei hoje levou-me a considerações sobre o que nós consideramos literatura gótica. Ficarão, tenho a certeza, tão surpreendidos quanto eu ao perceber que a princípio os escritores góticos também recusavam o rótulo "gótico".
Onde é que nós já ouvimos isto, direis vós?
É muito mais antigo do que pensamos, respondo eu.
Como o nome indica, "Gothic Short Stories", da editora Wordsworth Classics, é uma compilação de pequenas histórias seleccionadas pelo editor desde os primórdios deste estilo na literatura. Não vou falar delas, mas da fantástica introdução que projecta uma luz excepcional sobre o género gótico, na literatura e não só, de que vou traduzir algumas partes chave:
Começando pelo verso:
"No finais do século XVIII alguns autores começaram a escrever histórias "góticas" como maneira de reaproximar a literatura do irracional, do sobrenatural e do bizarro, o que tinha sido negligenciado na 'Idade da Razão'."
[Tradução minha]
Porque é que a literatura chamada gótica está cheia de fantasmas, terror, temas sinistros? Confrontado com o terror inspirado por algo de misterioso e terrível e fora do seu controlo -- A Morte -- o ser humano sublima esse medo através desta forma de arte. (Saliento _
esta_ porque há outras formas de arte e outras formas de sublimação que não são arte.)
Na literatura gótica, tal como nos filmes de terror da actualidade, o leitor/espectador tem a sensação de desafiar o terror/a morte, olhando-os de frente.
(Isto é tão primitivo quanto os ritos de iniciação: por exemplo, caçar um leão. Daí eu ter insistido na existência de outras formas de expressão desta ansiedade comum ao ser humano.)
O medo da morte e o sofrimento causado pela morte sempre se exprimiu ao longo dos séculos, na arte, de forma aterradora. Pensem, por exemplo, nas gárgulas. Ou nos vitrais ou murais representando o inferno. A sociedade de hoje já não acredita no inferno, ou se acredita é num bem mais levezinho, no entanto consome filmes de terror que produzem o mesmo efeito que as gárgulas deveriam produzir no homem medieval.
Mas hoje o tema é literatura e existe bastante que pensar nesta introdução que citei e que aparentemente não tem nada a ver com o movimento musical gótico... Ou será que tem? Eu acho que sim.
A invenção da literatura gótica é geralmente atribuída a Horace Walpole e datada de 1764. Foi na altura um meio de reconquistar territórios imaginativos e emocionais que tinham sido largamente rendidos à cultura racional e iluminista do século XVIII. Neste conto curto, "O Castelo de Otranto", Walpole levou a narrativa de volta ao período "Gótico" da Idade Média -- a Idade das Trevas, como aqueles no tempo do Iluminismo a consideravam -- porque lhe parecia mais apropriado incorporar incidentes sobrenaturais numa ficção passada num período em que a crença no sobrenatural era generalizada. Tal crença era frequentemente associada com a superstição católica, e onde esta existia, na Grã-Bretanha de meados do século XVIII, era frequentemente vista como o produto aberrante de mentes incultas: criados, camponeses ou mulheres. (...) Só na segunda edição de "O Castelo de Otranto" é que Walpole admitiu a sua autoria da história; a primeira edição manteve o seu "goticismo" a uma distância segura ao afirmar que era uma tradução de um manuscrito italiano medieval.
Vemos assim que, desde o seu incipiente princípio, também a literatura gótica tentou fugir ao rótulo, se não mesmo negá-lo, repudiá-lo, como algo indigno de uma mente culta e intelectual. O que é que isto nos lembra? Pois é. Lembra-nos mesmo aquelas bandas que afirmam: não, nós não somos góticos, estamos acima disso.
Em 1773, quando Anna Letitia Aikin escreve o seu fragmento "Sir Bertrand", esta autora pensa que...
(...) o que torna o gótico potente, concluiu ela, é o "prazer constantemente ligado ao estímulo da surpresa de novos e maravilhosos itens" (...)
Aplicada como fórmula para gerar a narrativa gótica, a tendência desta teoria do Gótico é simplesmente gerar uma coisa estranha a seguir à outra, como "Sir Bertrand" demonstra. O herói é conduzido através de uma sequência de efeitos, cada um dos quais precisando de ser mais "estranho e inesperado" do que o anterior. (...)
mas a leitura de Aikin do vocabulário gótico como meramente um tipo de "novo e maravilhoso" ou "estranho e inesperado" soa demasiado literal e limitado a ouvidos modernos.
Será? É que ainda há realizadores de cinema que acreditam que um bom filme de terror se pode limitar a uma mera sucessão de sustos e saltos na cadeira... Vemos que algumas coisas não mudaram muito desde 1773.
A autora mais influente dos que desenvolveram o Gótico nos sessenta anos seguintes ao "Castelo de Otranto" foi Ann Radcliffe (1764-1823) (...)
Radcliffe e os seus inúmeros imitadores fizeram evoluir o vocabulário do que agora pode ser considerado Gótico "clássico".
Parafraseando a introdução:
A acção continuou a ser situada no passado, porventura não tão distante como em "O Castelo de Otranto". Os castelos continuaram a ser um cenário valioso, de preferência total ou parcialmente em ruínas, guarnecidos com masmorras e passagens labirínticas, idealmente com uma das alas permanentemente selada, fonte de maior mistério. Bandidos sinistros povoavam o universo de Radcliffe, sendo outra fonte de perigo para as suas heroínas. Mosteiros e abadias eram também uma rica fonte de inspiração, aproveitando o clima de negação sexual e potenciando dramas de identidades secretas, histórias ocultas e perseguição.
Conforme o Gótico se desenvolvia nestes anos primordiais, o sobrenatural não era um elemento essencial: Radcliffe era famosa por praticar uma forma de Gótico em que as ocorrências misteriosas eram supostamente atribuídas a causas sobrenaturais mas acabavam por provar não o ser.
Isto é, já na altura havia vergonha de admitir o elemento sobrenatural no gótico. Esta vergonha de ser gótico chega aos nossos dias de variadíssimas formas. Curioso, no mínimo.
O que é aparente, olhando agora para as várias versões da evolução do Gótico no fim do século XVIII é que nelas o estímulo do terror é apenas parte da maquinaria dos incidentes sobrenaturais ou semi-sobrenaturais, da superstição medieval, violência ou tortura - de "novos e maravilhosos itens". Frequentemente, substanciando esta maquinaria, existem outras "agendas" de ansiedade. (...) ansiedades acerca do poder masculino e da propriedade, a tirania exercida por lei de pais sobre filhas, maridos sobre mulheres, guardiães sobre pupilas - ansiedades que encontravam ao mesmo tempo uma expressão não gótica na escrita de feministas como Mary Wollstonecraft.
No resto da introdução, o editor explica claramente como, com o passar dos tempos, outras ansiedades surgiram também no domínio da ficção gótica: a loucura, a sexualidade, a decadência (por exemplo, recordemos "The Fall of the House of Usher" de Egdar Allan Poe), a violência, a morte. Em suma, os medos mais profundos do ser humano.
Agora que recomendei vivamente a leitura de pelo menos a introdução desta compilação, restam-me ainda mais perguntas. O que é que podemos considerar literatura gótica nos dias de hoje?
Quem se acusa?
Aposto que se segue um imenso silêncio. ~
evil grin~
Sempre que se segue este silêncio eu faço a pergunta ao contrário, como na música. Que música é que os góticos ouvem? Segue-se a lista, etc.
Que livros é que os góticos lêem? Parece-me que a lista está por fazer. Mas sabemos que lêem, ou melhor, devoram, a literatura gótica dita "clássica", isto é, histórias de terror. Antigas ou modernas, do "Drácula" aos vampiros de Anne Rice.
Mas não só. Tenho para mim que também gostam de "As Brumas de Avalon" ou "O Senhor dos Anéis". Sei também que gostam do Romantismo do século XIX. O Romantismo não é necessariamente sobrenatural.
Então, o que falta fazer é a lista de autores modernos que não escrevem sobre o sobrenatural. Porque os deve haver. É melhor começarmos a partilhar.
Voltando ainda ao tema do Romantismo, estou a lembrar-me do autor que melhor o expressou em língua portuguesa. Este foi Alexandre Herculano e a sua maior obra "Eurico, o Presbítero". Tudo o resto, na minha opinião, Camilo Castelo Branco incluído, na literatura portuguesa do século XIX e seguinte foi já imbuído de uma crítica de costumes muito mais digna do rótulo Realismo do que do Romantismo propriamente dito. O amor de Eurico e Hermengarda está destinado a ser impossível, como na tragédia grega. [Se quisermos extrapolar muito, tão impossível como os amores de um vampiro por um ser mortal.] Já os problemas que atribulam os amantes de "Amor de Perdição" são causados pela sociedade e poderiam ser facilmente resolvidos se a sociedade assim o desejasse. Duas perspectivas completamente diferentes.
Por último, sendo o gótico um movimento internacional, nestas alturas tenho pena de não saber mais sobre literatura estrangeira mas é aqui que os meus conhecimentos acabam. Por esta mesma razão achei tão pertinente partilhar estas linhas convosco, na esperança também de que outros mais sapientes as continuem.