De Anne Rice.
Não sei como começar. Começar a relatar o fim? Não é uma antítese?...
Foram oito meses da minha vida em que me entreguei desalmadamente a estes personagens. Subitamente, tornaram-se vivos para mim. Existem e amam e sofrem e estão perto. Sim, é possível que uma personagem ganhe vida. Agora, separar-me deles exige um luto especial. Ou talvez não tão especial. Simplesmente um luto. Primeiro as lágrimas, como deve ser. Só mais tarde a gratidão de os ter tido na minha vida e todos os momentos que partilhámos. Sim, um luto.
Eh bien. Não há nada mais a fazer.
(“Eh bien” é uma expressão com que Lestat me contagiou irremediavelmente. Significa uma mistura de “o que não tem remédio remediado está” e “a vida continua”.)
Por onde começar, então? Pelo princípio, obviamente. Vou contar a história. Aviso já que vou revelar o final mas só porque, excepcionalmente, desta vez o importante não é a chegada mas o caminho. E o caminho terão que ser vocês a ler. De outra forma, também não percebem o final.
A história
“Blood Canticle” é a continuação de “Blackwood Farm”. Mona Mayfair, namorada do recém criado vampiro Quinn Blackwood, está a morrer de morte natural. Lestat intervém e transforma Mona para as Trevas. Mas Mona guarda segredos. Foi mãe de uma mulher Talto. Os Taltos são criaturas não humanas, imortais, que vivem secretamente no mundo dos seres humanos. (Eu não li a série “Mayfair Witches” mas desconfio que a história dos Taltos pode ser encontrada por lá. E digo mais. Se o “ambiente” das Mayfair Witches é sequer semelhante ao de Blackwood Farm e Blood Canticle, não estou interessada em ler.) A acção passa-se toda em poucos dias. Mona procura a filha com a ajuda de Quinn e Lestat. Mona encontra a filha. Entretanto, Lestat apaixona-se perdidamente pela prima de Mona, Rowan, e, pior, é correspondido. Um velho antepassado da família dos Mayfair, um fantasma, claro está, começa a perseguir Lestat para que este se afaste da família. Sem sucesso. No final, é o próprio Lestat que, surpreendentemente, consegue superar o seu próprio egoísmo e não transformar Rowan numa vampira para poder ficar com ela para sempre. Muito ao contrário do que acontece em “The Tale of the Body Thief”, em que Lestat transforma David Talbot contra a sua própria vontade, exactamente por egoísmo.
Temos, portanto, uma evolução espiritual, como o próprio Lestat admite no final.
Ah, e por falar em final, Lestat acaba sozinho. A história não é exactamente uma telenovela brasileira.
Esta é a história da redenção de Lestat, que agora sonha em ser um santo. Exactamente, um santo. E que nutre uma devoção implacável pelo recém canonizado Santo Juan Diego, vidente da Virgem de Guadalupe (México), o equivalente à nossa querida Jacinta, vidente de Fátima (sem querer faltar ao respeito a ninguém, muito menos à Nossa Senhora de Fátima que afastou das nossas águas o crude do Prestige, Deus me perdoe pela blasfémia).
Um vampiro católico, que assina a revista “Catholicism Today”, e lê todos os artigos. (Ai Jesus!... Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem...)
Eu sempre disse que Lestat é um maníaco-depressivo. Os delírios místicos só vêm ajudar à festa. (Remember Joana D’Arc?) Com que então um santo, só porque sente remorsos quando mata meia dúzia de criminosos sem ser para os comer? Que monstro seria se não os sentisse... Pobre Lestat. Camisa de forças, já.
Mas, verdade seja dita, Lestat leva muito a sério a sua santa “missão”. Enviar almas penadas para o outro mundo, por exemplo. E não falo em mandar gente para o outro mundo. Lestat
de facto exorciza fantasmas com sucesso. O que é uma prova de fé, não é? A sua fé é real.
Mas como lhe diz o fantasma, espectro dos arrogantes em geral e dos místicos em particular:
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Tudo o que fazes é vaidade, e para tua própria soberba e glória! Tu pensas que os anjos não sabem o que fazes e para quem o fazes!”
O mais frustrante da história é que os sonhos de Lestat - ou viagens astrais - sugeridos durante o sono de meses em que o vampiro ficou mergulhado depois do seu encontro com Memnoch, o Diabo, não são revelados. Em Blackwood Farm, Lestat deixa escapar que foi transportado por anjos. Em Blood Canticle, Lestat recusa-se a falar no assunto quando lhe perguntam o que viu exactamente.
Quem gostou de Memnoch, principalmente, não pode deixar de questionar que mais Lestat terá visto. Mas não há resposta.
Anne Rice com falta de inspiração?
A grande paródia
Vou confessar-vos uma coisa. Raios me partam se este livro foi escrito pela própria Anne Rice! O mais provável é ter delineado a história por alto e posto alguém a escrever em seu nome.
Nota-se no estilo. Ou melhor, na falta dele. Sim, há passagens e frases em que se nota o dedo de Anne Rice. Sem dúvida. Mas tudo o resto?... Não.
Este não é um livro que eu aconselho, excepto aos verdadeiros fans de Lestat. O que eu aconselho é que, numa visita a uma livraria à vossa escolha, abram o livro e leiam o primeiro capítulo. Jesus, até mete o Papa João Paulo II! Leiam mas preparem-se para conter as gargalhadas (afinal, a malta da livraria pode não gostar). Porque é de ir às lágrimas. Sim, é um bom livro para quem gosta de comédia.
Como naquela cena em que vão bater à porta do vampiro Lestat, no seu apartamento em New Orleans, sim o célebre apartamento em que este viveu 62 anos com Louis e Claudia durante o século XIX, e é um motorista de Blackwood Farm à procura de Quinn (o patrão), que diz ter sido informado pelos Mayfairs que podia encontrá-lo ali. E diz Lestat: “Não sei porque é que não ponho um anúncio luminoso à porta”. Conseguem imaginar, em néon azul, a piscar: “LESTAT DE LIONCOURT, VAMPIRO”? Ou “SÃO LESTAT MORA AQUI”? Ou “SÃO LESTAT, VAMPIRO, EXORCISTA”?
Ou o tal primeiro capítulo de que falei atrás, em que Lestat se mostra como o verdadeiro American Vampire (semelhanças com American Psycho não são coincidências), the Rockstar, o Lestat do século XXI que usa expressões como “Yeah baby” e “pa-lease”.
Aliás, parece-me que todo o livro está escrito em jeito de paródia. Vampiros que mais parecem gangsters da Máfia. Exactamente, da Máfia.
Penso que Anne Rice queria de facto dar um fim ao vampiro Lestat, e às Vampire Chronicles, e já agora às Mayfair Witches, e juntou tudo e se pôs a gozar com os personagens que criou. Teria sido mais digno matar o vampiro Lestat no World Trade Center, a 11 de Semtembro de 2001. Assim, chorava-se mais e melhor.
Há em Blood Canticle todo um ritmo diferente. Nem se justificaria o contrário. As histórias anteriores cobrem séculos e séculos. Todo o encanto do passado, os vestidos de boneca de Claudia, a Renascença de Marius, o chapéu alto de Louis, os fraques oitocentistas do jovem Lestat, tudo isso se esfumou. É um mundo de computadores e telecomandos e telemóveis. É o nosso mundo. Exactamente. Vampiros a viver no nosso mundo. Vampiros que se alimentam de barões da droga e proxenetas de prostitutas de Leste. É preciso ter isto em mente ao pegar em Blood Canticle. Monsieur Lestat de Lioncourt é agora Lestat, a estrela pop. Ou se gosta, ou se odeia.
Os livros que eu aconselho: “Entrevista com o Vampiro”, “O Vampiro Lestat”, “The Tale of the Body Thief”, “Memnoch the Devil”, “O Vampiro Armand”, “Merrick”, “Blood and Gold” (excelentemente escrito). Eu não fiz a crítica a “Pandora” (porque já li há muito tempo e nem sequer tenho o livro, foi emprestado), mas também não é de desprezar.
De igual modo, em conversa com outro fan por aí na World Wide Web, foi-me dito que “Vittorio” é ainda melhor que “O Vampiro Armand”. Estava a falar com um especialista, o que me leva a desejar muito adicionar “Vittorio” à lista de compras. Já agora, não quero desprezar “The Queen of the Damned” por causa do único capítulo que se lhe aproveita, a história de amor doentio entre Armand e Daniel. Se puderem saltar tudo, saltem. Mas esse capítulo é lindo, acreditem.
Eh bien. Está tudo.
O que se segue é privado. Fechem os olhos.
Adieu, mon ami
... mas uma terrível Contrição apoderou-se de mim, uma profunda consciencialização que todos os meus poderes eram poderes tenebrosos e todos os meus talentos maléficos, e nada podia vir de mim senão o Mal, fizesse eu o que fizesse.
“O Jardim Selvagem”, murmurei. (...) É apenas uma frase que eu costumava usar para a Terra”, disse eu, “nos velhos tempos em que não acreditava em nada, em que acreditava que as únicas leis eram as leis da estética. Mas eu era jovem e novo no Sangue e estúpido, à espera de mais milagres. Antes de saber que nós sabemos mais de nada, e nada mais. Às vezes penso na frase de novo quando a noite está como esta, tão acidentalmente bonita.”
Lestat, havia tanta coisa que eu te queria dizer. Tanta coisa que eu te podia ensinar. Tenho acompanhado a tua vida com apreensão e alguma satisfação pela tua evolução. A verdade é que te julgo um bocado estúpido, não nego. Para arrogante, arrogante e meio. Mas como é que te demorou 200 anos a acreditar no transcendente?!
Talvez esteja a ser demasiado exigente contigo. Não sei. Sou apenas humana e tão ávida como tu. E tão arrogante como tu. Penso que foi isso que me atraiu em ti, essa espampanante arrogância, essa tua falta de vergonha de assumir perante o mundo que és um convencido de primeira. Porque não há nada pior do que um convencido que não se assume. (Há muitos.)
Mas eu sei que és capaz de reconhecer que estás errado se apenas to mostrarem. E eu tinha tanto para te mostrar. Para começar, que para nos tornarmos pessoas melhores é preciso aceitar o sofrimento. A dor é apenas o prelúdio da felicidade. A morte é apenas uma passagem. A beleza não está no mundo mas nos nossos olhos. Muitos olham e não vêem. Não tenhas medo de deixar a Terra. Olha mais para cima. Não tenhas medo dos anjos. Não tenhas medo da morte.
Mas,
alas, desapareceste. Desfiz-me em lágrimas ao fechar o último livro, porque é o último livro. Sei que te vou esquecer. Nunca te vou esquecer mas vou irremediavelmente esquecer-te. Como eu gostava que ficasses para sempre.
O que tu me ensinaste ainda não sei. O teu percurso é rico em experiências e a tua vida é única. E agora acabou.
Temos um ritual de família quando morre alguém. Tomamos uns comprimidos e vamos dormir. Quando acordamos a dor está lá à mesma, mas já não é tão grande. E todos os dias vai sendo menor. Foi o que fiz hoje. Adormeci em lágrimas.
Mon ami, como gostei da tua companhia! Vou ter tantas saudades, acredita!
Como se faz o luto por alguém que nunca morre? Como se agradece a quem nunca
foi? Em que sepultura se deixam as minhas flores para ti?
Je t’aime toujours. Ficamos assim. D’accord?
Ah, et merci. Beaucoup.
PS: Talvez um dia te volte a escrever. Quem sabe?... E porque raio não? Afinal, continuas aí, algures, no mesmo sítio onde sempre estiveste.
Eh bien. Arrumar os livros. Isto lembra-me que tenho de me desfazer de alguns. Estão a ocupar espaço e não preciso deles para nada. Porque, primeiro, não vou ter filhos a quem os deixar e, segundo, nunca leio o mesmo livro duas vezes.