[SPOILERS! Aconselho os fãs de “Dexter” a só lerem este artigo depois de verem a série porque vai haver spoilers do princípio ao fim.]
“Dexter: New Blood” foi feito, admitidamente, porque muitos fãs não gostaram do fim da série original que terminou em 2013. Eu devo ter sido das poucas pessoas que efectivamente gostou do final, Dexter com a irmã morta e envolta num lençol branco, qual fantasma, contra o céu negro da tempestade, o último “corpo” que Dexter amargamente depositou no mar alteroso antes de conduzir o barco Slice of Life mesmo para o meio do furacão.
O que enfureceu mais os fãs foi que Dexter sobreviveu e assumiu uma identidade falsa para passar a viver como lenhador. Não sei o que é que os fãs queriam em vez disto, talvez que Dexter fosse castigado? É caso para dizer “cuidado com o que se deseja”.
Serial killer em abstinência
Na primeira cena da nova série, Dexter está a correr numa floresta deserta e coberta de neve, com uma caçadeira, atrás de um veado branco, um animal lindo e majestoso de focinho negro que parece saído de um conto de fadas. A princípio pensamos que o objectivo é caçá-lo, mas com o decorrer dos episódios percebemos que Dexter faz esta corrida atrás do veado todos os dias, aproveitando a mira telescópica da espingarda para o observar. O objectivo é aproximar-se cada vez mais até conseguir ganhar-lhe a confiança.
Ficamos também a saber que Dexter já não é lenhador. Mudou-se para uma terrinha de interior onde trabalha numa loja de caça e pesca a vender armas, isco e facas de mato, o que é mesmo o emprego ideal para ele, e agora dá pelo nome de Jim Lindsey. Como um alcoólico em abstinência, Dexter conseguiu controlar os seus impulsos homicidas e já não mata ninguém há 10 anos. Isto é-nos revelado pelo novo “fantasma” que o acompanha, já não o pai adoptivo e mentor Harry mas nada menos do que a sua irmã Debra. Debra tornou-se a sua consciência, o reflexo dos seus medos e a sua maior antagonista quando Dexter ameaça querer ceder aos instintos que o levaram à fuga.
Mas voltemos à simbologia do veado, um animal carregado de mitologia desde tempos imemoriais. (Os amantes das lendas arturianas vão perceber isto muito bem.) Quanto mais penso nisso, mais me parece que a corrida matinal atrás do veado é para Dexter uma exibição de poder e auto-controlo: o poder de matar a qualquer momento e não o fazer, o dominar dos instintos.
É claro que toda esta pacatez não podia durar. Um miúdo rico e privilegiado (e responsável por um “acidente de barco que matou 5 pessoas”) está de férias na terrinha e decide ir caçar. Para mal dos seus pecados, mata o veado branco mesmo à frente de Dexter. Isto já seria o suficiente para enfurecer o serial killer reformado, mas o facto de o parvalhão caber no Código ainda ajuda mais. Dexter quebra o jejum de 10 anos, tão impulsivamente que nem planeou como se livrar do corpo. Isto é tenso e recorda-nos daquilo que a gente gostava em Dexter: o perigo constante de o descobrirem.
Aqui esteve mesmo muito próximo porque Dexter está destreinado e deixa um rasto de sangue. Para além disso, é namorado da chefe de polícia lá do sítio, Angela, talvez pela excitação do perigo ou pelo acesso à esquadra (mas ela também é muito gira, juntando o útil ao agradável).
Dexter ainda não se tinha livrado do corpo quando lhe bate à porta um espectro do passado: o seu filho Harrison, agora adolescente. Harrison vivia com Hannah na Argentina mas esta morreu e ele foi enviado para os Estados Unidos onde andou recambiado de lar de acolhimento em lar de acolhimento. No entanto, Harrison descobriu uma carta que Dexter enviou a Hannah, explicando a sua decisão de não se juntar a eles na Argentina. Hannah diz a Harrison que Dexter morreu, mas a carta tem remetente (o que é estranho para um serial killer que não quer ser encontrado, muito embora ninguém ande atrás dele porque toda a gente pensa que o Bay Harbour Butcher é o falecido Sargento Doakes), o que permitiu a Harrison seguir a pista do pai. Harrison está muito zangado por ter sido abandonado, mas acima de tudo quer respostas. A princípio Dexter nega ser o pai dele, mas acaba por mudar de ideias e aceitar a paternidade de braços abertos.
Esta nova série gira em torno dessa tentativa de pai e filho restabelecerem a relação, especialmente quando Dexter percebe que Harrison pode ter herdado também o “Passageiro Sombrio”.
Ao longo dos episódios, Harrison consegue arrancar ao pai toda a verdade. Ao mesmo tempo, Dexter percebe que talvez tenha de ensinar o Código ao filho por muito que o fantasma de Debra (a sua consciência) o tente dissuadir.
Final incoerente
Não vou explicar o enredo todo, mas existe mesmo um serial killer a operar há 20 anos na pequena cidade. Entretanto, Dexter e Harrison já estabeleceram uma ligação tão estreita que o adolescente aceita a verdade sobre o pai e até o acompanha na matança ritual do tal serial killer, aparentemente acreditando que “matá-lo é salvar vidas”.
Aqui é que o fim se espalha ao comprido, na minha opinião. A chefe de polícia, namorada de Dexter, conseguiu descobrir a sua verdadeira identidade e desconfia mesmo que Dexter é o Bay Harbour Butcher. Na sequência de um homicídio local, Angela prende Dexter. Dexter sabe que as provas que ela tem são fracas, mas se Angela começar a esgravatar há o sério risco de descobrir algo que realmente o incrimine. Para fugir da esquadra, Dexter tem de matar um dos polícias, que é também o treinador de wrestling na escola de Harrison.
O plano de Dexter é fugir com o filho e desaparecer novamente, e pede a Harrison que se encontre com ele exactamente onde o veado foi morto. (Os amantes das lendas arturianas já sabem onde isto vai dar…) Aqui é que não faz sentido nenhum. Ainda dois dias antes Harrison tinha assistido ao ritual de Dexter, embora com algum desconforto no fim mas em total concordância com o pai e disposto a fugir com ele. Quando Dexter mata o treinador de wrestling, que Harrison só conhecia há duas semanas, se tanto, e mal, Harrison acusa o pai de matar um inocente e dá-lhe um tiro?! A sério? Não! Não é credível. Não havia laços emocionais com o treinador para causar isto. Ainda se Dexter tivesse matado alguém importante para Harrison, como a mãe, a madrasta ou a tia, mas um gajo qualquer, uma personagem secundária? Não. Como uma pessoa normal, Harrison podia ter ido à polícia. Se Dexter fugisse sozinho, Harrison podia lavar daí as suas mãos. Tudo menos matar o pai, especialmente quando a série toda se passou a estabelecer uma relação tão próxima entre eles. É incoerente com o desenvolvimento do personagem e feito apenas para causar choque.
Se Dexter tinha mesmo de morrer, que pusessem outra pessoa a matá-lo. A namorada, por exemplo, ou um polícia qualquer. Nunca o filho a matar o pai. Eu não acreditei neste fim, um fim muito pior do que o da série original, e admito que não queria ver Dexter morrer. Admito que queria que Dexter se regenerasse, e este final deixou-me triste (para além de indignada com a incoerência).
Dexter sempre foi um psicopata complicado, capaz de sentir empatia e amor (o que coloca imediatamente a questão: será que Dexter é mesmo um psicopata?), que tem uma consciência e sente culpa. Isto sempre nos foi dito pelas suas interacções com os fantasmas Harry e Debra e o seu constante e característico monólogo interior. Nesta última série, Dexter superou o egoísmo inicial, e nem fez o que era melhor para ele em termos práticos, e tentou ser o melhor pai que sabia. Não merecia ser morto pela única pessoa por quem sentiu amor incondicional. Não sei o que é que a série queria com isto. Se queria chocar só conseguiu irritar. Até Mordred tinha melhores motivos para matar Artur.
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PARA QUEM GOSTA DE: Dexter, serial killers