Tirando algumas raras excepções, geralmente as adaptações de romances ao cinema ou à televisão conseguem desmotivar-me completamente de ler o livro. Esta mini-série da BBC, adaptação do clássico de Victor Hugo “Os Miseráveis”, é uma das raras excepções. Depois de ver esta série decidi mesmo ler o livro.
Não é a primeira adaptação que eu vejo deste clássico. Lembro-me principalmente de filmes. Mas não sei porquê, se calhar porque o livro é muito grande e o enredo muito extenso, todas as adaptações que vi me pareceram apressadas, sem que houvesse tempo para explorar os pormenores, e algo falhou em arrebatar-me. Esta série conta tudo como deve ser porque não tem essas limitações de tempo.
“Les Misérables”, como é típico destes clássicos com mais de mil páginas, tem vários enredos simultâneos, mas o principal é a história de Jean Valjean, condenado foragido mas intimamente boa pessoa, na sua busca de redenção. Encontra-a ao resgatar a pequena órfã Cosette de uma vida de miséria.
Para mim, a história mais comovente é a de Fantine. Assalariada numa casa de costura (hoje chamar-lhe-íamos operária), Fantine e duas colegas aceitam os convites de três fidalgos que as convidam a passear e jantar. Uma das colegas, mais sabida, avisa-a de que estes fidalgos só querem divertir-se e que vão deixá-las para casar com as donzelas bem nascidas que os pais ricos escolherem para eles.
Mas Fantine julga-se amada. Quando o amante a abandona com uma filha pequena nos braços (como a colega avisou) Fantine tem de procurar um emprego que sustente a ambas. Entretanto, deixa a filha, Cosette, numa estalagem no campo, onde os anfitriões, os Thénardier, prometem cuidar dela como se fosse de uma filha. Longe disso, a menina é maltratada, transformada em criada da estalagem, obrigada a trabalhar noite e dia e a carregar baldes de água do rio até à estalagem em pleno inverno. Estes Thénardier são um casal de patifes, dispostos a explorar a pobre Fantine o mais que puderem, fazendo pedidos de dinheiro cada vez mais elevados para “o bem da pequena”, e chegando mesmo a mandar por carta a Fantine que a menina se encontra às portas da morte e precisam de uma enorme soma para a salvarem. Fantine não tem este dinheiro e no seu desespero vende os dentes e o cabelo. Mas os Thénardier ainda pedem mais. Fantine tem de recorrer à prostituição. Aqui, Jean Valjean também é culpado, porque a despede apenas porque Fantine não revelou que tinha uma filha a seu sustento, razão que dificilmente justifica um despedimento. Espero que o livro explique melhor esta passagem.
Seja como for, Fantine tem tuberculose e morre. No seu leito de morte, Jean Valjean promete-lhe tomar conta da pequenita. Mas o tenaz inspector Javert, que há muito tempo persegue Valjean, acaba de o encontrar e leva-o de volta para as galés.
Valjean consegue fugir, ainda mais agora que tem uma promessa a cumprir, e usa a sua fortuna roubada para resgatar Cosette. Começa aqui a segunda parte mais comovente da história. Valjean e Cosette encontram abrigo num convento, onde ela se torna mulher e ele trabalha como jardineiro. Cosette habitua-se a chamar-lhe Papá, e com razão. Nunca aquela infeliz teve alguém tão semelhante a um pai, e Valjean adora-a como a uma filha.
Não vou contar mais do que isto, mas segue-se um romance entre Cosette e um revolucionário. Espero que o livro não nos aborreça com política revolucionária do século XIX (penso que são republicanos, mas a série, graças a Deus, não nos massacrou com isto).
Os episódios são bem equilibrados a nível da acção e deixam-nos sempre em suspense à espera do próximo. A série foca-se no que é realmente importante, os personagens e o seu desenvolvimento.
Só tenho um reparo a fazer. Parece que a BBC decidiu incluir uma “quota” de actores de cor nas suas produções, independentemente do tempo histórico em que elas se passam. Em “Les Misérables” temos um dos protagonistas negro, o inspector Javert, e um em cada cinco parisienses é negro. Curiosamente, o politicamente correcto não incluiu asiáticos. Sinto-me na legitimidade de perguntar porquê. Ora, não acredito nem por sombras que existisse tanta população negra na França do séc. XIX. Inclusive fui investigar, e outros tantos como eu, se era possível que um inspector da polícia na altura fosse negro. Parece que sim, mas em circunstâncias muito excepcionais. Não era, de todo, normal. Pelo contrário. Ainda há pouco tempo vi um documentário sobre os zoos humanos. Este ainda era o tempo em que Paris tinha um “Jardim de Aclimatação” onde se exibiam os “selvagens” das colónias francesas, embora os organizadores destas exibições soubessem muito bem que estavam a lidar com pessoas normais e até lhes pagavam para fazerem de selvagens. Estes selvagens, portanto, eram actores. Mas isso não implica que a população parisiense não os visse como selvagens e que se organizassem passeios, aos domingos, para ir ver os “selvagens”, tal como hoje em dia vamos ver os animais ao Jardim Zoológico. (Se puderem, vejam o documentário. É muito elucidativo. E isto não se passou só em França como em todas as metrópoles europeias “civilizadas” e até nos Estados Unidos.) Neste clima racista, um inspector da polícia negro seria um acontecimento raro, mas ainda assim possível. Tanta população negra nas ruas de Paris é que não.
Será uma questão de habituação? Afinal, o teatro tem uma grande tradição de usar actores não convencionais nos seus papéis. Napoleão pode ser interpretado por um negro, por um asiático, ou até por uma mulher. Aliás, todos os actores podem ser homens ou mulheres em papéis masculinos e femininos. Estamos habituados. Mas o teatro, por outro lado, foca-se na interpretação, não no realismo histórico. Não estará a reconstituição histórica a ser sacrificada ao politicamente correcto? Gostaríamos de ver um D. Afonso Henriques negro, ou asiático, ou mulher (fora do teatro)? Fica a questão.
É claro que os actores não-brancos não têm culpa que certos dramas históricos não os representem porque as suas etnias não estiveram envolvidas neles. Mas isto não é verdade para todos os dramas históricos. Assim de repente estou a lembrar-me da série “Spartacus”, onde havia gente de todas as cores e feitios, do negro da Núbia ao nórdico loiro e de olhos azuis. Sim, também é verdade que eram todos escravos dos romanos, mas é essa a verdade histórica. A História não pode ser branqueada. Qualquer branqueamento, mesmo aquele feito com “boas intenções”, é mais grave do que todos os “politicamente correctos” da actualidade. No que concordo é que podia haver maior produção de dramas a representar várias etnias. E aqui recordo-me de outro exemplo, “Shogun”, passado no Japão feudal. Se a série fosse produzida hoje pela BBC será que íamos ver lá pelo meio samurais africanos? (Se calhar íamos, transformando um drama numa paródia.)
Polémicas à parte, “Les Misérables” é uma excelente série. Gostei principalmente do fim. Depois de os protagonistas chegarem a um final satisfatório, deixando de ser pobres e desgraçados, a série termina com dois meninos a mendigar na rua sem que ninguém lhes dê esmola. Ou seja, sempre haverá miseráveis. Já não os chamamos assim, mas eles existem, muitas vezes onde não desconfiamos.
Recomendo vivamente. Mas conhecendo a RTP2, onde passou a série, será difícil que repitam.
RTP2, se me lês: não é vergonha nenhuma repetir programas, especialmente quando são de qualidade. Nem toda a gente os apanha à primeira.
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