quarta-feira, 29 de maio de 2019

Parabéns PAN


Há muito tempo que não escrevo aqui sobre política. Muito tempo mesmo.
Durante anos, em artigos “abre-olhos” como alguém lhes chamou, tentei explicar a realidade de pessoas licenciadas a quem não era dada a mais pequena hipótese a não ser que fossem filhos de alguém (fidalgos, é a palavra). Estar à frente do tempo é uma chatice, porque ninguém acreditava. A austeridade veio mudar tudo. Finalmente os abrilistas indignados, que não tinham o menor pejo em explorar os filhos dos outros (como eu, meus amigos, como eu) indignaram-se deveras quando tocou aos filhos deles e os viram emigrar por falta de oportunidades por cá. As pessoas são assim. Só acreditam quando lhes toca a elas. Então indignaram-se. E eu fartei-me de rir. E achei que não valia a pena continuar a escrever porque agora já todos viam. Afinal não era um filme de terror, nem era eu que era maluca, era mesmo a sério. Mas quem é que lhes metia isso na cabeça, a todos os palermas que foram votar no Passos como se não houvesse alternativa ao Sócrates fora do Centrão?
Foi a classe média quem pagou as favas, é claro. Abaixo da média, pouco me tocou. Fui daquelas a quem não podiam roubar mais. (Directamente, isto é, através dos impostos do trabalho, porque a nível de IVA levei por conta como toda a gente, já para não falar dos feriados “abolidos” que trabalhei sem receber como tal.)

Se não querem votar, não votem
Nem queiram imaginar o meu choque quando, ao fim de quatro anos de austeridade, os energúmenos, boçais, iletrados, atrasados mentais deste país ainda foram votar no Passos outra vez. Fiquei assim boquiaberta em frente à televisão, a abanar a cabeça, muda de todo. A malta rica, banqueiros, gente com bons empregos que não sabe o que fazer ao dinheiro, clientelas, esses eu percebo. Mas o povão sacrificado, só mesmo por masoquismo.
A geringonça foi a única coisa boa que saiu disto tudo, quando finalmente se iluminou em suficientes cabeças que o governo não tem de estar só entre “este” ou “aquele”, mas entre mais. Foi o fim dessa instituição putrefacta chamada “voto útil”, que sempre foi o voto mais inútil de todos.
Vamos a ver, nas próximas legislativas, até que ponto esta gente de inteligência rastejante vai conseguir associar dois mais dois e chegar a esta conclusão. Não estou optimista.
Vou mesmo ser do mais politicamente incorrecto que há, e que se lixe: até é melhor que esta gente que nem sabe em quem vota, nem para quê nem porquê, fique antes em casa a ver os programas da manhã em que se telefona para lhes sair 2000 euros. Melhor do que irem votar, se só lá vão fazer merda. Havia uma desculpa para isto noutros tempos, tempos já longínquos, em que as pessoas não iam à escola nem aprendiam a ler porque começavam a trabalhar aos 5 anos. Mas isto já lá vai há tanto tempo. E tantos podiam já ter feito por si próprios e aprendido a ler nos anos de reforma antecipada –que os pôs em casa com 60 anos enquanto a nossa desgraçada geração vai ter de trabalhar até morrer– que não há desculpa para a preguiça. Que se abstenham, sim, em vez de fazerem porcaria. (Justiça lhes seja feita, eles já começaram a perceber que só fazem porcaria. A solução para isto era ler um jornal de vez em quando, mas pensar faz doer o cérebro.)
Eu costumo dizer, menos a brincar do que é democrático, que as pessoas deviam fazer um teste de literacia antes de serem autorizadas a votar. Isto parece mau e fascista e o que lhe queiram chamar, mas da minha perspectiva são estes energúmenos, que por ignorância votam até contra si próprios, que votam também em coisas que decidem a minha vida. Tenho todo o direito de lutar para que a minha vida não seja fodida.

Evolução civilizacional
Mas o que me faz mesmo sair do meu recolhimento político, nestes dias pós-eleitorais, é o crescimento do PAN. Engana-se quem pensa que é um voto de protesto. Aliás, engana-se muita gente que não percebe mesmo porque é que as pessoas estão tão fartas de ver animais abandonados, maltratados, abatidos em condições desumanas. Engana-se quem não percebe que torturar animais por diversão não é tradição, é sadismo. Que a tourada, por exemplo, já devia ter sido abolida há séculos. Que só um sádico pode assistir, impávido e sereno a um horror desses.
Não foi falta de protestos a que os partidos tradicionais fizeram orelhas moucas. Agora admiram-se, mas agora é tarde.
Congratulo-me com o crescimento do PAN, tendo a consciência de que ainda é pouco, muito pouco, para se conseguir mudar as coisas. Mas é um passo mais à frente do que noutros tempos, em que se afogavam ninhadas num balde de plástico em plena rua de Lisboa (como eu vi, impotente). Ainda há muito trabalho, se não para mudar estas mentalidades embrutecidas, pelo menos para as fazer perceber que este comportamento já não é aceitável. Sejamos francos, pessoas destas nunca se vão preocupar com os animais, mas talvez se preocupem com que pensa deles o vizinho do lado.
Esta maior consciencialização de ver o animal como ser senciente e sofredor também tem uma explicação. É um avanço civilizacional da parte de pessoas que têm os meios financeiros para esterilizar animais (em vez de afogar ninhadas). Que têm outros meios de diversão que não torturar animais. Que têm cultura geral suficiente para saberem que torturar animais é coisa de serial killers quando são pequeninos.
As pessoas queixaram-se, queixaram-se, queixaram-se. Aos partidos, aos meios de comunicação, à polícia. Nada foi feito: “Isso não tem importância nenhuma, ninguém quer saber”, “não podemos intervir”, “isso não dá audiências”. E depois alguns intelectuais irritadíssimos porque não conseguem eleger um único deputado nas facções que arrancaram aos partidos de onde vêm, quando um pequeno partido, em apenas dois ciclos eleitorais, já tem um deputado no Parlamento e na Europa, já para não falar na presença nas autarquias.
São casos como este que me fazem pensar que o mundo pode não estar completamente perdido.
Parabéns ao PAN! Parabéns a todos os que votaram no PAN mesmo com pouca esperança de conseguir ir longe. Parabéns ao PAN por tê-los convencido a votar. Que seja o início, que mais vale tarde do que nunca.
Não dou parabéns ao Bloco de Esquerda, que só muito recentemente abriu a pestana e começou a andar por aí no transporte de animais vivos. Vieram atrasados, muito atrasados. Agora, meus amigos, vão ter de correr muito atrás do prejuízo.
Não é um voto de protesto. É um voto de identidade. Os animais, para quem os tem, são família. Quem não percebe isto não percebe nada do que está a acontecer.

Deu-me tanto gozo escrever este post, tanto gozo!


segunda-feira, 27 de maio de 2019

A Caveira, de Camilo Castelo Branco

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Ou não fosse Camilo, esta é a história de um amor de perdição.
Mas antes do conto existe um prefácio, muito irónico e muito político, cheio de piadas às ideias da época, que hoje teria antes lugar num blog como este. Mas não havia internet e estes textos satíricos e críticos só tinham lugar na literatura. Aqui, Camilo goza com aqueles que julgavam o caminho-de-ferro o progresso que de imediato elevaria o desenvolvimento do país. “O cavador, na hora da sesta, lerá, na vinha, de barriga ao ar, o Times, e Benjamin Constant.” Muitas destas piadas estão datadas e perderam-se para sempre. Mas achei curioso como é que quase dois séculos depois ainda se aponta o TGV e a alta velocidade como imprescindíveis para o desenvolvimento do país. Como diria o outro, quanto mais as coisas mudam mais ficam na mesma. Pelo menos hoje temos algo que não havia no tempo de Camilo, uma educação que chega efectivamente a todos, mas que ainda não basta para desfazer esse grande cancro que sempre afligiu o país e não dá sinais de diminuir, antes pelo contrário: a desigualdade. E uma desigualdade ainda maior no interior, para lá do Marão, onde se passa esta história. De certa forma, apesar da sátira datada, o prefácio continua actual.
Mas vamos lá ao conto. A história é curta e não há muito a dizer. Um homem já avançado em idade conta a um amigo o motivo de ter uma caveira em sua casa, dentro de uma redoma. E tudo começa num amor de perdição. Neste caso, em vários. Quando era novo, este homem amou loucamente uma mulher que o “atraiçoou”. Marta, de seu nome, amou loucamente a outro, Pedro de Mesquita. Mas um filho segundo de uma família nobre, Heitor Correia, queria cortejá-la também. Os dois, Pedro de Mesquita e Heitor Correia, acabam mesmo por pegar-se em duelo numa Quinta-Feira Santa, à saída da igreja, onde Pedro de Mesquita mata o rival com a sua espada de forma limpa e nobre (segundo as regras destas coisas). Mas o irmão do nobre derrotado procura Pedro de Mesquita logo de seguida e mata-o cobardemente a tiro de bacamarte. Marta morre de desgosto em questão de dias. (No Romantismo, as heroínas morriam assim, de desgosto.) Mas o homem que a amava sem ser correspondido nunca deixou de a amar. Quando chegou a altura de levantar-lhe as ossadas, subornou o coveiro para o deixar ficar com a caveira. Até à velhice, continuou a sentar-se a adorar a caveira da mulher que amava, ora imaginando que esta o perdoava ou que lhe tinha rancor.
É a presença desta caveira que pode qualificar o conto como gótico, mas na minha opinião apenas marginalmente. Temos aqui um homem desconsolado, incapaz de superar uma paixão de juventude, com uma fixação mórbida. Não há elementos sobrenaturais e o próprio admite que os seus delírios não passam de imaginação. Não existe uma consequência trágica desta fixação, como, por exemplo, em Edgar Allan Poe. Apesar da excentricidade, o homem segue com a sua vida, pacatamente, até ser velhinho. Não me parece o bastante para ser um conto gótico. Um conto ultra-romântico sobre alguém que não consegue ultrapassar uma paixão não correspondida, isso sim. Mas eu espero mais qualquer coisinha do “rótulo” gótico.
O ponto alto do conto é o duelo e a vingança cobarde do irmão do nobre derrotado. Este outro nobre nunca é punido, pelo contrário, recebe um perdão real por ser fidalgo. Se calhar era disto que Camilo queria falar.


-§-

Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.




segunda-feira, 20 de maio de 2019

Siren



[crítica à primeira temporada]


Às vezes temos surpresas. Quando vi o poster de uma sereia de aspecto ameaçador (ou predador?) decidi que esta era uma série a espreitar por uma questão de descargo de consciência, mas não esperava nada daqui. Enganei-me. Uma série tão bem conseguida, apesar de pressupostos que desafiam a toda a credibilidade, é de facto assombroso.
A primeira cena diz-nos logo que alguém se empenhou a sério em produzir um bom resultado apesar do tema periclitante — o que talvez tenha sido o segredo do sucesso. Contra o fundo de um céu nocturno e tempestuoso nas águas revoltas do mar de Bering, uma pequena traineira anda na faina. Só este início dá logo vontade de continuar a ver. Ao puxarem a rede, os pescadores não encontram apenas peixe. Uma criatura desconhecida e agressiva salta da rede, ataca e fere gravemente um deles, e, perante o choque dos restantes, esconde-se no porão. Antes que os pescadores consigam identificar o que está no barco, um helicóptero do exército aparece, fuzileiros descem a bordo, e levam com eles o pescador ferido e o estranho animal selvagem que teve de ser atordoado para que o pudessem controlar. Como se tudo isto não fosse já suficientemente estranho, um dos pescadores fica convencido de que aquilo que apanharam não é outra coisa senão uma sereia. Se bem que não é nada a sereia belíssima e sedutora das lendas.
Se esta cena parece saída de um filme de terror é porque os primeiros quatro episódios são efectivamente realizados como uma mini-série desse género. E podiam mesmo funcionar como mini-série, com princípio, meio e fim. Pergunto-me se os criadores de “Siren” também não acreditaram que a série fosse renovada e quiseram apresentar uma história completa nestes primeiros episódios. Para nossa surpresa, e se calhar deles também, a coisa resultou.
E se resultou, muito se deve igualmente à actriz que faz de sereia, Eline Powell, que sem maquilhagem ou efeitos especiais consegue convencer-nos de que estamos a ver uma espécie diferente. Ryn, nome que a sereia dá a si própria, está em terra firme à procura da irmã (a mesma que foi apanhada pelos pescadores e capturada pelo exército). A princípio parece uma conveniência narrativa que a vila piscatória de Bristol Cove, onde se passa a acção, tenha um festival dedicado às sereias, devido à lenda um dos seus fundadores que terá amado uma sereia, mas afinal isto também faz parte do enredo. Bristol Cove esconde muitos segredos e a verdade não é tão bonita como a lenda.
À medida que percebemos a natureza predatória e furtiva das sereias de “Siren”, não é de admirar que os militares estejam interessados. Como acontece quase sempre nestes filmes, até existe um projecto secreto para estudar a espécie. É aqui que se encontra a pobre sereia capturada, a servir de cobaia.
Mas Ryn ainda não sabe disto. Completamente ingénua e perdida, como peixe fora de água, e nua e tudo como saiu das ondas, anda pelas ruas à procura. Agora sim, convenientemente, cruza-se com o biólogo marinho Ben Pawnall, que a princípio a julga apenas uma rapariga em apuros. Mal ele sabe que deu de caras com o maior achado científico da sua vida.
Um pouco assustada, Ryn recorre ao seu mecanismo de defesa e ataque: o canto, que tanto mesmeriza como seduz. Ryn não sabe o que está a provocar, mas a partir desse instante Ben nunca mais a consegue tirar da cabeça. Tal como na lenda, o canto da sereia enlouquece os homens. E ainda não percebemos se enlouquece também as mulheres porque não foi aplicado a nenhuma (ainda só vi a primeira temporada). Era interessante perceber isso. A série já mostrou que não tem medo do tema, mas não sei até onde é que podem ir sem melindrar a audiência a que se destina.

Sereias muito humanas
Tal como no caso dos zombies, para apreciar esta série é preciso que o espectador esteja disposto a aceitar alguns “factos” como adquiridos. Aqui não há magia nem sobrenatural. É tudo apresentado como se fosse científico. As sereias têm uma cauda de peixe quando estão no mar. Assim que saem para terra, esta cauda cai e dá lugar a duas pernas. O contrário acontece quando as sereias voltam ao mar: as pernas unem-se numa cauda, crescem barbatanas, aparecem dentes pontiagudos. O processo, que vemos logo no primeiro episódio, é arrepiantemente doloroso. Para ser convincente, é preciso que o espectador também faça a sua parte e “acredite”. Eu achei muito convincente e que a série vale a pena que “acreditemos”.
Na verdade, uma das coisas de que estou a gostar mais é mesmo conhecer esta nova espécie de humanóides marinhos, com a sua própria cultura e mitologia, que fogem dos “fora de água” porque não têm boa impressão de nós. Para eles, nós é que somos os predadores. A nossa moralidade, com os seus tons de “cinzento”, não é conhecida entre as sereias. Na água tudo é simples e básico.
Para uma série de entretenimento que, diga-se francamente, não aspira a grande seriedade, até são colocadas questões filosóficas pertinentes. Ryn, que fora de água parece tão humana que ninguém percebe a diferença, é pessoa ou animal? Onde é que começa a diferença entre um e o outro? Nas barbatanas, na inteligência, no pensamento racional, na consciência, na sensibilidade? Não é estranho que seja Ben a colocar esta questão, ainda antes de perceber que o seu interesse por Ryn pode não ser apenas científico. Afinal, até que ponto é permitido sentir atracção por algo que parece humano mas não é “bem” humano? Ou será que é?
Para Ryn, os seres de “fora de água” também são uma surpresa e um mistério. Afinal não são todos maus, alguns até são bons, mas ao mesmo tempo fazem coisas que Ryn não compreende. A complexidade, tão diferente da vida instintiva que conhece no mar, começa a fasciná-la. A sua irmã, depois de libertada do projecto científico onde foi sujeita a experiências traumáticas, ainda vê os humanos a preto e branco, mas Ryn já não acha assim tão fácil colocar as coisas em termos de “nós ou eles”. Alguns humanos são bons, outros são maus, mas entre o seu povo também há indivíduos dogmáticos que se recusam a encarar o outro como válido. Agora que os horizontes de Ryn se abriram para profundezas e cambiantes que o mar não proporciona, poderá ela voltar à vida básica e simples que sempre conheceu como única?

A incógnita da segunda temporada

“Siren” surpreendeu-me pela positiva, não só por suscitar estas questões mas também pela rapidez com que me embrenhou nas personagens. A cena em que a irmã de Ryn é capturada na rede, enquanto Ryn observa sem lhe conseguir valer, comoveu-me tanto que me vieram lágrimas aos olhos. Isto não me acontece assim tantas vezes e nunca com histórias para entreter sem pensar muito. “Siren” já me fez pensar alguma coisa e já me fez sentir bastante.
Mas tudo na devida perspectiva. “Siren” não é para levar muito a sério nem é para esperar daqui um enredo muito sofisticado. (Embora mais bem pensado do que eu julgava, sublinho, e muito mais profundo do que coisas juvenis e incoerentes como “Grimm”, por exemplo.) Mas há partes não tão bem conseguidas. Menos credível do que a cauda transformar-se em pernas e vice-versa, para mim, foi como Ryn aprendeu a falar inglês em três dias, com formas verbais e conceitos abstractos e tudo! Ena! Mas é daquelas coisas necessárias para pôr os personagens a comunicar depressa, e também é preciso “acreditar” nisto “porque sim”.
Conforme vamos vendo o mundo pela perspectiva das sereias, a narrativa começa a afastar-se dos elementos de filme de terror e a preocupar-se com outras coisas. Na parte em que vou, parece-me que a série quer abordar temas ambientais, já para não falar da questão da diferença do outro e da xenofobia, o que é sem dúvida muito premente e actual. Eu, sinceramente, preferia que “Siren” não se tornasse noutra dessas séries politicamente correctas e sem sal. A primeira temporada conseguiu ser subtil sem deixar de passar a mensagem. Mas uma vez esgotada a novidade que é conhecermos as sereias e a sua cultura estranha, será que “Siren” consegue criar um enredo igualmente interessante na segunda temporada? Estou a torcer para que sim, mas esta é uma série ameaçada de fragilidades por todos os lados que já conseguiu melhor do que seria expectável. Vou ficar aqui a fazer figas para que não comece a meter [outro tipo de] água.

O canto das sereias
Uma última nota sobre o canto destas sereias. Aqui a série tentou o que pôde, mas, aos meus ouvidos, este canto lendário soa como uma mistura de sons de baleias com música etérea. Uma mistura, enfim, que não é completamente desagradável, mas daqui até fascinar alguém até ao ponto da obsessão vai uma grande diferença. É outras das coisas em que “acreditamos” porque queremos acreditar. Faz de conta que estamos a ouvir algo sublime.
Eu estou muito mal habituada, porque basta-me percorrer aleatoriamente o meu Winamp para encontrar vozes de sereias bem mais convincentes, desde a incontornável Lisa Gerrard até uma das minhas descobertas mais recentes, a vocalista dos Rïcïnn, Laure Le Prunenec, já para nem falar de outra lenda, Elizabeth Fraser (Cocteau Twins, etc). E isto sem pensar muito. Estas sim, sereias que me causam um transe extático. E como a mim, a muito mais gente.
“Siren” deixa algo a desejar neste aspecto. Felizmente, a série parece ter consciência desta limitação e não põe as sereias a cantar muitas vezes.



domingo, 5 de maio de 2019

A Dama Pé-de-Cabra, de Alexandre Herculano

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Toda a gente conhece esta lenda, que já existia antes da adaptação de Alexandre Herculano e em várias versões (procurar, por exemplo, a lenda do castelo de Marialva). A primeira parte deste conto costuma ser inserida nos manuais escolares, onde me lembro de a ver. O que já tinha esquecido é que o conto tem uma segunda parte, embora tenha toda a certeza de a ter lido algures.
Começando pelo princípio, D. Diogo Lopes, nobre medieval, senhor de Biscaia, andava a caçar quando encontra na serra uma mulher lindíssima por quem se apaixona e a quem pede imediatamente em casamento. A senhora, de quem nunca nos é dado o nome, aceita, na condição de que D. Diogo Lopes nunca mais faça o sinal da cruz. Diz o conto que D. Diogo, que “que nos folgares e devassidões perdera o caminho do Céu”, nem pensa duas vezes. Mas ao chegar ao castelo com a noiva, repara que ela tem “pés forcados como os de cabra”. O que nada alterou, e viveram juntos e felizes por vários anos, tendo nascido entretanto duas crianças, D. Inigo Guerra e Dona Sol.
Certo dia de caça e festança, em disputa por um pedaço de carne, a podenga negra da dama mata o alão do senhor da casa. Este, impressionado, pela primeira vez em tantos anos benze-se com o sinal da cruz. A dama fica toda preta, eleva-se no ar, e sai por uma fresta com Dona Sol nos braços, deixando D. Inigo porque D. Diogo não a deixa levá-lo. (Na versão da minha mãe a dama “desaparece com um estouro”.)
Aqui acaba a primeira parte e começa a segunda.
Na segunda parte, D. Inigo já é homem. D. Diogo Lopes tinha partido em penitência para a guerra com os sarracenos e encontra-se aprisionado. D. Inigo não sabe como pagar o resgate. O seu pajem, o fiel Brearte, aconselha-o a procurar a sua mãe, na serra, que “é grande fada”. Ao que D. Inigo responde: “Que dizes tu, Brearte? Sabes quem é minha mãe e que casta é de fada?”
A interacção entre estes dois é tão boa e fluida que parece um romance contemporâneo. D. Inigo daria um grande anti-herói. Brearte é fiel e leal mas tem medo deste amo meio-humano e meio-outra-coisa. D. Inigo conta ao seu pajem a história que um velho abade relatou ao seu pai, que esta Senhora da Pena é uma alma penada, condenada ao inferno. Há mais pormenores sobre a origem desta senhora e do seu amante, transformado em onagro [jumento selvagem], que nos levam a D. Argimiro, que tinha jurado ao seu pai, estando este no leito de morte, que não caçaria animais que tivessem crias a seu cargo. D. Argimiro quebra esta jura. E aqui temos um momento belíssimo e invulgar para a altura em que foi escrito. D. Argimiro entra numa gruta onde um onagro guarda as crias, e este “deixando as suas crias, estendeu-se no chão e abaixou a cabeça, como quem suplicava”. A personificação do onagro, que acaba morto apesar da sua súplica, é bastante comovente. Mas D. Argimiro não tarda a sofrer o castigo pelo que fez.
De volta ao presente da história, D. Inigo, desesperado, e não sabendo como pagar o resgate de D. Diogo, acaba mesmo por procurar a sua mãe na serra, onde a encontra. A dama quer ajudar D. Diogo e envia o seu filho, montado do onagro maldito que é o castigo de D. Argimiro, direito à praça mourisca onde liberta o seu pai sob circunstâncias sobrenaturais.
Este conto recorda-me porque é não sou amiga de contos curtos. Havia aqui muito a explorar para um romance inteiro. Mesmo assim, D. Inigo, que morre de velho, tem fama de ter vendido a alma a Belzebu, pois “meio precito [condenado] era ele por sua mãe; não tinha que vender senão a outra metade da alma”. Mas há mais para contar, como diz Herculano: “o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada”. Pena não ter contado, que esta podia ter dado uma grande Fantasia Épica. Herculano, como historiador, prefere sempre ficar-se pelo que conhece e que mais gosta, a Reconquista aos Mouros. Muita da sua linguagem medieval já é para nós completamente obsoleta. Ainda tentei procurar alguns termos na internet mas não achei nada e também não figuram nos dicionários actuais. Foi preciso ir adivinhando pelo contexto, como se faz com as línguas estrangeiras. Quanto tempo restará até que nem o contexto baste para compreender a narrativa? Mas Herculano continua incontornável. Um pouco mais de desenvolvimento, menos absurdo, menos visões do inferno, mais psicologia (D. Inigo e a sua relação com a mãe), a história do que aconteceu a Dona Sol, e este conto podia ser um romance contemporâneo.



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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.