Li “Os Maias” duas vezes. A primeira, por curiosidade, aos dez anos. A segunda, já no liceu, para tentar perceber o que me tinha escapado em tão tenra idade. No meu percurso académico devo ter estudado “Os Maias” umas três vezes.
Perguntem-me pela história? Dois irmãos que não sabem que são irmãos têm uma relação incestuosa. Isto é o primeiro e o último capítulo, mais coisa menos coisa. O resto? Uma estopada insuportável que me fez renegar Eça de Queirós para todo o sempre.
Até que me deram este livro. Foi efectivamente uma oferta e a sinopse conseguiu interessar-me: Teodorico Raposo, órfão e pobre, vê na fortuna da Titi o futuro de uma vida de luxo e gozo. Mas a Titi é ultra-beata e Teodorico tem de fingir sê-lo também para que a herança não lhe escape. Tanta falsa beatice leva-o a uma peregrinação na Terra Santa com a incumbência de trazer de lá à Titi a sagrada relíquia que a cure das suas enfermidades. E Teodorico encontra de facto a mais santa das “relíquias”, mas as coisas correm-lhe mal…
Ler esta “relíquia” foi para mim uma surpresa e conseguiu divertir-me do princípio ao fim. Quase me perguntava, ao começar o livro, mas porque é que não dão “A Relíquia” na escola em vez dos bocejantes “Maias”? Respondi a mim própria. Porque apresentar este livro cheio do sexo mais sórdido (“onde Vénus mercenária arrasta as chinelas”) diante de uma turma de adolescentes imberbes seria missão impossível.
Mais à frente, outra questão me assaltou e ainda me intriga: como é que este livro passou durante o Estado Novo? Não deve ter passado bem. Digamos apenas que só agora compreendo a estátua do Eça de Queirós na Rua do Alecrim, no familiar caminho do Cais do Sodré para o Bairro Alto. E este tempo todo a pensar que a mulher nua representava a Musa literária… Também sou muito inocente, sou.
Pior do que a Vénus mercenária, queridos leitores, este livro ainda hoje é susceptível de provocar ataques cardíacos a muito boa gente. Este livro, escrito nos idos 1887, diz que Cristo não ressuscitou. Diz que a morte na cruz foi uma farsa (e explica como) e que foram os apóstolos quem tirou o corpo do Mestre do túmulo que viria a aparecer vazio. Isto, na América de hoje, século vinte e um, era caso para queima do livro em cultos evangélicos. E tenho de me perguntar que reacção teriam as senhoras e senhores beatos do Estado Novo perante “A Relíquia”. Se calhar não era assim tanta porque só muito poucos sabiam ler, e “seleccionados” de “famílias certas”.
Mas a sensação que tenho ao ler este livro é de que as mentalidades estão a regredir à medida que o tempo avança, o que é preocupante. Não significa isto que concorde ou deixe de concordar com o furto do corpo de Cristo, nem vem ao caso. O que vem ao caso é escrever isto em 1887 e chegarmos a 2018 e ainda ser polémico que alguém escreva isto!
Teodorico é um tarado sexual
Devia ser fácil simpatizarmos com o pobre órfão Teodorico Raposo, obrigado pela necessidade de se fazer à vida a fingir-se um extremoso beato para agradar à Titi. A Titi, tão amiga da virtude que prefere deixar à Igreja a sua herança sem que lhe passe pela cabeça que a caridade e a virtude começam em casa, a isso obriga. Teodorico faz-se e desfaz-se em rezas e missas e águas bentas para provar à senhora que é suficientemente santo para merecer a fortuna.
Mas não é possível simpatizar com este Raposo, de tão falso, de tão ignorante, de tão tarado sexual. Homem feito e experiente, chega mesmo a ser apanhado a espreitar uma mulher nua por um buraco de fechadura. Mais tarde, durante uma viagem de barco, até uma monja lhe atiça o apetite. Já para não falar no putedo. Putedo chique e putedo baixo nível, Raposo nem sequer quer vinho verde, só quer mesmo as putas.
Como se não bastasse, nunca passa pelo miolo desta alminha trabalhar para ganhar a vida. Perfeito sociopata, quando lhe falha o grande golpe da relíquia falsa, torna-se em Lisboa vendilhão de relíquias acabadinhas de trazer da Terra Santa. Quando estas se esgotam, impinge frasquinhos de água da torneira como sendo do Jordão. Um cúmplice bem lhe diz: “Indecente!” Além da água do “Jordão”, Teodorico vende cacos do cântaro que Nossa Senhora levava à fonte, palhinhas do presépio, tabuinhas aplainadas por São José, ferraduras do burrinho que transportou a Sagrada Família para o Egipto. Catorze ferraduras, nem mais nem menos, do mesmo burrinho!
Eça de Queirós devia ter um profundo ódio à Igreja e à religião. A mim causa-me mais nojo tarados sexuais que vão ao Egipto e à Palestina (quando ainda não havia bombas e entifadas) e em vez de respirar o pó da História se metem num hotel com a primeira puta que encontram. São nojos, e o meu é este.
Escusam de me vir cá com “mas é uma personagem de sátira, não precisa de ser simpático, tem de ser é engraçado e interessante”. Teodorico não é simpático, nem engraçado, nem interessante. É uma besta. O gozo que me deu o livro foi torcer para que o Teodorico se desse mal, e de facto dá-se mal, e ainda se devia dar pior. Mas já lá vou.
Agora vamos ao que realmente me empolgou n’”A Relíquia” e me fez desejar que Eça tivesse escrito antes Fantasia.
A relíquia n’A Relíquia
Na Palestina, Teodorico tem um sonho. Não se percebe logo que é um sonho, truque usada por Eça para nos introduzir subitamente num relato surrealista que transporta os dois personagens, Raposo e o historiador alemão Topsius, seu companheiro de viagem, à fatídica Páscoa em que Jesus é crucificado.
E de repente é épico, é grandioso, é bíblico! É um narrador omnisciente disfarçado por trás do Raposo a contar-nos coisas que o ignorante bacharel de Coimbra jamais poderia saber, são personagens maiores do que a vida que parecem saídos d’O Senhor dos Anéis, é todo um mundo que nos é revelado como se fosse novo (de tão antigo) e que nos é estranho e intrigante como a mais moderna Fantasia. E que o Eça era capaz disto, não, eu não sabia. Durante páginas e páginas li, boquiaberta, e reconheci as influências de semelhantes obras estrangeiras do século dezanove com que aprendi a ler o que gosto.
Não é inocente que para a grandiosidade brilhar Raposo teve de se calar. E mesmo assim, em pleno Templo de Salomão na celebração da Páscoa, ainda consegue abrir a boca e dizer porcaria, que nada mais sai do meio daquelas barbas. Foi aqui que eu desejei que Eça tivesse antes escrito Fantasia, e abandonasse definitivamente o Portugalzinho dos diminutivozinhos, e as camisinhas da Mary, e as Adélias desta vida. Que desperdício!
O que me leva à célebre epígrafe com que o próprio Eça, em jeito de subtítulo, se achou obrigado a justificar esta obra: “Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia”. Não é a coberto de nenhum manto nem é diáfano, nem devia haver necessidade de justificar o surrealismo e o fantástico desta obra. O que me dói, porque prova que vem de longe esta mania da literatura portuguesa de que só o que é realista é que é bom, quando por outras paragens Horace Walpole já tinha publicado “O Castelo do Otranto” um século antes (1764).
É a este público de leitores de Fantasia e Fantástico que dedico esta crítica. A sátira do Eça já toda a gente conhece, tivemos de a estudar na escola, mas só por causa desta sequência na Terra Santa no tempo de Cristo vale a pena ler “A Relíquia”, é uma pena não ler a “A Relíquia”! Subitamente é outro escritor que se nos revela, é outro nível, é outra literatura. É a literatura que nos falta por todas as razões que aqui e aqui já debatemos. E por tudo isto foi uma agradável surpresa.
Terminado o sonho, lá voltamos ao Portugalzinho, à Lisboazinha, aos diminutivozinhos, aos jantarinhos da Titi, à reliquiazinha. À vidinha triste deste Raposo que arranja emprego na firma de um amigo de escola. (Lá está a cunhazinha.) Raposo não conseguiu a fortuna da Titi e por algum tempo parece emendar-se. Mas não se emenda. No fim do livro, ainda e sempre congemina as mentiras que devia ter dito mas não se lembrou de dizer quando as coisas deram para o torto. Raposo é incorrigível. Acabei com pena da Jesuína, a coitada com quem casou por interesse. Tirando esta, ninguém fica bem neste retrato excepto o tal douto Topsius, historiador alemão. Todas as personagens portuguesas são arrasadas. Excepto a Jesuína, poupada ao sarcasmo, talvez pela sua inocência.
Posto tudo isto, apesar do brilhantismo e do génio, começa-me a parecer que a sátira do Eça já denota a idade. É o destino de toda a boa sátira, trágico como a vida. Tem piada na altura, mas o tempo é implacável. Este já não é o mesmo Portugal, muitas ironias subtis já nos escapam, já não reconhecemos as personagens no nosso dia-a-dia. Ainda é divertido, mas cada vez menos. Vai chegar o dia em que a sátira precisará de ser explicada (como Gil Vicente tem de ser explicado para ser percebido), e esse será o dia em que a sátira morre. Triste fim mas bom sinal. Restará sempre deste livro, como de todo o realismo, um documento histórico que nos conta as verdades secretas de um Portugal extinto.
Mas por seu turno, o Fantástico não morre. Não importa que a sequência se passe na Páscoa de Cristo ou num qualquer mundo fantasioso sem tempo nem lugar. Fora do tempo e do espaço, a Fantasia vive na imaginação de quem se embrenha nela.
A cena em que Raposo encontra a árvore anuncia já que algo mágico vai acontecer muito em breve:
Rondando então em torno á Arvore d'Espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá… Se te levo commigo para um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das mãos postas, todas as caricias da oração—não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi—então fica-te ahi, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!… Mas se promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida decomposição dos seus tecidos—então vaes ter em Lisboa o macio agasalho d'uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram… Falla, monstro!»
O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d'estio, o presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A Arvore d'Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.^a D. Patrocinio—como uma promessa sufficiente de que, transportado para o oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d'essa hedionda senhora inchasse e se desfizesse… E isto foi, entre nós, n'esse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Isto não vai morrer nunca. É aqui que está a relíquia.
[Li a versão pós-Aborto porque o livro foi oferecido e a cavalo dado não se olha o dente. Publico a capa da blasfémia como advertência.]