sábado, 20 de janeiro de 2018

"A Relíquia", de Eça de Queirós


Li “Os Maias” duas vezes. A primeira, por curiosidade, aos dez anos. A segunda, já no liceu, para tentar perceber o que me tinha escapado em tão tenra idade. No meu percurso académico devo ter estudado “Os Maias” umas três vezes.
Perguntem-me pela história? Dois irmãos que não sabem que são irmãos têm uma relação incestuosa. Isto é o primeiro e o último capítulo, mais coisa menos coisa. O resto? Uma estopada insuportável que me fez renegar Eça de Queirós para todo o sempre. 
Até que me deram este livro. Foi efectivamente uma oferta e a sinopse conseguiu interessar-me: Teodorico Raposo, órfão e pobre, vê na fortuna da Titi o futuro de uma vida de luxo e gozo. Mas a Titi é ultra-beata e Teodorico tem de fingir sê-lo também para que a herança não lhe escape. Tanta falsa beatice leva-o a uma peregrinação na Terra Santa com a incumbência de trazer de lá à Titi a sagrada relíquia que a cure das suas enfermidades. E Teodorico encontra de facto a mais santa das “relíquias”, mas as coisas correm-lhe mal…
Ler esta “relíquia” foi para mim uma surpresa e conseguiu divertir-me do princípio ao fim. Quase me perguntava, ao começar o livro, mas porque é que não dão “A Relíquia” na escola em vez dos bocejantes “Maias”? Respondi a mim própria. Porque apresentar este livro cheio do sexo mais sórdido (“onde Vénus mercenária arrasta as chinelas”) diante de uma turma de adolescentes imberbes seria missão impossível.
Mais à frente, outra questão me assaltou e ainda me intriga: como é que este livro passou durante o Estado Novo? Não deve ter passado bem. Digamos apenas que só agora compreendo a estátua do Eça de Queirós na Rua do Alecrim, no familiar caminho do Cais do Sodré para o Bairro Alto. E este tempo todo a pensar que a mulher nua representava a Musa literária… Também sou muito inocente, sou.


Pior do que a Vénus mercenária, queridos leitores, este livro ainda hoje é susceptível de provocar ataques cardíacos a muito boa gente. Este livro, escrito nos idos 1887, diz que Cristo não ressuscitou. Diz que a morte na cruz foi uma farsa (e explica como) e que foram os apóstolos quem tirou o corpo do Mestre do túmulo que viria a aparecer vazio. Isto, na América de hoje, século vinte e um, era caso para queima do livro em cultos evangélicos. E tenho de me perguntar que reacção teriam as senhoras e senhores beatos do Estado Novo perante “A Relíquia”. Se calhar não era assim tanta porque só muito poucos sabiam ler, e “seleccionados” de “famílias certas”.
Mas a sensação que tenho ao ler este livro é de que as mentalidades estão a regredir à medida que o tempo avança, o que é preocupante. Não significa isto que concorde ou deixe de concordar com o furto do corpo de Cristo, nem vem ao caso. O que vem ao caso é escrever isto em 1887 e chegarmos a 2018 e ainda ser polémico que alguém escreva isto!

Teodorico é um tarado sexual
Devia ser fácil simpatizarmos com o pobre órfão Teodorico Raposo, obrigado pela necessidade de se fazer à vida a fingir-se um extremoso beato para agradar à Titi. A Titi, tão amiga da virtude que prefere deixar à Igreja a sua herança sem que lhe passe pela cabeça que a caridade e a virtude começam em casa, a isso obriga. Teodorico faz-se e desfaz-se em rezas e missas e águas bentas para provar à senhora que é suficientemente santo para merecer a fortuna.
Mas não é possível simpatizar com este Raposo, de tão falso, de tão ignorante, de tão tarado sexual. Homem feito e experiente, chega mesmo a ser apanhado a espreitar uma mulher nua por um buraco de fechadura. Mais tarde, durante uma viagem de barco, até uma monja lhe atiça o apetite. Já para não falar no putedo. Putedo chique e putedo baixo nível, Raposo nem sequer quer vinho verde, só quer mesmo as putas.
Como se não bastasse, nunca passa pelo miolo desta alminha trabalhar para ganhar a vida. Perfeito sociopata, quando lhe falha o grande golpe da relíquia falsa, torna-se em Lisboa vendilhão de relíquias acabadinhas de trazer da Terra Santa. Quando estas se esgotam, impinge frasquinhos de água da torneira como sendo do Jordão. Um cúmplice bem lhe diz: “Indecente!” Além da água do “Jordão”, Teodorico vende cacos do cântaro que Nossa Senhora levava à fonte, palhinhas do presépio, tabuinhas aplainadas por São José, ferraduras do burrinho que transportou a Sagrada Família para o Egipto. Catorze ferraduras, nem mais nem menos, do mesmo burrinho!
Eça de Queirós devia ter um profundo ódio à Igreja e à religião. A mim causa-me mais nojo tarados sexuais que vão ao Egipto e à Palestina (quando ainda não havia bombas e entifadas) e em vez de respirar o pó da História se metem num hotel com a primeira puta que encontram. São nojos, e o meu é este.
Escusam de me vir cá com “mas é uma personagem de sátira, não precisa de ser simpático, tem de ser é engraçado e interessante”. Teodorico não é simpático, nem engraçado, nem interessante. É uma besta. O gozo que me deu o livro foi torcer para que o Teodorico se desse mal, e de facto dá-se mal, e ainda se devia dar pior. Mas já lá vou.
Agora vamos ao que realmente me empolgou n’”A Relíquia” e me fez desejar que Eça tivesse escrito antes Fantasia.

A relíquia n’A Relíquia
Na Palestina, Teodorico tem um sonho. Não se percebe logo que é um sonho, truque usada por Eça para nos introduzir subitamente num relato surrealista que transporta os dois personagens, Raposo e o historiador alemão Topsius, seu companheiro de viagem, à fatídica Páscoa em que Jesus é crucificado.
E de repente é épico, é grandioso, é bíblico! É um narrador omnisciente disfarçado por trás do Raposo a contar-nos coisas que o ignorante bacharel de Coimbra jamais poderia saber, são personagens maiores do que a vida que parecem saídos d’O Senhor dos Anéis, é todo um mundo que nos é revelado como se fosse novo (de tão antigo) e que nos é estranho e intrigante como a mais moderna Fantasia. E que o Eça era capaz disto, não, eu não sabia. Durante páginas e páginas li, boquiaberta, e reconheci as influências de semelhantes obras estrangeiras do século dezanove com que aprendi a ler o que gosto.
Não é inocente que para a grandiosidade brilhar Raposo teve de se calar. E mesmo assim, em pleno Templo de Salomão na celebração da Páscoa, ainda consegue abrir a boca e dizer porcaria, que nada mais sai do meio daquelas barbas. Foi aqui que eu desejei que Eça tivesse antes escrito Fantasia, e abandonasse definitivamente o Portugalzinho dos diminutivozinhos, e as camisinhas da Mary, e as Adélias desta vida. Que desperdício!
O que me leva à célebre epígrafe com que o próprio Eça, em jeito de subtítulo, se achou obrigado a justificar esta obra: “Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia”. Não é a coberto de nenhum manto nem é diáfano, nem devia haver necessidade de justificar o surrealismo e o fantástico desta obra. O que me dói, porque prova que vem de longe esta mania da literatura portuguesa de que só o que é realista é que é bom, quando por outras paragens Horace Walpole já tinha publicado “O Castelo do Otranto” um século antes (1764).
É a este público de leitores de Fantasia e Fantástico que dedico esta crítica. A sátira do Eça já toda a gente conhece, tivemos de a estudar na escola, mas só por causa desta sequência na Terra Santa no tempo de Cristo vale a pena ler “A Relíquia”, é uma pena não ler a “A Relíquia”! Subitamente é outro escritor que se nos revela, é outro nível, é outra literatura. É a literatura que nos falta por todas as razões que aqui e aqui já debatemos. E por tudo isto foi uma agradável surpresa.

Terminado o sonho, lá voltamos ao Portugalzinho, à Lisboazinha, aos diminutivozinhos, aos jantarinhos da Titi, à reliquiazinha. À vidinha triste deste Raposo que arranja emprego na firma de um amigo de escola. (Lá está a cunhazinha.) Raposo não conseguiu a fortuna da Titi e por algum tempo parece emendar-se. Mas não se emenda. No fim do livro, ainda e sempre congemina as mentiras que devia ter dito mas não se lembrou de dizer quando as coisas deram para o torto. Raposo é incorrigível. Acabei com pena da Jesuína, a coitada com quem casou por interesse. Tirando esta, ninguém fica bem neste retrato excepto o tal douto Topsius, historiador alemão. Todas as personagens portuguesas são arrasadas. Excepto a Jesuína, poupada ao sarcasmo, talvez pela sua inocência.
Posto tudo isto, apesar do brilhantismo e do génio, começa-me a parecer que a sátira do Eça já denota a idade. É o destino de toda a boa sátira, trágico como a vida. Tem piada na altura, mas o tempo é implacável. Este já não é o mesmo Portugal, muitas ironias subtis já nos escapam, já não reconhecemos as personagens no nosso dia-a-dia. Ainda é divertido, mas cada vez menos. Vai chegar o dia em que a sátira precisará de ser explicada (como Gil Vicente tem de ser explicado para ser percebido), e esse será o dia em que a sátira morre. Triste fim mas bom sinal. Restará sempre deste livro, como de todo o realismo, um documento histórico que nos conta as verdades secretas de um Portugal extinto.
Mas por seu turno, o Fantástico não morre. Não importa que a sequência se passe na Páscoa de Cristo ou num qualquer mundo fantasioso sem tempo nem lugar. Fora do tempo e do espaço, a Fantasia vive na imaginação de quem se embrenha nela.
A cena em que Raposo encontra a árvore anuncia já que algo mágico vai acontecer muito em breve:

Rondando então em torno á Arvore d'Espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá… Se te levo commigo para um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das mãos postas, todas as caricias da oração—não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi—então fica-te ahi, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!… Mas se promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida decomposição dos seus tecidos—então vaes ter em Lisboa o macio agasalho d'uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram… Falla, monstro!»

O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d'estio, o presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A Arvore d'Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.^a D. Patrocinio—como uma promessa sufficiente de que, transportado para o oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d'essa hedionda senhora inchasse e se desfizesse… E isto foi, entre nós, n'esse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.

Isto não vai morrer nunca. É aqui que está a relíquia.






[Li a versão pós-Aborto porque o livro foi oferecido e a cavalo dado não se olha o dente. Publico a capa da blasfémia como advertência.]


sábado, 13 de janeiro de 2018

Fórum Beta Readers Portugal


O Fórum Beta Readers Portugal, ainda praticamente recém-criado, tem como objectivo ser uma plataforma de contacto entre escritores e beta readers.
Mas o que é um beta reader? Algo de quase desconhecido em Portugal, um beta reader é um primeiro leitor que lê e opina sobre um manuscrito no intuito de ajudar a melhorá-lo. O beta reading é muito praticado nos países anglo-saxónicos, e não apenas em regime de reciprocidade!, e até os nossos co-falantes brasileiros já lhe descobriram os benefícios. Aqui entre nós, quando procurei, não havia nada. Não existe o hábito, não se conhece a utilidade, não se consegue encontrar. O Fórum Beta Readers Portugal foi criado para preencher essa lacuna.
Nas palavras do fórum, "beta-readers são leitores e criticam o conteúdo da obra. Avaliam personagens e descrições, cenários e diálogos. Apreciam a criatividade, os pontos de vista e o encadeamento de ideias. Procuram buracos na intriga, coisas que não façam sentido e mostram que emoções sentem durante a leitura".
E não, "o melhor amigo, a mãe e o namorado não são bons beta-readers, porque gostam demasiado do autor e não lhe vão criticar a obra de forma objetiva". Ponto muito importante!
Outro ponto importantíssimo que é preciso desmistificar é que um beta reader não é um corrector gramatical e ortográfico. Muitas pessoas têm receio de que o escritor esteja à espera de um revisor! Não é esse o papel de um beta reader. Citando novamente o fórum, "não é suposto um beta-reader corrigir gramática e ortografia e reescrever passagens do texto. Isso é o trabalho de um revisor de texto".
Precisamente. Um bom beta reader critica, no sentido neutro da palavra crítica (que pode ser positiva ou negativa mas sempre fundamentada). Deve ser alguém que gosta de ler e de opinar e de explicar porque é que opina. Dizer "gosto" ou não gosto" ou, pior, não dizer nada, não ajuda o autor. O que ajuda é a opinião honesta e fundamentada. Neste caso, preferencialmente, e se possível, a opinião deve sempre ser construtiva. Um beta reader não lê para “dizer mal”.
Mas também não é preciso ter um curso em Literaturas e Linguísticas para comentar um texto. Esse é outro mito. Um bom beta reader reage e explica porque é que determinada história (ou passagem ou parágrafo ou frase) não funcionam para ele. Porque é que as acções de uma personagem lhe parecem incoerentes. Porque é que o enredo lhe parece confuso ou pouco credível. E porque tudo isto é subjectivo, é bom que o beta reader tenha um mínimo de simpatia pelo género que se propõe ler. De outra forma, é um sacrifício para o beta reader e de pouca valia para o autor, senão mesmo contraproducente.
Por exemplo, o que é que importa ao George Lucas que eu ache o Star Wars insuportável e infantil? Nada. Eu não sou o público alvo do Star Wars. A minha opinião é irrelevante. Como beta reader, jamais me ofereceria para ler um manuscrito do Star Wars. Embora pudesse opinar e explicar porque é que não gosto, de certeza que as minhas opiniões e explicações são exactamente o contrário do que os fãs pensam da saga.
Daí a importância de diferentes beta readers para diferentes géneros, e de uma plataforma onde os encontrar. A maioria dos beta readers são outros autores, e um regime de reciprocidade tem grandes vantagens em termos de disponibilidade, empenho e dedicação. Mas um bom leitor pode ser um excelente beta reader.
Para quem ouve isto tudo e pensa "trabalho", bem, não digo que não dê, mas também existem os benefícios:
Do ponto de vista do escritor, não há melhor maneira de melhorar o próprio trabalho do que analisar o trabalho de outros. Não sou eu que o digo, são pessoas com décadas de experiência em beta reading. Mas confirmo inteiramente.
Do ponto de vista do leitor também é muito gratificante. Ler (e até influenciar) uma obra por publicar num género de que se goste, não é trabalho: é prazer.
Para as pessoas que se interessam pela escrita e pela leitura, fica o link. Para visitar e divulgar. E talvez, quem sabe, participar? Só se perde o que fica por experimentar.

Fórum Beta Readers Portugal