Quando comecei a ver a série “Sobrenatural” (original “Supernatural”), há mais anos de que me lembro e ainda na RTP2 (que aparentemente já não tem dinheiro para comprar o resto), os primeiros episódios levaram-me a crer que ia ser uma série dramática. Dois irmãos são atormentados por uma tragédia de infância, quando perdem a mãe, queimada viva, no tecto, por um demónio. Filhos de um caçador de monstros, dos dois irmãos apenas Dean (Jensen Ackles) aceita continuar a tradição de família. O irmão mais novo, Sam (Jared Padalecki), rejeita-a, e tenta escapar-lhe, sem sucesso, pois também a sua namorada encontra o mesmo destino que vitimara a sua mãe, às mãos do mesmo demónio, que os persegue. Os dois irmãos reúnem-se no esforço de o derrotar.
Dean idolatra o pai. Sam ressente-se da vida de caçador que nunca lhe permitiu uma infância normal. O conflito acerca do pai, já desaparecido, confirmava a interacção dramática entre os dois irmãos.
Devo ter sido das pessoas mais desgostadas ao perceber que rapidamente a série seguiu o caminho mais fácil: dois energúmenos a caçar monstros. Até com os personagens fiquei decepcionada. A princípio, Sam era o inteligente, o rapaz universitário, e Dean era o bronco. Com o desenvolver das temporadas, Sam torna-se quase tão bronco como o irmão… e Dean continua bronco. Em suma, ficam iguais. As companhias também não são melhores, a um ponto que gera inverosimilhança: os caçadores que aparecem em “Sobrenatural” não têm uma educação formal (o único que frequenta a universidade até é Sam), mas um homem vulgar como Bobby (Jim Beaver), dono de um ferro velho e recrutado para a profissão já em idade adulta, mostra-se subitamente versado em latim e outras linguagens e códigos obscuros! Possui mesmo uma biblioteca de fazer inveja a qualquer mestre do oculto. Como se diz na série, “seriously?”…
Continuei sempre a ver, pela vertente do entretenimento acéfalo, e pelos monstros. Duas ou três temporadas disto. Só pela quarta temporada é que as coisas começam a aquecer. Não sei se finalmente deram rédea solta aos autores, ou se a série se encontrava em sério risco de ser cancelada por se encontrar esgotada a fórmula e não havia alternativa senão arriscar por caminhos mais ousados.
Temporada cinco: supremo apocalipse
Ainda bem que o fizeram, porque é aqui que o enredo se adensa. Esta é a insuperável quinta temporada, alucinante, vertiginosa, escatológica, que abre literalmente as portas do Inferno! Os dois irmãos, durante este tempo todo, nem desconfiavam da sua importância. Sam, em pequeno, bebeu sangue do demónio Azazel, porque Sam está “marcado”. Sam e Dean estão destinados a desempenhar um papel cósmico: são eles que, querendo ou não, vão despoletar o Apocalipse.
Se os irmãos Winchester estão habituados a lidar com demónios, que são maus, agora começam também a lidar também com anjos, que não são melhores e querem cumprir as profecias bíblicas ao pormenor. Lúcifer e Miguel (o arcanjo) vão literalmente defrontar-se no Armagedão, usando por receptáculos os corpos de Sam e Dean, para o que estes têm de dar o seu consentimento. (Lúcifer, em "Sobrenatural", ao contrário da crença geral, sendo um anjo, não pode possuir um corpo sem consentimento do ocupante.) Sam e Dean têm de consentir (nem que seja à força) e os anjos têm as suas sinistras maneiras de os “convencer”. Serafins, querubins, assediam-nos. Lúcifer, liberto do Inferno, assedia-os. Não existe alternativa senão travar o Apocalipse e mandar Lúcifer de volta para o Inferno.
Os irmãos têm a ajuda do confuso anjo Castiel (Misha Collins)… Que merece mais algumas palavras. Não me recordo exactamente de quando Castiel entra na série mas julgo que terá sido ainda na temporada anterior (a quarta), tentando convencer Sam e Dean a impedirem os eventos conducentes à libertação de Lúcifer. O que acaba por acontecer, involuntariamente, pois a informação que os irmãos detêm está errada e são manipulados a quebrar o último selo antes do Apocalipse. Castiel é apenas um anjo, fervoroso, fiel, que desconhece o livre arbítrio mas sofre de dilemas existenciais. Acontece que Deus se ausentou do Céu, ninguém sabe onde Ele pára, e ninguém sabe o que fazer excepto continuar com o plano bíblico. Castiel começa a agir pela sua própria cabeça, pela primeira vez, e ao ajudar os dois irmãos torna-se alvo da ira dos seus superiores, serafins e querubins. Castiel, apenas “um anjo do senhor” não passa de um zé-ninguém na hierarquia celestial. Podia ter sido imediatamente fulminado, se lhe prestassem atenção, mas subestimam-no, como subestimam aos irmãos Winchester. Grande erro! E se trabalham em equipa, erro colossal! Não é por nada que na temporada seguinte o demónio Crowley pergunta retoricamente “mas serei o único que não subestima aqueles dois pesadelos vestidos de ganga?!” Crowley sabe bem do que a casa gasta.
Crowley, o detestável/adorável demónio
É exactamente o demónio Crowley (uma impagável interpretação de Mark Sheppard) quem se torna um inesperado aliado dos irmãos Winchester na sua tentativa de derrotar Lúcifer. O demónio Crowley, igualmente um zé-ninguém da hierarquia infernal, um diabeco cuja ocupação é estabelecer pactos em encruzilhadas, com um beijo na boca (homem ou mulher, o beijo é o mesmo, aliás, um dos atractivos da série é perceber qual é exactamente a inclinação sexual de Crowley, nada fácil de detectar!), descobre que a intenção do
big boss (Lúcifer), ao ser libertado, é destruir todos os demónios criados desde o seu aprisionamento, que este abomina visceralmente. (Lúcifer, em “Sobrenatural”, não é um diabo de pés de cabra, mas o anjo, caído e condenado ao Inferno; condenado ao inferno, mas um anjo ainda assim). Crowley, sem nunca fazer parte da “equipa”, não deixa de ser um elemento essencial, porque nada mais lhe importa do que meter Lúcifer de volta no buraco. Neste momento de tudo por tudo, os irmãos Winchester, anjos e demónios são aliados.
É desta forma que Sam e Dean, antes limitados ao obscuro conhecimento enciclopédico e buscas online e ao armamento improvisado de balas de ferro e de sal, começam a receber informação e ajuda sobrenatural do Céu e do Inferno. Com tais personagens, a série tinha de se tornar transcendente.
É nesta temporada que acontece o único episódio que causa arrepios. Lúcifer, liberto do Inferno, precisa de um receptáculo. Encontra-o num homem amargurado que tinha perdido a mulher e o filho bebé num assalto. Sitiando a sua presa, com visões fantasmagóricas e sonhos (o que consiste, na concepção medieval, na obsessão que precede a possessão) Lúcifer alimenta-lhe a raiva e o desespero até obter o seu consentimento para lhe possuir o corpo, prometendo vingança. Um grande papel de Mark Pellegrino (que já tinha sido o Jacob de “Lost”) e momentos dignos de um filme de terror.
Seriously!
A partir daqui, Lúcifer começa a perseguir o seu verdadeiro receptáculo, Sam, que vai defrontar Dean, possuído pelo arcanjo Miguel, na batalha do Armagedão. Nenhum dos irmãos quer ouvir falar em tal coisa! Descobrem que o feitiço para reabrir a jaula de Lúcifer (que involuntariamente tinham aberto), passa por recolher os quatro anéis dos quatro cavaleiros do Apocalipse: a Guerra, a Pestilência, a Fome, e a Morte. Vivem-se os tempos do fim e os quatro cavaleiros já andam no mundo. Sam e Dean procuram-nos e acabam por encontrá-los. Todas as prestações dos actores convidados que interpretam os Cavaleiros são formidáveis, mas é impossível não salientar uma.
Um dos melhores episódios de “Sobrenatural”, senão um dos melhores episódios de todas as séries de sempre, a lembrar o “filme sério”, é aquele em que Dean se encontra com a Morte numa pizzaria.
Dean encontra a Morte numa pizzaria
A Morte, um tipo alto, de sobretudo preto, de aspecto sinistro mas indistinto entre um agente funerário, um chefe da Máfia ou um caixeiro viajante, mas um fulano civilizado e inteligente, tem com Dean uma soberba conversa filosófica, enquanto come pizza, em que afirma: “Tudo começa e tudo acaba, menos eu. Um dia, Deus, também, será ceifado”. Ora, porque é que isto (e muitas outras blasfémias que aparecem na temporada cinco) não ocasionou uma verdadeira onda de fanatismo dos “jesus lovers” a exigir que "Sobrenatural" fosse tirado do ar? Muito simples. Porque "Sobrenatural" tem dois tipos de fãs: os que não percebem, e os que não se interessam.
Da mesma forma, Deus também aparece na quinta temporada, como personagem, muito disfarçadamente, mas não vou dizer mais do que isto. Deixo apenas a mesma pista oferecida pelo jardineiro do Céu a Sam e Dean, quando Dean e Sam morrem e vão para o Céu (mas voltam), de que Deus está na Terra. Ele está lá, é uma questão de o procurar.
(Este é também um dos melhores episódios da série, numa sequência de muitos. Sam e Dean, no Céu, a fugir, a pé, de anjos! E conseguem! Com a ajuda do jardineiro, o único que ainda está em contacto com o Patrão. Existe aqui também uma leitura política, para além da leitura religiosa ortodoxa: Deus já não fala com a arrogante hierarquia do Céu, mas fala com o mais pequenino, o jardineiro; da mesma forma, Deus intervém ao ajudar os pobres de espírito, Sam e Dean. Deus abandona os grandes mas protege os fracos. Nada disto é acéfalo e a mensagem está lá, quer se queira acreditar que é religiosa ou apenas política, para quem a quiser entender.)
“Sobrenatural” é por isso uma série com muitos níveis de interpretação: uma série de acção com monstros, uma série de acção com humor, uma série de acção com humor muito inteligente, político e actual (mas já não atingido pela maioria), uma série de acção com humor e questões filosóficas (ainda menos atingida apesar da simplicidade da abordagem).
Não sem sacrifício, Sam e Dean derrotam Lúcifer, os anjos todos, serafins e querubins e arcanjos, anulam as profecias bíblicas, e impedem o Apocalipse!
Temporada seis: a desbunda continua
Quando terminou a temporada cinco, fiquei perfeitamente convencida de que era o fim da série. Foi de facto uma grande surpresa quando descobri uma temporada seis. E tive medo. Tive muito medo que após uma temporada tão espectacular não fosse possível fazer melhor e que talvez não fosse boa ideia continuar. Comecei a ver na expectativa de que ia ficar desiludida.
Não fiquei desiludida. Antes pelo contrário! Ainda estou de boca aberta pelo nível de qualidade que foi mantido! Depois da temporada cinco (soberba) os autores sabiam que já podiam fazer tudo o que lhes apetecesse. Já não havia nada a provar. A temporada seis continua a abordagem da guerra no Céu, o anjo Castiel toma algumas más decisões, o demónio Crowley é mais engraçado do que nunca (uma das personagens mais marcantes da série que perderia muito se ele desaparecesse), e o resto é uma grande desbunda que me fez rir algumas vezes.
Castiel, promovido a manda-chuva do Céu, estabelece um acordo com o novo rei do Inferno, Crowley. Não acaba bem.
Saliento o episódio 15, em que Sam e Dean são transportados para uma realidade alternativa… que é a nossa, em que a vida deles é uma série de televisão. Hilariante! Confesso que adoro todo este tipo de interacção surreal entre personagens reais e fictícias. Para não variar, os fãs da série dividiram-se. Muitos adoraram, muitos detestaram. (Como eu dizia acima, não é para todos.) A vertente filosófica gira agora em torno das almas. Diz um anjo, inimigo de Castiel (não esquecer a guerra pós-apocalíptica no Céu) que os persegue até esta realidade, a um aterrorizado Misha Collins a fazer o papel de si próprio: “Como é que suportam viver aqui, sem Deus, sem alma, sem nada superior a vós? Matar-te é um favor que te faço!”, e mata mesmo. E não deixa de ter razão.
Misha Collins interpreta o actor Misha Collins nos bastidores da série "Sobrenatural" de uma realidade alternativa em que Misha Collins interpreta o anjo Castiel
Sam regressa do inferno mas regressa sem alma. É curiosa a interpretação filosófica com que é definida a alma, porque não o torna falho de consciência, antes o transforma em algo mais semelhante a um robot para quem os fins justificam os meios, não para seu proveito pessoal mas porque está “programado” para caçar monstros nem que tenha de matar os inocentes que se metam à frente… Falta-lhe a compaixão, mas não é por motivos egoístas que age (como um sociopata); é o “exterminador implacável” que tem uma missão a executar sem sentimentos a inibi-lo. Interessante definição de alma, à parte as controvérsias.
“Sobrenatural” tornou-se uma das minhas séries preferidas. Sei sempre que vou passar um bom bocado, cheio de humor inteligente que me diverte e de questões filosóficas que me fazem pensar. Lamento que a genialidade de “Sobrenatural” não seja reconhecida e que a série seja encarada apenas pela vertente do entretenimento pouco sério: fazer uma série aparentemente tão simples, tão fácil de absorver, e ao mesmo tempo tão profunda, não é trabalho fácil nem para todos.
Manter a qualidade, após a suprema temporada cinco, ainda menos. Posso apenas desejar que a série, que vai já na temporada oito, saiba não esgotar as ideias e terminar no momento certo, nem antes nem depois. Enquanto isso, vou ser fã.
Seriously!