"O Conde de Monte Cristo" é uma história que conheço desde infância, até porque uma das suas adaptações à televisão foi filmada em parte na minha rua, o que ainda me aguçou mais a curiosidade, mas a leitura da obra propriamente dita foi sendo constantemente adiada. Até ao dia, mais vale tarde do que nunca, em que saquei o livro do Projecto Gutenberg. É um tradução em inglês, e tão difícil de ler que só se pode concluir que o francês original é soberbo.
Por esta razão, as citações que porventura venha a fazer, supremo sacrilégio, serão em inglês.
A história é sobejamente conhecida mas vale a pena fazer um resumo. Edmond Dantes é um jovem promissor acabado de ser promovido a capitão do navio mercante Faraó, onde era, até então, imediato. Ao desembarcar em Marselha, onde mora com o velho pai, a sua primeira preocupação é visitá-lo, para contar as boas notícias, e de seguida vai procurar a jovem catalã Mercedes, com quem pretende casar nos próximos dias. Tudo corre bem para Edmond Dantes e o futuro parece sorridente.
Senão pela inveja e pelo ciúme, que congeminaram a sua desgraça. Danglars, o contabilista do navio, odeia o jovem capitão. Caderousse, o seu vizinho, rói-se de inveja do seu sucesso. Fernand Mondego, talvez o que mais razão tem para odiar Edmond, é primo de Mercedes e tem por ela uma paixão avassaladora. Uma vez que Mercedes não o corresponde, tudo faria para afastar o seu rival. São estes três que conspiram uma denúncia anónima, implicando Edmond Dantes numa conspiração bonapartista (da qual é inocente). Em sequência da acusação, no próprio dia do feliz casamento, Edmond Dantes é preso, e levado perante o procurador Villefort. Este condena-o, embora saiba que é inocente, pois a carta em poder Edmond coloca em risco o pai do próprio Villefort, bonapartista ferrenho numa altura em que Napoleão está no exílio.
Por este motivo, Villefort "junta-se" ao trio de conspiradores, e prende Edmond Dantes numa masmorra do terrível Castelo d'If, destinado a presos políticos, onde este permanecerá 14 anos, sem direito a julgamento nem sentença, e ignorante dos motivos que o condenaram.
É no cárcere que conhece outro prisioneiro político, o fascinante e erudito abade Faria, que lhe ensina tudo o que Dantes jamais aprendera, e lhe fala do enorme tesouro escondido dos Spada, de que conhece a localização na insuspeita ilha de Monte Cristo, e a ensina a Edmond. O abade Faria nunca verá o seu mirabolante tesouro, porque entretanto morre na prisão, e acaba por ser essa morte a libertação de Dantes, pois, numa fuga espectacular, e em completo desespero, toma o lugar do morto dentro da sua mortalha e assim é lançado ao mar.
Edmond Dantes encontra o fabuloso tesouro dos Spada e torna-se o Conde de Monte Cristo. Quando regressa a Marselha, apercebe-se de que o seu pobre pai morreu de fome. A sua noiva, Mercedes, depois de anos à sua espera, tinha acabado por ceder à vontade do primo e com ele se casou, sendo agora a Condessa de Morcef. Danglars é barão e um rico banqueiro. Villefort foi promovido na sua carreira até se tornar procurador do Rei. De Edmond Dantes, o infeliz e inocente prisioneiro, já ninguém se lembra. A partir daí, ninguém escapará da sua implacável e maquiavélica vingança. Danglars, Caderousse, Fernand, e Villefort, todos terão o que merecem.
Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais cativantes e poderosas de todos os tempos, e tão relevante que ainda hoje serve de inspiração, não fosse o seu tema tão universal e primitivo como a vingança. [Por exemplo, em "Prision Break", num dos episódios em que Michael Scofield se encontra na prisão sul-americana de Sona, este contempla a hipótese da evasão segundo o "método Dantes": fazer-se passar por morto. Mas os guardas, conhecendo ou não a obra de Dumas, certificam-se de dar uns tiros aos cadáveres antes de estes saírem da prisão. Scofield abandona o plano, mas a sombra de Dantes permanece.]
Comentarei as partes que achei mais curiosas nesta obra impregnada do Romantismo da época em que foi escrita. Para começar, esse mesmo Romantismo, tão agradável mas ao mesmo tempo tão irrealista, prova-nos que o leitor do século XX (e muito mais o do século XXI), já não se satisfaz sem uma análise psicológica das personagens. E depois há aqueles maneirismos que na altura eram altamente vanguardistas mas que hoje me fazem ranger os dentes. Diz o narrador, assim no meio da narrativa: "Deixemos Madame Fulana de Tal entregue ao seu boudoir e penetremos na sala de Monsieur de Sicrano, já antes apresentada ao leitor..." Ora, talvez seja de uma cultura demasiadamente formatada pela linguagem cinematográfica, mas a verdade é que para o leitor se acaba ali toda a ilusão em que tão confortavelmente estava instalado. Ou, como se diria noutras andanças, "I want to believe". Não quero narradores a lembrarem-me que estou a ler um livro. Para a realidade tenho o telejornal, obrigada.
Compreende-se, portanto, sob um prisma totalmente novo, este vanguardismo Romântico, a cruzar-se com uma certa linguagem teatral: não tinham telejornal a estragar tudo.
Como eram ingénuos esses tempos, em que Dumas afirma que a carruagem de Monte Cristo atinge a velocidade de "um estonteante meteoro"! Seria quanto, 20, 30km/hora? Era puxada por chitas? Nem por isso, apenas quatro cavalos. Isto de fazer metáforas com a tecnologia, principalmente nos tempos que correm, pode sair muito perigoso.
Mas este era o século XIX, e Dumas não fugiu ao seu século, nem o leitor deste clássico tal deve esperar. Não é o estilo, mas a obra, o que se tornou imortal. Estava lá, em Edmond Dantes, o que se revisita em "A Fuga de Alcatraz" e "Prison Break", e tudo o resto o que há-de vir.
Passarei, pois, às surpresas e reflexões que me inspiraram a sua leitura.
A história de Rita e Carlini
Antes ainda de comentar a história de Edmond Dantes propriamente dita, não consigo evitar referir esta "história dentro da história", que por lá aparece de modo algo surreal. Aqui, Dumas foi verdadeiramente genial, porque até o leitor moderno se questiona se a história de Rita e Carlini, que o mordomo de hotel conta a Albert de Morcef e Franz D'Epinay para os convencer da existência dos bandidos de Roma, é de facto "real", ou duplamente ficcional: uma ficção inventada pelo próprio Monte Cristo para melhor exercer a sua terrível vingança. Nunca se chega a descobrir. O que é inegável é que Dumas a queria contar, a esta pequena história, e o fez de modo bastante habilidoso.
Nem de propósito, ainda há bem pouco tempo comentava com alguém que a violação, como tema, não era coisa de que o Romantismo gostasse, e que a donzela nunca chegava a ser violada porque entretanto o herói aparecia para a salvar. Esqueci-me da história de Rita e Carlini. Rita era namorada do bandido Carlini, mas por azares desastrosos foi parar às garras do chefe deste, Cucumetto, que a raptou, violou, pediu ao pai dela resgate pela sua vida, e se preparava para a entregar, às sortes, ao resto do bando. O facto de Carlini ser um deles não bastou para intervir de outra forma. (Não há honra entre ladrões.) Carlini, vendo-se impotente para impedir os acontecimentos, aproveita o fato de a rapariga ter desmaiado para a matar. E, assim, a "salva". Ou, pelo menos, não conseguindo salvar a sua honra, consegue impedir que a desonrem mais. Quando chega o pai de Rita com o resgate, e encontra morta a sua filha, junto do homem que a chorava, e que a matara, justifica Carlini: "Cucumetto violou a vossa filha. Eu amava-a, e por isso a matei, para não servir de diversão ao bando inteiro. Agora, se fiz mal, vingai-a." E Carlini oferece ao velho pai o próprio punhal com que tinha morto a sua filha. O que é que este faz? Diz-lhe que fez bem, e ajuda-o a enterrar o corpo. De seguida, para isto tudo não parecer demasiado grotesco, o pai enforca-se numa árvore junto à sepultura da filha.
De alguma forma, eu acabo por ter razão. O Romantismo não sabe abordar o tema. Isso são contas para rosários do realismo do século XX, e se calhar só depois da chamada "libertação feminina". Repare-se que enquanto tudo isto acontecia, a vítima está desmaiada. Não tem vontade nem sequer uma palavra a dizer. É apenas uma criatura passiva, entregue aos desígnios dos homens que a protegem: o pai e o futuro marido. São eles que decidem, é a eles que parece importar a violação. A vítima é segunda vez violentada, nesta perfeita anulação do seu "ser".
Infelizmente, não é caso único nesta obra, espelho da mentalidade da época, e tratarei disso mais à frente.
In Vino Veritas
Algo para pensar:
"Drunk, if you like; so much the worse for those who fear wine, for it is because they have bad thoughts which they are afraid the liquor will extract from their hearts;" and Caderousse began to sing the two last lines of a song very popular at the time,--
'Tous les mechants sont beuveurs d'eau; C'est bien prouve par le deluge.' [*]
* "The wicked are great drinkers of water
As the flood proved once for all."
Os iníquos são grandes bebedores de água
Como o Dilúvio provou de uma vez por todas
Number 34 and Number 27
«A new governor arrived; it would have been too tedious to acquire the names of the prisoners; he learned their numbers instead. This horrible place contained fifty cells; their inhabitants were designated by the numbers of their cell, and the unhappy young man was no longer called Edmond Dantes--he was now number 34.»
Confesso não saber se Dumas foi o primeiro escritor a mencionar numa obra o horror da despersonalização do indivíduo e a sua transformação em mero número - mais tarde tão cara aos escritores de ficção científica do século XX, senão mesmo ainda mais cara aos inventores dos campos de concentração, que nada tinham de ficcional - mas não deixa de ser curioso encontrar aqui, já no Romantismo do século XIX, esta preocupação tão moderna.
É preciso ter sorte
Nas primeiras páginas de "O Conde de Monte Cristo" encontrei algumas das cenas mais comoventes que já li, mas esta em particular deu-me que pensar:
«"In two or three hours," thought Dantes, "the turnkey will enter my chamber, find the body of my poor friend, recognize it, seek for me in vain, and give the alarm. Then the tunnel will be discovered; the men who cast me into the sea and who must have heard the cry I uttered, will be questioned. Then boats filled with armed soldiers will pursue the wretched fugitive. The cannon will warn every one to refuse shelter to a man wandering about naked and famished. The police of Marseilles will be on the alert by land, whilst the governor pursues me by sea. I am cold, I am hungry. I have lost even the knife that saved me. O my God, I have suffered enough surely! Have pity on me, and do for me what I am unable to do for myself."»
Edmond Dantes tinha acabado de fugir de forma espectacular do seu cárcere, encontrava-se agora numa ilha deserta onde chegara a nado sob grande esforço, mas estava enfraquecido pela fome, e o seu aspecto de fugitivo seria suficiente para atrair sobre si fatais atenções. Nesse momento, volta-se para o Céu: "Ò meu Deus, eu já sofri certamente o suficiente. Tem pena de mim, e faz por mim o que não sou capaz de fazer por mim próprio." Dantes avista então no mar uma embarcação de contrabandistas que acaba por lhe fornecer um meio de escapar.
Esta singela ficção recordou-me de um facto que interessa muito a muita gente fazer por esquecer. O engenho não basta. Às vezes, é preciso mesmo ter sorte. Como Dantes, que avistou um barco.
Edmond Dantes apresentado como vampiro
Devo dizer que não esperava de todo esta descrição do Conde de Monte Cristo por Alexandre Dumas em que o autor, pelas palavras de uma personagem, o assemelha a um vampiro, nomeadamente Lord Ruthven, muito provavelmente o primeiro vampiro "romântico" precursor do mito do sedutor anti-herói bebedor de sangue como o conhecemos agora, por exemplo, através de Anne Rice. Ora vejam:
«"All I can say is," continued the countess, taking up the lorgnette, and directing it toward the box in question, "that the gentleman, whose history I am unable to furnish, seems to me as though he had just been dug up; he looks more like a corpse permitted by some friendly grave-digger to quit his tomb for a while, and revisit this earth of ours, than anything human. How ghastly pale he is!"
"Oh, he is always as colorless as you now see him," said Franz.
"Then you know him?" almost screamed the countess. "Oh, pray do, for heaven's sake, tell us all about--is he a vampire, or a resuscitated corpse, or what?"
"I fancy I have seen him before; and I even think he recognizes me."
"And I can well understand," said the countess, shrugging up her beautiful shoulders, as though an involuntary shudder passed through her veins, "that those who have once seen that man will never be likely to forget him." The sensation experienced by Franz was evidently not peculiar to himself; another, and wholly uninterested person, felt the same unaccountable awe and misgiving. "Well." inquired Franz, after the countess had a second time directed her lorgnette at the box, "what do you think of our opposite neighbor?"
"Why, that he is no other than Lord Ruthven himself in a living form."
This fresh allusion to Byron [*] drew a smile to Franz's countenance; although he could but allow that if anything was likely to induce belief in the existence of vampires, it would be the presence of such a man as the mysterious personage before him.
"I must positively find out who and what he is," said Franz, rising from his seat.
"No, no," cried the countess; "you must not leave me. I depend upon you to escort me home. Oh, indeed, I cannot permit you to go."
"Is it possible," whispered Franz, "that you entertain any fear?"
"I'll tell you," answered the countess. "Byron had the most perfect belief in the existence of vampires, and even assured me that he had seen them. The description he gave me perfectly corresponds with the features and character of the man before us. Oh, he is the exact personification of what I have been led to expect! The coal-black hair, large bright, glittering eyes, in which a wild, unearthly fire seems burning,--the same ghastly paleness. Then observe, too, that the woman with him is altogether unlike all others of her sex. She is a foreigner--a stranger. Nobody knows who she is, or where she comes from. No doubt she belongs to the same horrible race he does, and is, like himself, a dealer in magical arts."
Dumas, contudo, incorreu no erro da época de atribuir Lord Ruthven, isto é, a história "The Vampyre" (de que aqui já se falou), a Lord Byron, quando esta se veio a revelar de facto obra do amigo deste último, John Polidori, confusão que muita tinta fez correr nos meios literários.
Não deixa, no entanto, de ser curioso notar este facto, como a ficção se pode graciosamente cruzar de forma tão bem conseguida.
Valentine
Valentine é a típica heroína romântica: loira, pálida, inocente, apaixonadíssima pelo seu amado, obediente à família, pronta a tornar-se mais uma fada do lar, um anjinho para ser adorado, não uma mulher a sério e muito menos para levar a sério. É mais um exemplo de um "não-ser" em que um certo Romantismo era tão pródigo. Tal como todas as heroínas românticas, a esta não falta também a pincelada doentia (a bem da verdade, não estaria doente se a madrasta não lhe desse veneno todos os dias ao pequeno almoço). Quase morre, mas não morre, finge-se que morre, nem a sua morte é real. O que não é de estranhar, porque nenhuma Valentine é real. Nem nenhuma Valentine, nem nenhuma Rita, e certamente nenhuma Mercedes. A Mercedes, deixo-a para o fim.
Eugenie
«"Have you noticed the remarkable beauty of the young woman, M. Lucien?" inquired Eugenie.
"I really never met with one woman so ready to do justice to the charms of another as yourself," responded Lucien, raising his lorgnette to his eye. "A most lovely creature, upon my soul!" was his verdict.»
Depois de tudo isto, ninguém vai acreditar no que vou dizer a seguir, mas lede por vós mesmos. Ao contrário de tudo o que se podia esperar, Alexandre Dumas apresenta-nos uma lésbica! Uma lésbica, se bem que disfarçada, reconhecível apenas para os conhecedores (e especialmente "conhecedoras"), que contraria todas as outras personagens femininas.
A Eugenie, filha do barão Danglars, e grande "amiga" da sua jovem professora de música, Monte Cristo envolve no seu esquema preparando-lhe um casamento escandaloso com o seu meio-irmão. Mas sosseguem, o casamento nunca foi planeado para se concretizar de facto; era apenas um meio para atingir um fim. (Incesto é mais coisa do nosso Eça de Queirós.) Na verdade, Monte Cristo torna-se um protector de Eugenie e ajuda-a a realizar os seus maiores sonhos: fugir com a amiga e tornar-se uma artista.
Repare-se com que subtileza Dumas aborda o tema, tão explícito para nós, leitores modernos, e no entanto tão opaco (ou não?...) para os espíritos da época, nesta conversa entre Maximilian e Valentine. Diz ele:
"Ah, how good you are to say so, Valentine! You possess a quality which can never belong to Mademoiselle Danglars. It is that indefinable charm which is to a woman what perfume is to the flower and flavor to the fruit, for the beauty of either is not the only quality we seek."
Ao negar a Eugenie "o charme indefinível da mulher", Maximilian retira-lhe, assim, a feminilidade, e faz-nos questionar quais são as ideias de Dumas acerca da sua própria personagem.
E acrescenta Maximilian:
"No, Valentine, I assure you such is not the case. I was observing you both when you were walking in the garden, and, on my honor, without at all wishing to depreciate the beauty of Mademoiselle Danglars, I cannot understand how any man can really love her."
Nenhum homem a pode amar, diria Alexandre Dumas se pudesse exprimir o que pensava na altura, porque vê, nesta mulher, um homem. Interessante e curiosa análise do subconsciente da época.
«"She told me that she loved no one," said Valentine; "that she disliked the idea of being married; that she would infinitely prefer leading an independent and unfettered life; and that she almost wished her father might lose his fortune, that she might become an artist, like her friend, Mademoiselle Louise d'Armilly."
"Ah, you see"--
"Well, what does that prove?" asked Valentine.
"Nothing," replied Maximilian.
"Then why did you smile?"»
Maximilian sorri (mas não comenta com a inocente e pura e ingénua Valentine) porque se confirmam as suas suspeitas que Eugenie e Louise não são "apenas" amigas. Alexandre Dumas diz-nos isto neste sorriso de Maximilian, e depressa muda de assunto, para voltar a pôr os pombinhos a confessar mutuamente o seu amor conforme as normas morais da altura.
Mais tarde, quando Eugenie e Louise são apanhadas a meio da fuga, dormindo no mesmo quarto, na mesma cama, onde são surpreendidas pelo noivo da primeira, que se tornara também um fugitivo à justiça, é-nos dito que saem da estalagem envergonhadas sob os olhares de uma multidão. O que não se explica, jamais, é porque estão envergonhadas. A razão plausível para tal é que o noivo de Eugenie, um suposto príncipe italiano, não passa de um reles criminoso. Nada é revelado se a multidão também sabe que dormiam ambas na mesma cama. Tenho para mim que era por isso que as olhavam, mas Alexandre Dumas é inteligente e não o diz claramente. Afinal, não se quer chocar as Valentines desse tempo, que perante o escândalo não tocariam sequer no livro. Cabe aos Maximilians da época o sorriso esclarecido... e silencioso.
Mercedes
Mercedes, deixei-a para o fim porque nunca compreendi, e ainda hoje não compreendo, o que raio se passou naquele final. Mercedes não faz sentido. Julguei que ler o livro me esclareceria, mas fiquei na mesma.
Mercedes é descrita como uma mulher forte, corajosa e orgulhosa. Nada faz adivinhar que seja uma das tais criaturas passivas descritas acima, mais um "não-ser" igual às outras. E no entanto, quando Mercedes reconhece Edmond Dantes, o grande amor da sua vida, a quem julgava morto, na figura de Monte Cristo, porque é ela a única a reconhecê-lo de imediato, pela voz, é-nos dito, finge que de nada se apercebe.
Ora, estamos a falar de uma mulher tesa, espanhola, ainda por cima!, que acaba por casar com um homem que não ama porque foi também vítima da conspiração que destruiu o seu noivo, e de repente vê-o aparecer, ao fim de vinte anos, podre de rico, rodeado de todos os luxos, e ainda por cima acompanhado por uma rapariga com idade para ser sua filha, e não lhe faz uma cena?! Eu, que não sou espanhola, fazia-lhe uma peixeirada de que Edmond Dantes jamais se esqueceria: "Mas por onde andaste, desgraçado, que me abandonaste quase no altar?!" E se descobrisse todo o enredo, então, partia um vaso na cabeça do primo/marido, e de seguida enfeitava-lha com uma bela armação! Nem era preciso andarem Fernand e Edmond a desafiarem-se para duelos. Mercedes, se fosse mulher, tratava da saúde aos dois! E ainda por cima espanhola!
Em vez disto, que faz Mercedes? Resigna-se. Renuncia. Anula-se.
Na sua última conversa com Edmond, este ainda lhe pergunta se deseja algo dele. E o que responde? Que está velha. Que tem cabelos brancos. Que lhe pesam os anos. Claro que lhe pesam os anos. Uma mulher não pode esperar 14 anos que o homem que ama arranje maneira de fugir da prisão. Uma mulher, por imperativos biológicos, tem que se despachar. Porque é mesmo assim, não há volta a dar-lhe. Mas uma mulher não deixa de ser mulher, muito menos na presença de um amor tão mal resolvido. E era tão fácil para Dumas resolver isto de outra maneira. Bastava-lhe pôr Mercedes a dizer: "O tempo passou, e eu mudei, e se te amava dantes, agora já não te amo."
Je ne t'aime plus. Isto sim, era o que uma mulher diria. Se fosse o caso. Não parece que fosse o caso, e Dumas não soube resolver.
Dumas é um autor viril, e curioso, e intelectual, mas as mulheres são para ele um mistério. Tenta adivinhá-las, e falha. Dá-lhes voz, mas não falam. E quando falam, dizem disparates, como Haideé (a suposta escrava de Monte Cristo) que lhe declara o seu amor afirmando que o ama como a "um marido, um irmão, um pai". Como se tal coisa fosse possível.
Frued, ò divino, que falta fazias tu à literatura!