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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

(falta de) Literatura gótica em Portugal - 2ª parte



Continuando a analisar os temas em "A Literatura 'Negra' ou de Terror em Portugal (séculos XVIII e XIX)" de Maria Leonor Machado de Sousa (1978, Editora Novaera) .


O caso português

Nada expressa melhor o caso português do que a conclusão da própria autora: "As várias tendências literárias modernas, que se podem classificar de negras, não encontraram cultores em Portugal".
E: "O temperamento português inclina-se mais à contemplação lírica do que à acção dramática ou mesmo romântica. Neste facto se deve procurar a causa da escassez da ficção original, especialmente do tipo que o negro valorizou."

Não é assim tão linear. Depois de ler a tese da autora fico com a ideia de que poderá até ser muito complexo. Certo que os autores do século XIX não tiveram a fantasmagoria de Shakespeare em que se ir inspirar, antes tiveram a palhaçada de Gil Vicente [aliás, palhaçada e sátira parecem ser mesmo o mais perfeito produto nacional] mas não é completamente verdade quando se queixam:

A principal causa da escassez de romances góticos é a ausência de lendas nacionais, o que os nossos românticos lamentaram amargamente. Os castelos portugueses recordavam vitórias guerreiras dos primeiros tempos da nacionalidade e não casos amorosos.

Como se verá adiante. E as almas penadas? E as bruxas? E os lobisomens? E as damas-pé-de-cabra?!... Falo apenas do nacional. Não foi ao nacional, mas ao romeno, que Stoker foi buscar Drácula. Para mim, desculpas não aceitáveis. Basta pensar que o povo português andou em África, nos trópicos, nos índios do Brasil, entre canibalismo e religião tribal. Não foi Lovecraft inspirar-se no exótico? Tanto se inspirou no exótico que até usou os portugueses num enredo bastante cabeludo (literalmente cabeludo), porque nós, para Lovecraft, éramos exóticos!
Com estes gigantes a servir de comparação não há por onde os portugueses se chorarem. Não há desculpa. Haverá talvez outras condicionantes...

Sobre o que de facto se produziu de gótico/negro na altura (mas não muito sobrenatural), por escasso que fosse, a minha ignorância era tão imensa antes de ler a tese da autora que, com grande reconhecimento, lhe vou dar a palavra e intervir apenas quando se justificar o comentário.

Ao terminar o século XVIII, a literatura portuguesa resumia-se praticamente à poesia, que Bocage, José Anastácio da Cunha, a Marquesa de Alorna e, em Paris, Francisco Manuel do Nascimento cultivavam, um pouco já sob o influxo dos sentimentos que o Pré-Romantismo valorizava no resto da Europa. Toda a apertada vigilância de Pina Manique não conseguiu impedir que os ideais revolucionários da Franca penetrassem em Portugal, trazendo juntamente um eco da civilização e da cultura europeias.
Estava-se na época em que triunfavam, por toda a Europa, Young, Gray e Hervey, sobretudo através das versões desenvolvidas de Le Tourneur. A onda alcançou também Portugal, praticamente sem atraso.

Quero salientar a palavra "vigilância". Isto é, a censura, para quem não sabia que ela vem de longe, de longe... E, se abarcava os costumes, abarcava desde logo a literatura.
A censura voltará a ser mencionada acerca da tradução da novelística do século XIX.
Mas voltando aos primeiros anos do século XIX e à evolução natural do estilo em Portugal (ou a falta de evolução):

Quanto à literatura de ficção, o aspecto era confrangedor e espantava de modo particular os visitantes estrangeiros. (...)
Tentando suprir essa deficiência, autores como Bocage e Filinto fizeram também algumas traduções, mas ainda de histórias picarescas espanholas ou histórias francesas profundamente morais ou moralizadoras. (...)
Com esta misérrima produção se ia alimentando o público, enquanto a geração que viria a revolucionar a literatura portuguesa gastava no desterro as suas energias, numa série de periódicos, que, absorvidos pelas apaixonadas querelas políticas, pouca ou nenhuma atenção davam às novas correntes estéticas. (...)
Na infiltração lenta e censurada da literatura estrangeira em Portugal, alguma coisa nos foi chegando do gosto pelo negro, que vincou fortemente todo o romantismo, salientando-se por volta de 1840.
Pode parecer descabido o relevo que dei à poesia de inspiração melancólica sepulcral, num trabalho que foca uma literatura essencialmente de enredo. No entanto, se é verdade que os autores negros, quando também poetas, cultivaram em especial este tipo de poesia, denunciando assim, no conjunto da sua obra, uma atitude, uma psicologia, mais importante é esta relação no caso português.
A índole naturalmente melancólica dos portugueses era propícia a bem receber as novas tendências. "A poesia é tanto dos túmulos!", dizia Mendes Leal. Não podemos esquecer, também, que as primeiras três décadas do século XIX, em que o desenvolvimento literário, em Portugal, foi praticamente nulo, evitando amplo intercâmbio com a cultura de além-Pirinéus, foram causa de que recebêssemos simultaneamente Pré-Romantismo e Romantismo. O romântico português conheceu, sem transição, a literatura nocturna e sepulcral e a de evocações góticas: a meditação, reforçada por um temperamento saudoso, levou a encarar os tempos passados de um modo especialmente romântico, tendendo mais para um negro melancólico e suavemente triste do que para os lances arrepiantes da escola alemã, por exemplo. Desta combinação de tendências poéticas e romanescas resultou a quase completa ausência de novelas de aventuras tenebrosas (...)
Manifestando-se muito próximo do Realismo, a tendência para o negro seguiu, entre nós, principalmente a corrente social de Sue. É, de resto, esta corrente a que mais interesse literário tem para nós, pois influenciou o grande romancista do século XIX Camilo. No entanto, isto não quer dizer, de modo nenhum, que a Idade Média não atraiu os nossos românticos. Pelo contrário, o romântico português foi essencialmente medievalista, simplesmente essa tendência não se manifestou com grande força no aspecto que interessa a este trabalho. Foram góticos o teatro e a balada, mas não o romance, com excepção de Castilho, por vezes Herculano, e pouco mais.
A Idade Média que interessou aos nossos românticos foi, desde o início, fundamentalmente histórica notemos que o primeiro medievalista, Herculano, se preocupou em mostrá-la na sua verdade, ainda que prosaica, arrancando-lhe os ornatos estranhos com que a ignorância e o desinteresse de séculos a tinham encoberto.
O romântico português saudou na Idade Média os ideais, a altura, e não o tenebroso dos subterrâneos

Muita poesia se produziu sempre neste país!...

A literatura baladesca romântica em Portugal seguiu estas duas orientações: a tradicionalista, popularizante e a terrífica e macabra, de inspiração anglo-germânica, mas com um certo carácter 'nacionalizante', pois a acção é de preferência situada em castelos portugueses, e o cavaleiro nem sempre vai combater os mouros à Palestina, mas também em terras ibéricas.
A primeira corrente pouco interesse tem para este estudo: o ambiente da balada popular é geralmente risonho. Traços comuns à balada macabra surgem, por vezes, mas muito atenuados. É sobretudo o motivo da alma penada, 'toque' maravilhoso do remate da história. No entanto, a crença nas "almas do outro mundo", tão arreigada no povo, raro transparece nesta literatura (...)
Do mesmo modo, os poetas que os temas populares inspiram pouco relevo dão ao sobrenatural. Tratam principalmente as lendas das mouras encantadas ou por cujo amor se perderam nobres cavaleiros cristãos. As muitas baladas sobre as mouras encantadas pouco ou nada têm de negro (...)

 Quanto à tradução da novelística estrangeira:

A actividade dos tradutores portugueses, intensíssima durante o século XIX, pôs à disposição do público centenas de novelas, conhecidas, na maior parte, através do francês.

Mas não os melhores.

Nenhum critério presidia à escolha dos originais. (...) Dos grandes romancistas ingleses e franceses do Romantismo, só Walter Scott e Victor Hugo atravessaram as fronteiras (...) Um facto muito importante a considerar na actividade seleccionadora, se é que alguma havia, das novelas a traduzir, era a Censura. Para os rígidos puritanos a quem o cuidado de olhar pela moralidade pública estava confiado, tudo o que vinha de Paris cheirava a heresia e a escândalo. Ajudados pelos vizinhos espanhóis, ainda mais rígidos, e até pela opinião pública, o seu trabalho estava muito simplificado.

Voltamos à censura, a imposta e a auto-imposta, reflexo condicionado da primeira. Se Horace Walpole, como disse no post anterior, não queria que o tomassem por parolo, os escritores portugueses viam-se a braços com impedimentos mais graves: a impossibilidade de publicar o que queriam e como queriam, o que não devia condicionar pouco o que escreviam excepto se o único objectivo fosse escrever para a gaveta. Isto é importante. E ainda mais interessante:

Um facto importante a observar é que, voluntária ou acidentalmente, não são traduzidas as novelas em que intervém o sobrenatural

Um facto importante sem dúvida, para ser explicado para além do âmbito da literatura, por historiadores e sociólogos que clarifiquem o fenómeno.
Se o sobrenatural nem sequer era traduzido, muito menos provável seria que fosse escrito! E a ser escrito, e passado apenas entre amigos e conhecidos, e nunca publicado por qualquer editora, muito natural seria que acabasse por desaparecer. Se existiram infractores, não sabemos deles.

O teatro foi o domínio literário em que o gótico teve maior repercussão o gótico tanto na representação dos tempos medievais como apenas ao fazer desenrolar a acção no ambiente típico de ruínas, castelos, conventos ou subterrâneos.(...)

Aqui está algo de que eu não fazia a mais pequena ideia. Sempre havia qualquer coisa, e passava!

Quanto aos temas versados, dois sobressaem, pela frequência com que são tratados. Um vulgar na literatura gótica, é uma reminiscência medieval, da balada: o aparecimento do noivo ou marido, que se julga ter morrido. Despido de quase todos os adornos negros, foi este o assunto que Garrett escolheu para o seu drama-modelo, Frei Luiz de Sousa. O outro, tipicamente nacional, situa-se na época de D. Manuel I, quando da expulsão dos judeus, e é essencialmente os amores entre cristãos e judeus, aparecendo estes, quando homens, disfarçados de cavaleiros e ocultando, até à amada, a sua raça.
O drama gótico morreu, entre nós, embora surjam, de vez em quando, vagas reminiscências, como no poema dramático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, cena lúgubre e estranha, cujo verdadeiro significado é muito nebuloso.

"O Marinheiro", de Fernando Pessoa, foi daquelas obras que li com agradável surpresa. Onde Fernando Pessoa, apesar de "nebuloso" (como o é sempre), escreve uma peça que nos prende a respiração sem sabermos exactamente porquê. Lembra-me, em partes, "Huis clos", de Jean-Paul Sartre. Aproveito para recomendar, ambos, a quem não conhece. E aproveito para recomendar "O Marinheiro" especialmente a quem não gosta de Fernando Pessoa, na poesia. Para a tal "agradável surpresa"...
Não me espanta, portanto, ver mencionada a peça numa obra académica dedicada à literatura gótica.
Mas voltando ao tema:


É entre os muitos romances em verso escritos durante o Romatismo que aparece o único autêntico romance gótico português que encontrei Olinda, ou a abbadia de Cumnor-Place (1848), de Antonia Gertrudes Pusich. (...)
Traições, castelos, subterrâneos, ruínas, narcóticos, fugas acidentadas, salteadores, mortes, tempestades e até um espectro, nada falta a esta história.

Paremos por aqui! Romances escritos em verso?! Sim, leram bem. Romances escritos em verso. Parece que eram às golfadas, às catrefadas, aos magotes! (A autora apresenta vários e "interessantes" excertos.)
Que a alma nacional seja lírica é uma coisa! Que se escreva romances em verso é um abuso! Isso sim, merecia censura e chicotada!
Bem sei que foi pela balada que a tal poesia sepulcral europeia, assunto no post anterior, fez a sua incursão na temática gótica. Mas por esta altura os autores europeus já tinham aprendido a escrever narrativa, que é algo que aos portugueses ainda custa muito como se lhes arrancassem a pele. Então temos isto, esta aberração, digo eu, romances escritos em verso. Arrepia-me, acima de tudo, ler diálogos em verso. Daqueles que rimam. O que lhes retira, sem dó nem piedade, toda e qualquer verosimilhança com a realidade. Ora, isto, num romance que se quer de terror, que se quer credível, em que se quer fazer com que o leitor se convença de que aquilo está mesmo a acontecer... Pura e simplesmente não se faz! Imaginem, por exemplo, o Drácula de Stoker escrito em verso. Com rima. Em vez de um diário, que quase nos convence da autenticidade da coisa, a palavra "vampiro" a rimar com "suspiro".
Diria Mina:
E ao saber que é um vampiro...
Oh, horror! *suspiro*
E páro por aqui antes que alguém tenha ideias.

Mas para que não se pense que não há mesmo nada para se ler neste deserto, aqui ficam as excepções que me chamaram à atenção. Algumas já minhas conhecidas, outras não.

Quanto à novelística em prosa, temos a considerar o romance de inspiração antiga (medieval ou não) e a novela realista da escola de Sue. (...)
Isolando o romance de inspiração antiga, principalmente medieval, um nome sobressai Aires Pinto de Sousa de Mendonça e Menezes, autor de Ruy de Miranda e Duplessis e o seu castelão, ambos góticos. Este último tem menos interesse, porque o ambiente nos é estranho: Luis XI, um monstro de malvadez e insensibilidade, nada nos diz. Ruy de Miranda, cuja acção se desenrola na época trágica de Alcácer-Quibir, é um romance intenso.

Não percebo, confesso, o que a autora quer dizer com "um monstro de malvadez e insensibilidade, nada nos diz". A quem, aos portugueses? À literatura gótica? Ou não interessa para o estudo da autora? O contexto não é clarificador, mas achei a expressão curiosa. Nada nos diz mais do que "um monstro de malvadez e insensibilidade", por isso não percebi.
Fiquei curiosa quanto a este autor de que nunca tinha ouvido falar.

O sobrenatural tentou Herculano, que nos deu A Dama Pé-de-Cabra; em O Monge de Cister, é difícil delimitar os processos góticos. São várias as dívidas de Eurico à literatura de terror (...)
Mas o traço que dá a Herculano especial relevo no quadro geral da nossa ficção negra é o interesse com que ele foca as lutas interiores dos seus heróis, o negro psicológico, as tempestades de paixões exacerbadas, que arrastam Vasco ao crime e Eurico ao desespero. Nisto, Herculano é não só importante na literatura negra do século XIX, mas também como precursor das modernas tendências que estudam "os subterrâneos da alma".

Disse já que a corrente negra de maior projecção em Portugal foi a do romance social de Sue. (...)
Esta corrente é especialmente importante, porque nela surge Camilo, quase poderíamos dizer que essa corrente é Camilo. (...) em A Caveira e Anátema Camilo retoma, talvez inconscientemente, o tema das primeiras obras góticas os filhos expiam a culpa dos pais.

De 1914 a 1916 publicou Mário de Sá-Carneiro as suas novelas, nas quais surgem em profusão elementos de todas as fases da literatura de terror, desde o ambiente gótico e fantástico até ao negro mais moderno, o dos "arcanos da alma".

Estes já conhecia. Fiquei ainda mais curiosa quanto às obras que não li. Mas não quanto a Mário de Sá Carneiro. Aqui vou ter de discordar da autora e declarar que no século vinte já se escrevia terror a sério, terror com que nunca Mário de Sá Carneiro conseguirá rivalizar, e nem acredito que fosse essa a sua intenção, pelo que no meu entender nem o incluía aqui. Mas lá está, é por isso que a obra designa esta literatura como "negra", não forçosamente de terror. No século XX, perante um Lovecraft, já implica respeito falar de literatura de terror, pois as águas já estão mais do que divididas.
E chegamos ao século XX.
E começa o grande, verdadeiro deserto da literatura portuguesa no que toca a (e vou outra vez meter tudo no mesmo saco) literatura de terror, gótica, negra, sobrenatural.


O deserto português

Aqui há uns tempos, em conversa com alguém, cheguei à estupefacta conclusão que de toda a literatura portuguesa que li (e aqui falo muito especificamente do romance, que é o meu género de eleição), só gostei de três livros. Fiz um grande esforço de memória e não me consigo lembrar de mais. Foram eles "Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; "Eurico o Presbítero", de Alexandre Herculano; e o recente "A Voz dos Deuses", de João Aguiar. Os dois últimos, romances históricos. O primeiro, o romance Romântico em todo o seu exacerbado exagero.

[Quanto a "A Voz dos Deuses", de João Aguiar, li em idade demasiado jovem para tecer considerações sobre a qualidade literária mas foi algo que me marcou e impressionou, e se a qualidade literária não é isso não sei o que será. No fim do livro, tive o pressentimento de que ia acabar como o herói, e tudo fiz ao meu alcance para que o meu desfecho fosse diferente. Talvez seja sina lusitana. Não foi diferente, e eu até já sabia que não ia ser. Porque é sina. E aqui está outro tema que a literatura de terror pode aproveitar.]

Mas voltando ao tema, o que raio aconteceu à literatura portuguesa que uma leitora ávida como eu, que já li muito, que leio muito, que continuarei a ler muito, não consiga usar todos os dedos de uma só mão para contar o número de livros preferidos? Bem sei, e dirão, que prefiro literatura fantástica e/ou sobrenatural. Estrangeira. Com certeza, e daí?!
Onde é que está a literatura fantástica e/ou sobrenatural nacional? Não existe. Pois aqui é que tenho dificuldade em acreditar. Pelo que li da tese desta autora, e pelo que conheço desde existe internet, sempre existiu e sempre existirá, mas não chegou a ser publicada. Entretanto, no século XX, houve uma outra censura que eu já sou antiga o bastante para explicar.
Durante o século XX os escritores não faziam outra coisa senão escrever sobre vampiros. Como fez Zeca Afonso. Era este o exemplo de que eu falava no post anterior. São estes vampiros que fazem com que os escritores ficcionem sobre os outros vampiros, os que sugam sangue e que não existem.
Durante o século XX, dizia eu, a intelectualidade portuguesa tinha os vampiros à perna e não fazia outra coisa senão escrever sobre eles, contra o regime. Privilegiaram-se as obras políticas, as censuradas, as proibidas. Talvez não tenha surgido terror porque o terror existia de facto.
Isto, a nível da intelectualidade. Quanto ao povo, muito ignorante e analfabeto, contava histórias de lobisomens e almas penadas de tradição oral, mas o senhor prior não gostava dessas coisas e censurava, quando o senhor prior, embora no século XX, ainda tinha a mentalidade dos "iluminados" do século XVIII de que falei no post anterior (foi ao clero que "bateu" mais tarde, e como sempre, "bateu" atrasado). Neste ambiente de censura e tacanhez, aposto que um Lovecraft, ou um Silva, podia ter aparecido com um Chamamento de Katuh'lu debaixo do braço e mostrado a uma editora, que ninguém publicava aquilo. É que era mesmo assim: não publicavam.
Foi essa a pior censura que se passou no século XX em Portugal. A censura das editoras. Talvez o terror até passasse o crivo do lápis azul, mas não passava nos "intelectuais" das editoras. Monstros marinhos? Extraterrestres? Ó amigo, vá lá para casa e escreva alguma coisa de jeito, uma coisa anti-Salazar, mas que passe na Censura, que é o que as pessoas querem ler. E como eram as editoras a ditar o que as pessoas queriam ler, aconteceu que se chegou a este extremo de que algumas pessoas tenham de ler literatura estrangeira porque não gostam da portuguesa.

Foi como na música. (E lá voltamos sempre à música.) Enquanto foram as editoras a ditar o que as pessoas queriam ouvir lá tivemos o nacional cançonetismo (felizmente que a maioria de vocês que me lêem não sabe do que falo) e alguma música de intervenção à socapa, mas Deus nos livrasse de aparecerem aqui uns Rolling Stones (pouca vergonha!) ou uns Black Sabath (cruzes Credo!), porque isso eram coisas feias que os portugueses não queriam ouvir. Só depois do 25 de Abril começámos a ter direito ao punk, e finalmente lá apanhámos o comboio.
Na literatura, meus amigos, passou-se exactamente o mesmo. Alguém achava que algumas coisas eram "feias", como se diz às crianças, e que não eram para ser lidas. Se vamos ainda apanhar o comboio? Eu acredito que sim. Com a literatura, porque de mais difícil acesso do que a música, que passava na rádio pirata e era para todos, que se gravava na K7 e era para todos, com a literatura, dizia eu, só começámos a perceber o manancial de talento que vai para aí com a chegada da internet. Basta passar os olhos pelos blogs.


Há tanto tempo que eu queria escrever este post!

Agradeço encarecidamente à autora Maria Leonor Machado de Sousa, por me ter aberto os olhos para um mundo que me era desconhecido porque não é ensinado às massas, e agradeço ainda mais a quem me emprestou este exemplar de "A Literatura 'Negra' ou de Terror em Portugal (séculos XVIII e XIX)". A todos os que se interessam pelo tema e tiverem oportunidade de o lerem, e de estudarem, e de o aprenderem, aqui fica a especial recomendação.







quinta-feira, 15 de agosto de 2013

(falta de) Literatura gótica em Portugal - 1ª parte



"A Literatura 'Negra' ou de Terror em Portugal (séculos XVIII e XIX)" de Maria Leonor Machado de Sousa (1978, Editora Novaera) visa, citando a nota introdutória da obra completa, "dar uma melhor compreensão do género e a integração do caso português nas correntes da literatura europeia. Quanto à bibliografia do 'terror' português pré-romântico e romântico, foi possível, entretanto, acrescentar-lhe mais alguns títulos".
Li este livro, da autoria desta professora da Universidade Nova de Lisboa, na confessa expectativa de encontrar nomes e obras, portugueses, na categoria do gótico e/ou sobrenatural algures enterrados no que a (des)intelectualidade do século XX considera inferior e indigno de ser mencionado nas escolas. Infelizmente, nem enterrados existem, ou se existiram, de tão enterrados, desapareceram.
Como tudo nestas coisas do sobrenatural, não é por falta de provas que deixo de acreditar que existiram (porque é impossível não terem existido em Portugal quando existiram na Europa toda) mas essa discussão fica para mais à frente.
Descobri, mesmo assim, com a leitura deste livro (que li duas vezes e podia ter lido três por tantos e tão interessantes excertos que apresenta), vestígios de um outro país literário que não se ensina na escola dos Eças e dos Camões (e, temo bem, mais recentemente, dos Saramagos, de que felizmente consegui escapar-me a tempo). Descobri, por exemplo, os pormenores tétricos da cabeça mumificada na obra de Camilo Castelo Branco. E pensar que fui obrigada a estudar Camilo (não desgostei, mas não é isso que interessa agora) e passou-me ao lado exactamente o que me interessaria mais!
Mas não nos excitemos. Este pormenor tétrico de Camilo (a que, por outro lado, e bem, a recente série "Mistérios de Lisboa" soube dar o devido destaque) perde-se na moda maciça do romance social da época e em termos do sobrenatural/terror não chega a ser um ponto distante no horizonte que só nos espanta porque é de Camilo (onde não o esperávamos daquilo que dele se aprende na escola), e tão só.
O resto é um deserto. Fica a pergunta: é um deserto porque não havia nada, ou porque o que havia foi coberto de pó? Inclino-me para esta segunda hipótese.

Mas temos de começar pelo início. Não é possível compreender a literatura sobrenatural (ou gótica, ou de terror, ou 'negra', nas palavras da autora, e reservo-me o direito de, por agora, meter tudo no mesmo saco) sem perceber a época em que Horace Walpole decidiu escrever "O Castelo de Otranto" , em 1764 (ver este post e este), sob pseudónimo e recorrendo ao estratagema de o apresentar como a tradução de um manuscrito medieval. O que poderia levar um escritor a fazer tal coisa, perguntam os leitores do século XX e XXI? Não nos entra na cabeça porque a época passou. Em "A Literatura 'Negra' ou de Terror..." a autora exprime com maestria o ambiente que rodeou esta obra inicial e o encadeamento que surgiu dela. A todos os interessados na cultura (e literatura) gótica recomendo, por isso, e vivamente, a leitura de "A Literatura 'Negra' ou de Terror...", se lhe conseguirem pôr os olhos em cima (o meu exemplar foi emprestado e ao dono regressará). Mas se lhe conseguirem pôr os olhos em cima nunca mais verão o sobrenatural com os mesmos olhos. ;)
Curto e grosso e nas minhas palavras: era o século dezoito. O século das Luzes. O século da ciência "positiva" (como lhe chamavam, porque era moda). O século em que era moda não acreditar em nada, nem em Deus. Foi o século dos iluminados.
[É curioso como a palavra "iluminado" deu uma volta de 180 graus e é agora usada no sentido pejorativo excepto no seu conceito de iluminação mística se bem que de proveniência oriental. Os "iluminados" foram derrotados.]
No século iluminado da ciência e da máquina a vapor qualquer homem de intelecto que confessasse acreditar, ou ter simpatia, ou sequer interessar-se pela superstição e pelo sobrenatural era visto como... bem, um parolo. Toda a sua reputação de homem das luzes, de homem moderno, "positivo", arruinada. Horace Walpole, por não ser parolo, não quis ser parolo.
Claro que este extremismo não podia durar para sempre. A contra corrente de literatura de terror que se popularizou a partir do século seguinte bem o comprova. Digo "popularizou" porque o preconceito da elite intelectual manteve-se.
Manteve-se tanto, mas tanto, que ainda hoje a literatura e o cinema de terror são considerados pelas elites, as ditas cultas, produtos inferiores para consumo das massas.
Já começava a ser altura de se encarar a literatura de terror pelo que é, muitas vezes uma representação da realidade mais verídica, porque velada, do que qualquer romance "baseado em factos reais" que a elite cultural gosta de glorificar como supra sumo da obra cultural. Neste aspecto, estamos ainda culturalmente, em termos de literatura e cinema, ao nível da pintura realista: é bonito porque é natural. A nível literário, e cinematográfico, ainda não se dá o devido valor ao fantástico e ao surrealista. A elite cultural continua, como os iluminados do século dezoito, ao nível das naturezas mortas. Darei um bom exemplo na segunda parte.
Os espíritos fortes e científicos deste século das Luzes chegaram ao ponto de considerar que as obras de Shakespeare deviam ser amputadas das suas cenas sobrenaturais. Fantasmas e bruxas, tudo isso passaria de moda! Era desnecessário. Tivesse prevalecido esta moda e hoje teríamos "Hamlet" sem o fantasma e, mais provável igualmente, sem a célebre caveira.
A esta corrente reagiu com todo o vigor que lhe conhecemos a explosão emocional do Romantismo.
Mas não nos interessa aqui o Romantismo como um todo mas apenas a parte que nos toca.



Manifestações pré-românticas

Não começou, todavia, com Walpole. São tão importantes, estas manifestações pré-românticas, que tentarei resumir aqui (demasiado apressadamente, porém, porque a obra é tão rica como vasta) as frases fundamentais com que a autora estabelece os primórdios e a evolução da "poesia da noite e dos túmulos".
O Romantismo foi fundamentalmente uma atitude, uma atitude de reacção contra o convencionalismo que imperava em todas as esferas da vida; conhecia aquilo a que reagia, mas não tinha um rumo a seguir, lançou-se com entusiasmo nos vários e por vezes antagónicos caminhos (...) a título de manifestações pré-românticas. (...)
Esse interesse pelo povo, que levou o Romantismo à compreensão da Idade Média a sua descoberta fundamental , teve realmente consequências que os coleccionadores de baladas não podiam prever (...)
A reacção fez-se no sentido de uma maior sinceridade, buscando-se uma aproximação da natureza: da natureza humana, revelando as manifestações artísticas do povo, não limitado pela civilização; da natureza ambiente, substituindo o bucolismo convencional por descrições fiéis, revelando-a como é na verdade, bela ou árida, alegre ou lúgubre, calma ou aterradora. (...)
A poesia nocturna é ainda um regresso à natureza; a  uma natureza especial, propícia à melancolia, é um desenvolvimento dos quadros outonais e principalmente de Inverno da poesia puramente descritiva.

A "fusão desta corrente melancólica e nocturna" deu-se com a outra, "de inspiração sepulcral, cultivada por poetas pregadores, que apontam aos homens a visão do túmulo, onde tudo acaba". O encontro destas duas correntes vai dar início à chamada "poesia da noite e dos túmulos",

que durante quase um século apresentou a uma Europa melancólica os quadros lúgubres de cemitérios, cadáveres e esqueletos. Mas o elemento macabro não é uma novidade pré-romântica. O Cristianismo, lembrando ao homem "que é pó, e em pó se há-de tornar", guia-lhe o pensamento para a contemplação principalmente da caveira, que os eremitas levavam para as suas grutas, para que lhes lembrasse como são fugazes os dons humanos. (...) O século XV é o século das danças macabras na arte e dos temas macabros na poesia. É à mesma inspiração que se ligam as cenas do cemitério, no quinto acto de Hamlet, onde este assunto toma a forma duradoira que o levaria aos tempos modernos.
Com o advento da Renascença, a literatura sepulcral desapareceu, conservando todavia o Cristianismo o espírito que a ela levara. (...)
Passado o deslumbramento da Renascença, a meditação sobre a morte vai ressurgindo. (...)
Sendo esta meditação sobre a morte um fenómeno europeu, porque é em Inglaterra que surge e principalmente se desenvolve a poesia tumular? Parece que se deve procurar a razão no Puritanismo do século XVII, que foi realmente uma força em Inglaterra e sobretudo na Escócia, levando os homens a uma concepção lúgubre da vida e a uma meditação constante sobre a morte, meditação que, nesta poesia (geralmente escrita por padres, em contacto directo com a doença e a morte), é muitas vezes acompanhada de descrições muito realistas, que degeneram no macabro.
 
Agora a parte que nos interessa:

Ao fugir para os lugares abandonados pelos homens, o poeta melancólico encontrou o cenário conveniente à sua meditação (...) Dos poetas tumulares, é Gray o primeiro que dá atenção às ruínas, notando a "torre coberta de hera", de onde "o mocho triste dirige à lua os seus lamentos"

Chamo a atenção para que nós também tivemos isto, com Bocage e os seus mochos piadores!

Oh retrato da morte, oh noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto! 

(...)
E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!
Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores. 


Escusado será dizer que não foi este o poema que celebrizou Bocage.

Surge agora, pela primeira vez, o termo "gótico", tão empregado durante o século XVIII em Inglaterra.

Não, não foi o manager dos Joy Division que inventou o termo "gótico".

"Poetas a quem falta o poder do génio para dar à natureza aquela simplicidade magestosa, que nós tanto admiramos nas obras dos antigos, são obrigados a procurar ornatos estranhos e a não deixar que lhes escape qualquer fragmento de engenho, de toda a espécie. Considero Godos em poesia estes escritores, que, como os arquitectos, não sendo capazes de se elevar à bela simplicidade dos antigos Gregos e Romanos, procuraram substituí-la por todas as extravagâncias de uma fantasia desregrada.
Tenho procurado, em várias das minhas dissertações, banir este gosto Gótico que se instalou entre nós". [Addison, Essays, grafia original apresentada em "A Literatura 'Negra' ou de Terror..."]

O maldito gosto Gótico, que o autor considera sinónimo de bárbaro Godo (dos Godos, os verdadeiros goths), por cá permanece.
O "Castelo de Otranto" provocou, como se sabe, uma legião de seguidores ávidos por se libertarem do espartilho imposto por um racionalismo ignorante dos mecanismos psicológicos do terror como projecção da realidade.
Não deixo de salientar, porém, uma outra moda que começou quase de imediato e que só muito recentemente deixou de fazer efeito: os escritores que, no género de Arthur Conan Doyle, cozinhavam um ambiente aparentemente sobrenatural para depois o explicarem por causas naturais: não era sangue, era apenas ferrugem; não era um vampiro, era veneno; não era um fantasma, era uma senhora envolta num lençol. O próprio Bram Stoker caiu neste disparate com "The Lady of the Shroud". Como todos os amantes de sobrenatural muito bem sabem, e os autores de sobrenatural melhor ainda, o sobrenatural só se explica com mais sobrenatural (ou não se explica de todo). Infelizmente, alguns autores de respeito ainda se aventuram levianamente a enveredar pelo sobrenatural para depois o tentarem explicar com ficção científica (versão moderna da "ferrugem"). Não sei o que é pior. O resultado é sempre mau. E bastantes vezes mais ridículo do que a senhora envolta no lençol, que até tem uma certa piada. Não compreendo o apelo. Antes a inexplicável e tresloucada aparição do gigante fantasmagórico de Otranto.


A escola gótica

Orientada ainda pelo ideal trágico do classicismo, a escola gótica procurava excitar terror pelo manobrar do misterioso e do sobrenatural e pela alimentação constante da expectativa (suspense) e compaixão

Inspirar terror e compaixão eram os objectivos da tragédia grega clássica.

O romance gótico é essencialmente um romance sentimental, em cuja intriga de amor intervém o sobrenatural e o misterioso, ou ao lado das potências maléficas, contra as quais lutam as virtudes dos heróis, ou servindo-se de poderes ocultos para fortalecer e defender essas mesmas virtudes. (...)
Qualquer história, de qualquer época, pode tornar-se assunto de um romance gótico, principalmente se lhe forem adicionados certos elementos cénicos, a criar ambiente.

Não foi inocentemente que me referi, acima, à corrente literária que estamos a analisar como literatura sobrenatural, ou gótica, ou de terror, ou 'negra', tudo no mesmo saco. Durante os primórdios, os temas dos romances andavam mesmo todos no mesmo saco. Fantasmas, crimes, demónios, salteadores, lendas... tudo metido no grande saco "gótico". Não existia a separação clara que temos hoje do que é o policial, o terror, o romance histórico... Era mesmo tudo no mesmo saco. Talvez tenha sido esse ambiente de peripécias várias e pouco especializadas que levou, na altura, ao afastamento de um público mais intelectual e menos receptivo à teatralidade de sangue e trovões na noite escura com que se horrorizavam as damas de então. Atingiu-se o absurdo.



Continua.